Sobre a Sociologia do Direito de Niklas Luhmann (I)

Cada homem é um organismo em relação com seu ambiente. Essa relação tanto pode ser de conhecimento do mundo quanto de intervenção sobre o mundo. Em ambos os casos, trata-se de uma experiência. A experiência do homem no mundo é dotada de complexidade e contingência. De complexidade, porque as experiências possíveis são sempre muito mais numerosas que as experiências efetivas. Experimentar implicar selecionar: cada experiência efetiva implica o descarte de muitas outras que também eram possíveis. E de contingência, porque toda experiência efetiva pode ser diferente do que foi antes: pode-se olhar na mesma direção e não ver a mesma coisa, pode-se agir da mesma forma e não atingir o mesmo resultado.

Para enfrentar a complexidade e a contingência é preciso lançar mão de critérios de seleção que criem uma certa estabilidade. Para isso, o homem desenvolve expectativas. Sem expectativas, ele jamais poderia decidir nem agir. Contudo, como as expectativas são apenas estratégias adaptativas, estão sujeitas a desapontamentos, quer dizer, as coisas sempre podem vir a se passar de modo diverso do esperado. Quando isso ocorre, o homem pode ter uma de duas reações: ou assimilar o desapontamento, fazendo um reajuste da expectativa, ou manter a expectativa, apesar do desapontamento. Conforme seja uma expectativa que gere essa ou aquela reação, classifica-se como expectativa cognitiva ou normativa.

Expectativas cognitivas estão sujeitas a revisão em caso de desapontamento. Trata-se do caso em que se espera que a expectativa se ajuste à complexidade e à contingência da experiência no mundo. Expectativas normativas, contudo, são contrafactuais. Elas são imunizadas simbolicamente para serem mantidas mesmo em caso de desapontamento. Aqui se espera que a contingência e a complexidade da experiência no mundo se ajustem à expectativa, e não o contrário. Quando uma experiência desaponta uma expectativa cognitiva, quem está errado é a expectativa; quando desaponta uma expectativa normativa, quem está errado é a experiência. Os sistemas sociais investem mais em expectativas cognitivas ou em normativas conforme seja mais necessária a adaptação ao ambiente variável ou a integração e estabilização das estruturas sociais.

A questão das expectativas torna-se mais complexa na situação de interação. Se um homem se encontra diante de outro homem, existem não só as expectativas que cada um forma a respeito do outro, como também as expectativas que cada um forma a respeito das expectativas do outro a respeito dele. Além das expectativas de conduta, surgem as expectativas de expectativas. Por exemplo, se estamos duas pessoas à mesa diante da última fatia de bolo, eu tanto posso pensar “Será que ele quer comer essa fatia?”, como posso pensar “Será que ele acha que eu quero comer essa fatia?”. A complexidade aumenta, porque se está diante de um ser que não apenas desperta expectativas em mim, mas também cria expectativas sobre mim. Esse duplo nível de expectativas chama-se “dupla contingência”.

Para superar o problema da dupla contingência, é preciso não só fixar em mim expectativas sobre o outro, como fixar no outro expectativas sobre mim. Essa é uma questão tão indispensável para a continuidade da interação que um pensador como Hobbes viu nela o risco da ruína do homem: quando cada um não sabe o que esperar do outro, para fins de autoproteção espera o pior e procura matar o outro antes que o outro o mate. A única estratégia adaptativa eficiente é uma coordenação recíproca de expectativas, mediante a institucionalização comunicativa de expectativas comuns. Em última instância, o Direito faz parte dessa estratégia adaptativa, que supera o problema da dupla contingência pela coordenação das expectativas dos envolvidos.

Comentários

Elaine disse…
Olá André
Muito interessante o texto sobre o Luhmann. O direito enquanto coordenador das expectativas é um tema que poderia ser continuado. Ou está perdido pelas outras postagens?
Amo o tema principalmente a questão do judiciário tendo que muitas vezes tomar decisões políticas como nas decisões de questões sociais.
Continuarei passando por aqui.
Anônimo disse…
Elaine, obrigado pela visita e pelo elogio. Não sou lá especialista em Luhmann, como o é meu amigo Prof. Sandro Alex, do CESUPA, mas já li algumas coisas e arrisco meus comentários. Embora de modo geral considere que a teoria sistêmica assume alguns pressupostos equivocados, que terminam por prejudicar a validade de toda a teoria, não posso deixar de reconhecer que se trata de uma teoria fascinante e que as possibilidades que abre em termos de interpretações originais e férteis de fenômenos sociais e jurídicas são incríveis. Aproveitando a sua visita, gostaria que você sugerisse alguma temática luhmanniana sobre a qual gostaria que eu desse algumas algumas palavras. E, por favor, siga me visitando. Beijos!
Anônimo disse…
Magnífico blog André!Meus sinceros parabéns!Muito bom ver que a internet tbm é feita de pessoas cultas como vc!Até
Rômulo disse…
Muito bem escrito e muito esclarecedor. Parabens.
Unknown disse…
E ai, como vai?
Sou aluno de Direito, e achei interessante o tema do seu mestrado. Queria que me falasse um pouco sobre o que considera o "fantasma do retorno do jusnaturalismo".

Abraços
Unknown disse…
nossa, mto bom esse texto sobre Luhmann; ajudou na minha prova de graduação!
Vlew
Neusa disse…
Boa tarde, André!
Sou de Itabira( cidade de Drummond e da Vale) Minas. Sou estudante de Direito e estava fazendo um trabalho de Sociologia Jurídica sobre o Niklas Luhmann, estava chegando a beira da loucura quando encontrei o seu blog e o mesmo me arremeteu ao blog do Prof. Sandro, que me foi de muita valia.
Obrigada!!
Abraços,
Neusa

Com certeza, serei leitora assídua do seu blog
Lícia disse…
Você acabou de salvar a minha vida! Já tinha visitado outras postagens suas, é impressionante a sua capacidade de tornar didáticos textos como os de Luhmann, Habermas e companhia. Visito sempre para esclarecer as dúvidas após a leitura dos originais. Está de parabéns! Abraços.
Ingrid Nayara disse…
Explicação muito clara e rica, conseguindo compilar a complexidade da teoria com uma didática extraordinária, sem faltar elemento algum. Muito obrigada por dividir suas interpretações!
Ernesto disse…
Ola André. Excelente a sua explicação. Estava procurando entender, de maneira didática, o conceito de "dupla contingência", para compreender melhor alguns aspectos da teoria de Habermas e Klaus Gunther.

Muito bom os comentários!

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