A Judicialização da política e o problema da legitimidade (I)

Segundo Frank Michelman, há cinco coisas diferentes que podem ser chamadas de "judicialização da política": (1) a conversão de escolhas políticas em normas jurídicas através do processo de legislação; (2) o recurso a concepções políticas para interpretar ou completar as normas jurídicas; (3) o recurso às concepções políticas consagradas na Constituição para fins de controle de constitucionalidade; (4) a fiscalização da execução de políticas públicas pelos órgãos do judiciário; e (5) a imposição de políticas públicas pelos órgãos do judiciário. Assim, se quero tratar desse tema, devo precisar em que sentido me refiro a ele. No que segue, "judicialização da política" tem apenas o sentido (5), no qual reconheço acentuados problemas quanto à legitimidade da decisão judicial.

Legitimidade: aceitação ou aceitabilidade?

Devo agora precisar o sentido com que emprego a expressão "legitimidade". O sujeito da legitimidade é uma norma, instituição ou autoridade. Quanto ao conceito de legitimidade, existem dois: o conceito empírico, que identifica a legitimidade com a aceitação voluntária, constante e generalizada, típico da abordagem das Ciências Sociais, e o conceito normativo, que a identifica com a aceitabilidade racional, típico das abordagens da Filosofia Política. Normalmente, esses dois conceitos não se identificam, visto que as pessoas podem efetivamente aceitar (por hábito, por engano, por preconceito, por manipulação etc.) normas, instituições ou autoridades que no fundo não têm aceitabilidade racional, assim como aquelas que a têm podem não ser efetivamente aceitas. Essa distinção entre "ser aceita" e "dever ser aceita" tornaria, assim, necessária uma separação radical entre abordagem científica e abordagem filosófica das questões de legitimidade.

O referencial teórico a partir do qual teço minhas considerações, contudo, não permite que essa distinção prospere. Segundo Jürgen Habermas, em sociedades modernas, em que as visões de mundo religiosas e tradicionais não são mais vinculantes para todos, as normas, instituições e autoridades precisam oferecer justificativas para a obediência, as quais só serão aceitas pelos destinátarios na medida que forem racionais. Isso cria uma aproximação entre aceitação e aceitabilidade: para ser aceita, uma norma, insituição ou autoridade tem que dever ser aceita, quer dizer, deve poder justificar-se como racional. O fato de que as sociedades modernas são racionalizadas cria um nexo interno entre aceitação e aceitabilidade.

Há duas dificuldades principais de sustentar esse argumento. A primeira é mostrar que existe mesmo alguma coisa como a "aceitabilidade racional". Boa parte da Filosofia Contemporânea dedicou-se a "desmascarar a razão", mostrando que os modelos "racionais" não passavam de arranjos históricos contingentes, projetados ou impostos como se fossem os únicos possíveis ou corretos. Foi assim que se desmascarou que a moral racional eram os costumes da Europa, que a economia racional era a organização capitalista, que a administração racional era a burocracia estatal, que o conhecimento racional era a ciência ocidental etc. Dizer-se "racional" era uma forma de impor-se como superior e orbigatório frente às demais alternativas culturais e históricas. Nessa circunstância, como falar em aceitabilidade "racional"? O racional não é apenas aquilo que cada cultura aprova ou que cada modelo impõe?

Essa dificuldade obrigou Habermas a transitar para um conceito processual e discursivo de razão. Processual porque não considera uma coisa racional pelo seu conteúdo, mas sim pelo seu processo de formação. E discursivo porque considera que o discurso, a livre troca de idéias entre dois ou mais falantes com vista à melhor solução, é o processo pelo qual uma coisa deve ter passado para ser racional. Isso afasta a suspeita de contingência histórico-cultural. Num discurso, todas as razões a favor e contra podem ser levantadas, inclusive aquelas que se opõem ao modelo hegemônico.

A segunda dificuldade é posta pela problemática da ideologia. Ideologia é um discurso que se apresenta como verdadeiro, mas na verdade é apenas uma forma de legitimação simbólica de situações de dominação. O discurso da "incapacidade natural" serviu para legitimar a escravidão, o da "inferioridade feminina", para legitimar o patriarcalismo, o da "salvação das almas", para legitimar a colonização. Ora, a existência da ideologia poderia distorcer a relação entre aceitação e aceitabilidade. Mesmo que existisse a aceitabilidade, a ideologia poderia fazer com que normas, instituições e autoridades não-aceitáveis parecessem ser aceitáveis, provocando sua aceitação ao longo do tempo. Ela substituiria a aceitabilidade pela aparência de aceitabilidade, perpetuando estruturas irracionais e exploratórias.

Habermas se desembaraça dessa segunda dificuldade assumindo a existência da ideologia, mas negando que discursos ideológicos possam se perpetuar ao longo do tempo quando a sociedade é suficientemente aberta e comunicativa, como são as sociedades modernas. Porque o discurso é falível, ideologias podem ser eventualmente aceitas como racionais. Mas, porque ele é crítico e aberto, as contradições dos discursos ideológicos são sempre em algum momento trazidas à tona, o que faz pesar sobre eles um ônus de justificação que não são mais capazes de suportar. O discurso é o fiscal da racionalidade ao longo do tempo.

Assumindo, portanto, que o discurso proporciona um critério processual de racionalidade e uma filtro crítico contra as ideologias, pode-se retomar a tese habermasiana de que, nas sociedades modernas, a aceitação depende da aceitabilidade. Isso desfaz a dicotomia e permite o diálogo entre abordagens empíricas e filosóficas. Dessa forma, é-nos lícito dizer: quando acusamos a judicialização da política de gerar decisões ilegítimas, queremos dizer tanto que tais decisões carecem de aceitabilidade racional quanto que, por isso mesmo, não são capazes de alcançar aceitação efetiva.

(continua)

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