Resumo do Cap. 2 da "Sociologia do Direito", de Niklas Luhmann


1. APRESENTAÇÃO

Niklas Luhmann é o sociólogo alemão que desenvolveu uma teoria do Direito com base na abordagem sistêmica. Imaginemos o universo como uma infinidade de elementos que estão em relação uns com os outros. Algumas relações são mais estreitas, intensas e/ou duradouras, outras são mais distantes, débeis e/ou passageiras. Quando alguns elementos se relacionam entre si de modo tal que adquirem certa autonomia em relação aos demais, diz-se que eles formam um sistema. A noção de sistema é co-relativa da noção de ambiente, que são todos os outros elementos que não integram o sistema.


Digamos que alguém segura um copo na mão: a mão é um sistema de células, o copo, um sistema de moléculas; o copo é ambiente da mão, a mão, ambiente do copo; as células da mão estão em relação com as moléculas do copo, mas não na mesma relação que essas células têm entre si. O mesmo se passa com dois times numa partida de futebol: depois que soa o apito inicial, os jogadores de um time e de outro se misturam, se afastam, se aproximam, se acompanham e se chocam, mas continua havendo dois times, distintos e opostos. Cada time é um sistema de jogadores, e um time é ambiente para o outro.


Segundo Luhmann, o Direito é um sistema de normas, ou melhor, de expectativas normativas. Estas são as expectativas que são mantidas mesmo em caso de desapontamento. A convivência entre as pessoas depende de que elas possam ter certas expectativas umas sobre as outras, a partir das quais elas selecionarão suas próprias condutas. Essas expectativas são menos importantes por sua verdade – quer dizem, por se confirmarem realmente – do que por sua função, que é reduzir a complexidade e a contingência sociais. As expectativas, porém, só cumprem essa função quando se generalizam e estabilizam, e é precisamente por isso que precisam adquirir relativa autonomia e tornar-se um sistema. O Direito, portanto, não é tanto um regulador de condutas, mas sim um regulador de expectativas.

Nesse texto explicamos os pontos principais dessa teoria do Direito. Começamos pela explicação de como as expectativas são uma estratégia para enfrentar a complexidade e a contingência do mundo. Em seguida, como as expectativas alcançam generalização temporal, social e prática. Encerramos com a definição do Direito em termos de generalização congruente de expectativas comportamentais normativas e um esclarecimento sociológico de suas três características mais marcantes: as sanções, os processos e os programas.

2. COMPLEXIDADE, CONTINGÊNCIA E EXPECTATIVAS


Cada homem é um sistema em relação ao qual o mundo inteiro – incluindo os outros homens – são o ambiente. As relações de cada homem com o mundo são as experiências, das quais algumas operam no sentido homem-mundo, como a ação, e outras, no sentido mundo-homem, como a cognição. Contudo, a experiência é uma relação falível com o mundo, pois não o apreende de modo nem total nem definitivo. Devido à complexidade, o número de experiências possíveis é sempre maior do que o número de experiências efetivas, de modo que fazer e conhecer uma coisa implica deixar de fazer e conhecer outras. Devido à contingência, a mesma ação ou cognição de antes pode ter diferentes resultados agora ou no futuro.


Chama-se de complexidade a propriedade que tem o mundo de ser sempre mais amplo do que a experiência pode apreender. Por isso, ela é sempre limitada. Só se pode fazer ou conhecer isso, mas não tudo. Chama-se de contingência a propriedade que tem o mundo de ser sempre mais variável do que a experiência pode acompanhar. Por isso, a experiência é sempre precária. O que se fez ou conheceu antes pode não servir agora e o que se faz ou conhece agora pode não servir depois. Como a próxima coisa não necessariamente será igual às anteriores e a mesma coisa de antes não necessariamente será igual agora, então surge o problema: Como pode o homem ser bem-sucedido em viver no mundo se só pode contar com uma experiência limitada e precária?


