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Mostrando postagens de abril, 2010

Aforismo 2: Uma Abordagem Histórica

Até agora abordei o meu Aforismo 2 como um argumento conceitual: Toda outra forma de discurso que não a narração também possui, ainda que neutralizados, os elementos e as partes da narrativa. Gostaria agora de abordá-lo como um argumento histórico. No nascimento da cultura ocidental, na Grécia, a narrativa precedeu e foi mãe da poesia e do argumento. Primeiro veio o mito, depois veio o épico. O mito era a narrativa dos inícios, de eventos apresentados como singulares, mas que tinham significação universal, porque tinham estruturado o modo como as coisas são no mundo. Pode-se dizer que o mito é a primeira modalidade de discurso explicativo. O universal cotidiano (por exemplo, o eco que se ouve nas cavernas; o curso das estações do ano) se explica à luz de um singular extracotidiano (por exemplo, Eco falando com Narciso; Perséfone, suas visitas a Deméter e sua volta ao Hades). Já o épico não é a narrativa do singular que se torna eterno no cotidiano (como o mito), mas sim do singular que

Narrativa e Realidade (IV): Aforismo 2

Após a considerações da postagem anterior, meu "Aforismo 2" poderia ficar assim: 2. A realidade tal como a percebemos é toda estruturada literariamente. Não podemos fazer outra coisa que não contar histórias sobre o que é (o fato), o que pode ser (a ficção) e o que deve ser (o ideal). 2.1. Realismo discursivo-pragmático: A realidade é uma construção do discurso em vista de um propósito prático. 2.1.1. Realismo discursivo: Não existe realidade fora do discurso. Sensações e afetos são "pré-reais". A realidade é um mundo coerente criado pelo discurso, capaz de servir de mapa de localização e teste de validade de proposições sobre o mundo. 2.1.2. Pragmatismo epistemológico: Não existe conhecimento em si. A prática tem prioridade sobre a teoria e todo conhecimento é orientado para uma ação futura ou possível, que lhe fornece o critério de avaliação. 2.1.3. Pragmatismo ontológico: Não existe realidade em si. Toda realidade é construção em vista de certo propósito. Há tant

Narrativa e Realidade (III) - Ainda sobre o Aforismo 2 e o Caráter Literário da Realidade

O meu Aforismo 2 (leia no início da postagem de baixo por que estou adotando, meio a sério, meio por troça, essa forma de referência) enuncia que: "A realidade tal como a percebemos é toda estruturada literariamente. Não podemos fazer outra coisa que não contar histórias sobre o que é (o fato), o que pode ser (a ficção) e o que deve ser (o ideal)." Na postagem anterior, concentrei-me em mostrar o que entendo por uma narrativa e por que acredito que a forma narrativa está presente em todos os tipos de discurso, mesmo os que parecem não narrativos, como a poesia e o argumento. Contudo, isso, mesmo que fosse verdade, pareceria autorizar apenas que eu dissesse que o discurso é estruturado narrativamente; contudo, eu digo que a "realidade" é estruturada narrativamente. A essa tese chamo "realismo narrativo", e ela se apóia numa tese anterior, a que chamo "realismo discursivo". "Realismo discursivo": Qualquer coisa que exista fora do discurso

Narrativa e Realidade (II) - Caráter Literário da Realidade

Atendendo ao conselho da Débora - que o leitor pode conferir nos comentários da postagem anterior -, escrevo aqui uma primeira postagem de desenvolvimento das ideias que ali havia listado de forma embrionária e quase aforística. Vou brincar um pouco com isso e chamar o item a que dou desenvolvimento nessa postagem de aforisma 2 - lembrando as referências às sentenças de Wittgenstein nas Investigações Filosóficas , com que sinto uma estranha conexão. O aforisma em questão diz: "A realidade tal como a percebemos é toda estruturada literariamente. Não podemos fazer outra coisa que não contar histórias sobre o que é (o fato), o que pode ser (a ficção) e o que deve ser (o ideal)". Isso exige uma teoria da narrativa, seguida de uma teoria da estruturação narrativa da realidade. Ainda não tenho nenhuma das duas, mas exponho aqui de que modo entendo essa afirmação por ora. Entendo uma narrativa como um discurso composto de certos elementos: narrador, enredo, personagens, espaço e tem

Narrativa e Realidade (I)

