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Mostrando postagens de novembro, 2007

O que é? (1): Dever-ser

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Na filosofia vale a regra de que as idéias mais simples são as mais difíceis de explicar. Dever-ser é uma dessas idéias simples, na verdade tão simples que não pode ser definida em termos de alguma outra coisa. Se eu digo, por exemplo, que o dever-ser é "aquilo que se deve fazer", a definição já inclui a idéia de "dever", que é a idéia que se deveria definir. Se digo que o dever-ser é "aquilo que é obrigatório, permitido ou proibido", essa definição se serve de três outras idéias - obrigatório, permitido, proibido - que só podem ser explicadas recorrendo à idéia de dever-ser: obrigatório é aquilo que se deve fazer, permitido é aquilo que não se deve nem fazer nem não fazer, proibido é aquilo que se deve não fazer. Como se vê, há pouca esperança de que a idéia de dever-ser possa ser explicada com recurso a alguma idéia mais simples que não contenha referência direta nem indireta ao dever-ser. Talvez isso ocorra porque dever-ser seja uma daquelas idéias irre

Habermas: A Tensão entre Facticidade e Validade

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[Obs. Os asteriscos e números entre colchetes remetem às notas do fim da postagem, que fornecem ao iniciante um glossário reduzido de algumas expressões empregadas] Alinho-me ao pensamento de Habermas, mas sou um filósofo analítico. Essa condição ambígua gera certo conflito (certa "tensão", para brincar com o título dessa postagem) entre dois aspectos do meu interesse. Por um lado acredito no projeto da hermenêutica crítica [*1] (uma idéia profundamente continental [*2], profundamente alemã): interpretar as instituições e estruturas sociais em termos comunicativos, trazendo à tona seus pressupostos de validade e tornando possível uma perspectiva crítica e emancipatória em relação a elas. Por outro lado acredito no procedimento da filosofia analítica [*3] (uma forma de pensar tipicamente insular [*4], tipicamente inglesa): conhecer o mundo através da linguagem com que o construímos, aclarando os conceitos e expressões a partir de seus usos comuns ou especializados e evidencian

A propósito da palestra "A invisibilização dos princípios jurídicos...", do Prof. Sandro Alex (1)

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Na palestra do dia 14/11/07, relatada em postagem anterior deste blog, o Prof. Sandro Alex fez, entre outras, uma afirmação acerca da noção de "memória" que procurarei refutar nessa postagem: a afirmação de que o "paradoxo constitutivo" da memória é que ela, para existir, depende do esquecimento. Começo enunciando como essa tese foi apresentada. A afirmação de que o "paradoxo constitutivo" da memória é que ela, para existir, depende do esquecimento (ilustrada pelo exemplo literário da personagem Irineu Funes, do conto "Funes, o Memorioso", de Jorge Luís Borges, também postado neste blog) se apóia mais ou menos no seguinte argumento: de tudo que experimentamos, algumas coisas formam significação, outras não formam; as que formam permanecem acessíveis à lembrança (integram a memória); as que não formam são descartadas (esquecidas); assim, só podemos reter algumas coisas na memória à medida que esquecemos de todas as outras; portanto, a memória depe

Funes, o Memorioso (Conto de Jorge Luís Borges)

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Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino imped

"Filosofia analítica e filosofia transformadora" (Texto de Richard Rorty)

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Muitos filósofos analíticos não gostam de pensar na sua disciplina como uma das ciências humanas. Eles consideram como a marca própria da filosofia a busca disciplinada do conhecimento objetivo e, assim, pensam a filosofia como parecida com as ciências naturais. Eles vêem as ciências humanas como uma arena para discutíveis choques de opinião. Os filósofos deste tipo preferem ser colocados, para fins administrativos, tão longe quanto possível de professores de literatura e tão perto quanto possível de professores de física. É por isso que, nas mesas de organização das universidades americanas, os departamentos de filosofia às vezes são encontrados na Divisão das ciências sociais em vez de na Divisão das ciências humanas. Também esta é a razão pela qual os sitiados filósofos americanos não-analíticos às vezes tentam se reunir sob uma bandeira na qual inscreveram "filosofia humanística". Quando os analíticos e os não-analíticos irritam-se uns com os outros, os administradores ac

Adendo à última postagem

Submeti o relato da postagem anterior à leitura do próprio Prof. Sandro Alex, que sugeriu o seguinte acréscimo: "Quanto ao relato da palestra, gostaria de te sugerir acrescentar na minha resposta a tua questão, a qual é importante para um luhmanniano ter sempre em mente como uma advertência, que tentei ao menos sugerir que a teoria dos sistemas pode tornar visíveis alguns pontos invisíveis para os relatos da história moderna do direito, inclusive a sua história recente no 'breve século XX'. O exemplo que utilizei foi sobre a era dos direitos e o paradoxo da maior inclusão como pressuposto de produção de maior exclusão por via da atividade regulativa e legislativa. Esses são problemas que, ao meu ver, encontram muita clareza nas abordagens sistêmicas e não constituem problemas sempre à vista para os positivistas, por exemplo. O próprio dilema do tempo não é um problema para o positivismo, sem precisar mencionar que nunca o foi para o jusnaturalismo. O que vc argumentou acer