A resposta é: indo além da experiência, ou melhor, estendendo a experiência para além dos seus limites. Não posso saber que essa maçã tem o mesmo sabor das que já comi, mas posso esperar que ela tenha; não posso saber que o Sol vai levantar-se às 5:30h amanhã, mas posso esperar que seja assim. A forma de conviver com a limitação e da precariedade da experiência é a adoção de expectativas. Uma expectativa é uma antecipação da experiência pela imaginação, é uma presunção de que aquilo que não se fez ou conheceu é tal como aquilo que se fez ou se conheceu. São as expectativas que permitem ao homem tocar sua vida tranqüilamente, porque lhe dão a impressão de uma segurança que ele no fundo não tem.

As expectativas, contudo, não são a solução final do problema, porque elas precisam enfrentar um triplo desafio. O primeiro é que vez ou outra sofrerão desapontamento, ou seja, as coisas não se passarão como se esperava que passassem. Que fazer então: mudar ou manter a expectativa frustrada? O segundo desafio é que, na convivência entre dois ou mais homens, eles nem sempre terão as mesmas expectativas. Como tornar suas expectativas comuns, de forma que saibam o que esperar uns dos outros? Finalmente, o terceiro desafio é que é mais prático ter expectativas que valem para muitas coisas, mas é mais eficiente ter expectativas que valem para uma coisa só. Como conciliar expectativas mais práticas e menos eficazes com expectativas mais eficazes e menos práticas? A superação desse triplo desafio é obtida por uma tripla generalização: temporal, social e material. Veremos agora em detalhe como se chega a cada uma delas.

3. GENERALIZAÇÃO TEMPORAL: EXPECTATIVAS COGNITIVAS E EXPECTATIVAS NORMATIVAS

Chama-se desapontamento à situação em que o fato desmente a expectativa, quer dizer, as coisas não se passam como se esperava. Uma vez que as expectativas são extensões injustificadas das experiências, é de esperar que pelo menos algumas delas não se confirmem. Seria realmente surpreendente que o mundo sempre se comportasse de acordo com as nossas expectativas, que por alguma razão desconhecida nunca formulássemos falsas expectativas sobre as coisas. Uma expectativa é uma tentativa de apreender pela experiência o que está além da experiência. Por isso, é uma estratégia falível, cuja adoção requer um remédio contra o desapontamento. Não se podendo evitá-lo, deve-se saber como reagir diante dele.

Ora, há duas reações possíveis: a primeira é abandonar a expectativa desapontada e adotar outra; a segunda é manter a expectativa apesar do desapontamento. Quem come uma maçã muito amarga pode ou deixar de esperar que as maçãs sejam doces ou seguir esperando que sejam doces e encontrar uma razão para o desapontamento, por exemplo, que ela estava verde ou estragada. As expectativas que mudamos em caso de desapontamento se chamam cognitivas e as que mantemos apesar do desapontamento, normativas. O desapontamento de expectativas normativas, para não afetar a expectativa, precisa passar por um dos dois tipos de processamento: explicação ou sanção. Ou se explica o desapontamento como uma exceção que não invalida a regra ou se sanciona aquele que desapontou a expectativa normativa.

A distinção das expectativas em cognitivas e normativas e a conseqüente adoção de mecanismos de processamento constituem a generalização temporal. Com ela se supera o problema dos desapontamentos, não porque os evita, mas porque ou os adota como base para novas expectativas ou os processa de modo que não prejudiquem as expectativas de até então. Dessa forma as expectativas se estabilizam ao longo do tempo.

4. GENERALIZAÇÃO SOCIAL: A INSTITUCIONALIZAÇÃO

Aqueles que convivem, porém, podem não ter as mesmas expectativas, gerando conflitos. Esses conflitos de expectativas, quando não ultrapassam certa medida, são aceitáveis e até necessários para que o sistema social possa seguir funcionando num ambiente complexo. Mas as expectativas normativas devem ser estabelecidas de modo que possam ser bem-sucedidas. Assim, é preciso pôr limite à possibilidade de conflito das expectativas.

