Sobre a guinada lingüística

Rorty e Habermas se referem à história da filosofia como dividindo-se em três grandes etapas: uma ontológica, uma gnosiológica e uma linguística.

A etapa ontológica se caracteriza pelo pensamento metafísico da Antiguidade e da Idade Média. A preocupação que predomina nos pensadores dessa etapa é relativa ao ser das coisas. Trata-se de identificar se alguma coisa existe, quais coisas existem e quais não existem, como são as coisas que existem e de que coisas se pode esperar o quê. Na terminologia desses pensadores, são comuns os termos ser, ente, substância, essência, acidente, movimento e devir. O conhecimento é suposto como um imenso inventário classificatório de tudo que existe, segundo suas naturezas e propriedades. Chamamos a essa etapa de Filosofia do Ser.

A etapa gnosiológica se caracteriza pelo pensamento crítico-fundacionista da Idade Moderna. Predomina nos pensadores dessa etapa uma preocupação com o conhecer do homem. Trata-se de identificar o sujeito e o objeto do conhecimento, de elencar as capacidades cognitivas do sujeito e mensurar precisamente o seu alcance, a fim de definir os limites últimos de todo conhecimento possível. Na terminologia desses pensadores, são comuns os termos consciência, sensação, entendimento, razão, idéia e fenômeno. O verdadeiro conhecimento consistiria numa descrição crítica das possibilidades de conhecer, segundo as capacidades do homem e seu alcance cognitivo. Chamamos a essa etapa de Filosofia da Consciência.

A etapa linguística se caracteriza pelo pensamento crítico-compreensivo da época contemporânea. Predomina nos pensadores dessa etapa a preocupação com os enunciados da linguagem. Trata-se de determinar quais enunciados podem ser formulados e de que maneira podem ser justificados intersubjetivamente. Na nova terminologia, são comuns os termos linguagem, enunciado, condições de verdade, condições de verificação, justificação e refutação. O conhecimento superior consistiria numa teoria de todas as possibilidades de enunciação e de suas respectivas condições de validade. Chamamos a essa etapa de Filosofia da Linguagem.

Chama-se guinada linguística à transição da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem. Essa transição ocorreu em duas fases, que podem ser assim descritas:

a) Guinada linguístico-semântica: Deixa-se de conceber o conhecimento como uma relação entre sujeito e objeto e passa-se a concebê-lo como uma relação entre linguagem e mundo. A preocupação se desloca da formação subjetiva de uma representação para a possibilidade objetiva de verificação de um enunciado. Já não importa como eu cheguei à conclusão de que uma certa coisa é de certa maneira, e sim como podemos verificar se aquela coisa é ou não da maneira como eu disse que ela era.

b) Guinada linguístico-pragmática: Abandona-se a noção de verificação em favor da noção de justificação. Já não se trata de verificar objetivamente a verdade do enunciado, mas sim de justificar intersubjetivamente a sua validade. Com isso, abre-se espaço para a justificação de enunciados que não carregam pretensão de verdade (correspondência aos estados de coisa do mundo objetivo), mas sim outras pretensões de validade, como a pretensão de sinceridade (correspondência aos estados de consciência do mundo subjetivo) e a pretensão de correção (correspondência às normas do mundo social). O procedimento de validação desloca-se da confirmação experimental para o consenso argumentativo.

Os nomes “semântica” e “pragmática” vêm da Semiótica. Essa ciência é normalmente dividida em três âmbitos diversos: (1) a sintática, que cuida das relações dos signos entre si; (2) a semântica, que cuida das relações dos signos com os seus significados; e (3) a pragmática, que cuida das relações dos signos com os falantes. Para simplificar, digamos que a sintática estabelece regras de construção, a semântica regras de significação e a pragmática regras de utilização dos signos. Ora, a primeira guinada linguística, como se concentra nas relações entre linguagem e mundo, se apresenta como uma teoria da determinação dos significados dos enunciados, a fim de descobrir suas condições de verificação no plano objetivo. Por isso mesmo, é semântica. A segunda guinada linguística, por sua vez, como se concentra nas relações entre linguagem e falantes, se apresenta como uma teoria das pretensões de validade dos enunciados, a fim de descobrir suas condições de justificação no plano intersubjetivo. Por isso mesmo, é pragmática.

No caso do Direito, ambas as guinadas linguísticas se vêem fortemente representadas na atualidade. À guinada semântica corresponde a Hermenêutica Jurídica, que busca procedimentos de descoberta dos significados mais adequados das normas jurídicas, como em Ronald Dworkin. À guinada pragmática corresponde a Teoria da Argumentação Jurídica, que busca procedimentos de justificação de decisões jurídicas com base num discurso racional intersubjetivo, como em Robert Alexy.

Comentários

Anônimo disse…
André, excelente, preciso e esclarecedor o seu texto. Fiquei muito interessada e curiosa acerca das formas que as guinadas lingüísticas se vêem representadas no mundo jurídico atual, sua relação com a hermenêutica jurídica (Dworkin) e com a teoria da argumentação jurídica(Alexy). Vc poderia dar continuidade ao que escreveu para falar um pouco mais sobre estas questões?
Robson Oliveira disse…
Cheguei a esse blog por intermédio de sua palestra na Justiça Federal do Ceará. E estou adorando! Via sempre nos fóruns da vida a expressão "guinada linguística" e agora finalmente compreendi do que se trata. Um abraço.
Robson, obrigado por ter assistido à palestra e por ter visitado o blog. Para ter uma fonte citável de consulta sobre guinada linguística, recomendo o "Pensamento Pós-Metafísico", do Habermas. Abraços!

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