Esse um dia talvez seja o título de uma obra minha. Talvez. Não sei. O fato é que tenho pensado muito a respeito das relações entre narrativa literária e construção do sentido da realidade. Tenho tido muitas ideias a respeito, ideias que anoto, que pondero, que guardo para retomar mais tarde. Ideias que geram outras ideias e que martelam na minha cabeça, retornando sempre, de forma reiterada e com intensidade crescente. Assim, ou se trata de um destino intelectual, ou de obsessão patológica. Ou bem podem ser as duas coisas. Vou tentar expressar, de modo ainda introdutório e fragmentário, o estado das minhas reflexões acerca desse tema, que ainda deve levar muito tempo e muita estruturação até que se torne maduro o bastante. 1. Assim como o século XVIII foi o século da lei, o XIX, da história, o XX, da linguagem, o século XXI será o século da literatura. Em todos os domínios do saber e da cultura, haverá uma guinada literária. (Esse é mais um palpite, quase uma profecia, do que exatamen

Sobre a profundidade II

Falar sobre a profundidade revelou-se, como eu já esperava, mais difícil do que parecia à primeira vista. Vejamos a que conclusões cheguei na primeira postagem. Tomei como ponto de referência para examinar a profundidade os ditos profundos. Afirmei que profundo não é o mesmo que verdadeiro, pois certos ditos se manteriam profundos mesmo que fossem falsos. Afirmei ainda que profundo não é o mesmo que belo, pois certos ditos revelam algo atroz, sem deixarem de ser, contudo, profundos. Concluí que profundos eram os ditos que despertavam sucessivamente a perplexidade e a adesão do espírito. Contudo, alguns novos elementos precisam ser adicionados. O comentário da Débora à minha postagem anterior mostrou que eu tinha que ter deixado mais claro com que tipo de intenção analítica me acercava do tema. Corrijo agora essa falta: Minha intenção é fazer, ao mesmo tempo, uma analítica do profundo (uma análise do que queremos dizer quando qualificamos algo como profundo) e uma fenomenologia do profu

Sobre a Profundidade

A profundidade é mais fácil de perceber que de definir. Claro que não falo da profundidade espacial, profundidade dos corpos. Falo da profundidade espiritual, profundidade das ideias e das obras humanas. O que torna profunda uma frase, uma fala, uma obra não é muito claro. Um dito como: "A guerra é má porque faz mais homens maus do que os elimina" é, sem dúvida, profundo. Mas sua profundidade não reside na sua verdade. Com dizer que é profundo não se aponta que é simplesmente verdadeiro, e sim algo mais que isso. Talvez seja inclusive possível que um dito seja profundo sem ser verdadeiro. "A virtude não requer recompensa, porque não há recompensa maior que ser virtuoso" é inegavelmente profundo, mas, confrontado com o pouco valor que a maioria dos homens dá a tal recompensa, não parece muito verdadeiro. Não me importa tanto provar que é falso, e sim mostrar que seguiria sendo profundo, mesmo que fosse falso. Isso pareceria aproximar o profundo do belo, que também nã

Tragédia: sofrimento e razão

Toda tragédia é uma história sobre a liberação do sofrimento por meio do sofrimento extremo. Este tema é em si mesmo um paradoxo, cuja percepção e enunciação não escapou aos mais argutos filósofos do trágico, de Aristóteles a Nietzsche. De que modo o sofrimento pode liberar do sofrimento é a questão que toda tragédia deve responder à sua maneira, e em grande parte o sucesso de uma tragédia depende do quão inovadora e bem construída for sua resposta a essa questão. O Édipo Rei, que muitos reputam ser a tragédia por excelência, respondeu a ela dizendo que o sofrimento não é imposto pelo destino, mas pela tentativa do homem de fugir ao destino. Sófocles representou no tirano de Argos a própria encarnação da vontade arrogante do homem que não quer se submeter à vontade dos Deuses, dando voz à crítica conservadora contra as ousadias da razão que habitava a ágora. No Édipo, o sofrimento que o destino impõe é resposta à tentativa de evadir-se dele e cessa assim que se aceita submeter-se ao cu

Historia magistra vitae

Que a história é mestra da vida os antigos já diziam, mas a esse dito atribuíam um sentido político, instando os governantes a buscarem no passado as lições que os preveniriam contra os erros do presente. Até que ponto tinham razão sempre foi muito duvidoso, pois dependia de uma concepção circular da história a verdade daquela máxima e apenas com certa caridade se podia considerar aceitáveis as demonstrações dos filósofos de que esse ou aquele evento de seu tempo era a repetição deste ou daquele evento de passado mais remoto. Porque ver tal coisa dependia em grande parte de querer vê-la é que o famoso adágio, malgrado seu apelo sedutor ao espírito ilustrado, não pôde nunca ultrapassar as fronteiras bem guardadas do reino dos ensinamentos mais belos que verdadeiros ou, pelo menos, mais belos que comprovados. Há, porém, pelo menos um sentido em que a afirmação de que a história é mestra da vida é obviamente verdadeira, que é aquele em que se queira dizer que, para se formar clara ideia d