Aqui é preciso distinguir três situações que todos os indivíduos podem ocupar num sistema social: a de agente, a de expectador e a de terceiro. O agente é aquele que age, conforme ou desconforme às expectativas. O expectador é aquele que tem expectativas, que serão atendidas ou desapontadas pelas ações do agente. O terceiro é aquele que, embora não sendo expectador atual, é um expectador em potencial, no sentido de que pode ter a sua atenção atraída para a situação a fim de emitir opiniões e tomar decisões. Como veremos, a integração de expectativas depende muito dos terceiros.

Geralmente se diz que a integração de expectativas pode ser alcançada por um consenso. No entanto, o consenso, sendo uma situação em que todos pensam e querem a mesma coisa, é muito raro, além de que, para dar conta de todos os itens que exigem normalização na sociedade, exigiria um potencial infinito de atenção, que não está disponível. O que ocorre, na verdade, é que são criados consensos pressupostos, ou seja, situações em que as decisões de uns valem como se tivessem o acordo de todos.

Esse processo ocorre devido à institucionalização. Quando uma interação social tem início, alguns assumem a condução, definindo a situação, as metas e os papéis. Os outros podem protestar, mas esse protesto tem limite, porque a ação não pode esperar indefinidamente. Quem quer protestar contra tudo terá que separar-se do grupo e agir por si mesmo. Aceitando a condução, os participantes agem como se a consentissem, de modo que passam a esperar uns dos outros as expectativas conformes ao suposto consenso. Agem de acordo com as expectativas de terceiros: não é que realmente esperem certas ações uns dos outros, mas apenas esperam que os outros esperem de si essas ações.

A institucionalização se mantém devido ao ônus da divergência. Quem discorda da instituição ameaça situações estabilizadas, tornando-se inoportuno ou perigoso. Terá que propor-se como líder e enfrentar resistências, terá que levantar os motivos contra a instituição e propor alguma alternativa, terá que ser o centro da atenção e da crítica. Poderá tornar-se o porta-voz da insatisfação geral, mas poderá também ser ridicularizado, criticado ou mesmo excluído. Não se costuma ter tempo e energia para fazer isso com freqüência.

Em grandes sociedades, é preciso institucionalizar a institucionalização, quer dizer, definir de antemão quem determinará as condições de interação e quem apenas seguirá conforme essas condições. Depois disso, o que for objeto de decisão daqueles primeiros será suposto como sendo aceito por esses últimos independentemente de realmente o ser. Quem quiser discordar da decisão terá que questionar não só seu conteúdo, mas também a autoridade daquele que tomou a decisão. A dupla institucionalização é duplamente dissuasiva contra divergências e é, por isso mesmo, duas vezes mais eficiente.

Dessa forma, se a adoção de expectativas normativas estabiliza certas expectativas no tempo a despeito de eventuais desapontamentos (generalização temporal), a institucionalização estabiliza as mesmas expectativas na sociedade a despeito de eventuais discordâncias (generalização social).

5. GENERALIZAÇÃO PRÁTICA: PESSOAS, PAPÉIS, PROGRAMAS E VALORES

Existem quatro níveis de abstração que as expectativas normativas podem alcançar. O primeiro nível é a pessoa. A pessoa é um conjunto de expectativas normativas a respeito do que certo indivíduo faz ou espera. Temos expectativas assim sobre os que são próximos, como parentes, amigos e conhecidos. Acima deste está o segundo nível, que o do papel. O papel é um conjunto de expectativas normativas sobre os indivíduos de certo grupo. O papel abstrai das características individuais, atribuindo as mesmas expectativas a todos os que participam do mesmo grupo. Temos expectativas de papéis sobre os indivíduos de grupos étnicos, nacionais, profissionais etc.

O terceiro nível é o dos programas. Programa é a regra ou procedimento que deve ser observado por todos os destinatários, podendo inclusive estender-se a indivíduos com diferentes papéis ou a todos os indivíduos independentemente dos papéis. Tem baixa generalidade e alta operacionalidade. O quarto e último nível é o dos valores. Valor é um padrão geral de preferência que guia a escolha. Tem alta generalidade e baixa operacionalidade. É comum que as instituições funcionem a partir de programas, mas os justifiquem a partir de valores. É que os valores contam com acordo universal, enquanto os programas são geralmente alvo de controvérsias. Por outro lado, o acordo em torno dos valores só ocorre porque são vagos, o que os torna imprestáveis para a condução imediata da ação.

O sistema mais eficiente de expectativas seria aquele fundado em pessoas. Se soubéssemos como cada um age e o que cada um espera teríamos grandes chances de ter expectativas bem sucedidas. Por outro lado, o sistema mais prático de expectativas seria aquele fundado em valores. A partir de uns poucos valores poderíamos prever as ações e as expectativas de todos os indivíduos. O problema é que o sistema mais eficiente seria pouco prático e o sistema mais prático seria pouco eficiente.

Para combinar eficiência e praticidade é preciso conferir prioridade aos níveis intermediários: os papéis e os programas. Quanto mais as pessoas forem conformadas aos papéis e quanto mais os valores forem operacionalizados em programas, mais o sistema de expectativas será suficientemente bem-sucedido sem ser demasiadamente complexo. Boa parte do esforço social será empregado, então, em fazer que os indivíduos formem sua personalidade em conformidade com os papéis e em convencer a todos de que os programas vigentes são a melhor realização dos valores dominantes.

Portanto, se a adoção de expectativas normativas estabiliza expectativas no tempo a despeito de eventuais desapontamentos (generalização temporal) e a institucionalização estabiliza expectativas na sociedade a despeito de eventuais discordâncias (generalização social), a prioridade de papéis e programas neutraliza a variação individual e a vagueza valorativa (generalização prática).

6. O DIREITO COMO GENERALIZAÇÃO CONGRUENTE

O Direito é a estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente das expectativas comportamentais normativas, quer dizer, que impede que as expectativas comportamentais normativas entrem em conflito umas com as outras. Para estabilizar-se, as expectativas precisam passar por generalização temporal, social e prática. Ocorre que as três modalidades de generalização se limitam reciprocamente, delimitando o campo de expectativas que podem ser bem sucedidas em todas elas. Isso não quer dizer que exista um conjunto fixo de expectativas normativas comportamentais que são as únicas capazes de tripla generalização (o que implicaria num Direito único e imutável), mas sim que o campo de expectativas comportamentais normativas que podem tornar-se Direito não é, em cada caso, indefinidamente amplo e variável.

A generalização temporal por meio de normalização exige a adoção de mecanismos de processamento, dos quais nem todos são igualmente passíveis de generalização social e prática. De todos os meios possíveis de processamento, a sanção foi o mais bem-sucedido. Da mesma forma, a generalização social exige alguma das formas de institucionalização, das quais nem todas suportam uma generalização temporal e prática. A forma de institucionalização que foi mais bem-sucedida foi o processo (judicial ou legislativo). Finalmente, de todos os níveis de generalização prática, o mais bem-sucedido em suportar generalização temporal e social foram os programas. Sanção, processo e programas são, pois, não tanto características definidoras do Direito, mas sim conquistas evolutivas do Direito no exercício de sua função social (a generalização congruente). Todas as sociedades têm Direito, mas somente em algumas a generalização congruente se tornou tão complexa a ponto de instituir sanção, processos e programas.

Comentários

Anônimo disse…
Grande explicação. ALém de facilitar o entendimento, abordou os pontos-chave.

Parabéns e continue o belo trabalho.
Ana disse…
Excelente

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