Uma vez mais a judicialização da política
Noutra postagem, já disse que podemos chamar "judicialização da política" a muitas coisas. Nem todos os autores conhecidos como defensores da judicialização defendem todas as suas modalidades, assim como nem todos os conhecidos como detratores da judicialização se opõem a todas elas. Por isso, ao falar de judicialização, é preciso ter em mente de qual judicialização se fala e, em relação a esta, quais autores se colocam em favor e em contrário.
Segundo uma compreensão esquemática que se tornou popular no Brasil, Dworkin e Habermas representam pólos opostos quanto à judicialização. Ora, seguindo a recomendação do parágrafo anterior, precisamos saber se a judicialização que Dworkin defende e a judicialização que Habermas ataca são ou não a mesma judicialização. Para dar essa resposta, seguirei o roteiro do texto "A leitura moral da constituição", integrante de "O direito da liberdade", de R. Dworkin, e do texto "Paradigmas do direito", integrante do vol. II de "Direito e democracia: entre facticidade e validade", de J. Habermas.
Em "A leitura moral da constituição", Dworkin defende que os conceitos e princípios básicos consagrados em qualquer texto constitucional têm significado e alcance moral, motivo por que apenas uma leitura que lhes dê conteúdo moral e lide com eles a partir de posições moralmente consistentes pode fornecer uma abordagem constitucional satisfatória.
Dessa tese central Dworkin passa a uma afirmação secundária, segundo a qual aqueles que defendem o princípio da democracia se sentem desconfortáveis com juízes que decidem a partir de posições morais pessoais e prefeririam que essas decisões, se forem realmente necessárias, fossem tomadas por representantes eleitos e dotados de legitimidade para tal.
Dworkin lança mão de uma série de argumentos para tentar provar que esses pensadores estão errados em pensar assim, que a democracia deve ser pensada como um sistema em que os direitos são maximamente preservados, e não onde sempre prevalece o princípio majoritário. Segundo Dworkin, uma pessoa só tem razões para aceitar as decisões do todo mesmo quando discorda delas se se sentir um integrante ativo e respeitado desse todo, coisa que só é possível na medida em que seus direitos estejam devidamente assegurados.
A conclusão de Dworkin, que repete aquela que ele já propagandeava desde "Os juízes políticos e o Estado de Direito", na coletânea "Uma questão de princípio", é de que é inevitável que na interpretação e aplicação das disposições constitucionais os juízes tomem posições que têm compromissos políticos e morais radicais, representando isso não uma ofensa, mas antes uma verdadeira necessidade da hermenêutica constitucional.
Nada disso, contudo, ultrapassa a fronteira da adjudicação. Chama-se "adjudicação" (tradução tosca do inglês "adjudication") à função tradicional da jurisdição, qual seja, a de dizer o direito em casos concretos conflituosos que se apresentem para sua decisão, a de decidir controvérsias entre pretensões excludentes a partir do direito vigente. Ora, como veremos, a judicialização que é condenada por Habermas é exatamente aquela que ultrapassa a fronteira da adjudicação e invade as funções políticas do legislativo ou do executivo.
(continua)
Segundo uma compreensão esquemática que se tornou popular no Brasil, Dworkin e Habermas representam pólos opostos quanto à judicialização. Ora, seguindo a recomendação do parágrafo anterior, precisamos saber se a judicialização que Dworkin defende e a judicialização que Habermas ataca são ou não a mesma judicialização. Para dar essa resposta, seguirei o roteiro do texto "A leitura moral da constituição", integrante de "O direito da liberdade", de R. Dworkin, e do texto "Paradigmas do direito", integrante do vol. II de "Direito e democracia: entre facticidade e validade", de J. Habermas.
Em "A leitura moral da constituição", Dworkin defende que os conceitos e princípios básicos consagrados em qualquer texto constitucional têm significado e alcance moral, motivo por que apenas uma leitura que lhes dê conteúdo moral e lide com eles a partir de posições moralmente consistentes pode fornecer uma abordagem constitucional satisfatória.
Dessa tese central Dworkin passa a uma afirmação secundária, segundo a qual aqueles que defendem o princípio da democracia se sentem desconfortáveis com juízes que decidem a partir de posições morais pessoais e prefeririam que essas decisões, se forem realmente necessárias, fossem tomadas por representantes eleitos e dotados de legitimidade para tal.
Dworkin lança mão de uma série de argumentos para tentar provar que esses pensadores estão errados em pensar assim, que a democracia deve ser pensada como um sistema em que os direitos são maximamente preservados, e não onde sempre prevalece o princípio majoritário. Segundo Dworkin, uma pessoa só tem razões para aceitar as decisões do todo mesmo quando discorda delas se se sentir um integrante ativo e respeitado desse todo, coisa que só é possível na medida em que seus direitos estejam devidamente assegurados.
A conclusão de Dworkin, que repete aquela que ele já propagandeava desde "Os juízes políticos e o Estado de Direito", na coletânea "Uma questão de princípio", é de que é inevitável que na interpretação e aplicação das disposições constitucionais os juízes tomem posições que têm compromissos políticos e morais radicais, representando isso não uma ofensa, mas antes uma verdadeira necessidade da hermenêutica constitucional.
Nada disso, contudo, ultrapassa a fronteira da adjudicação. Chama-se "adjudicação" (tradução tosca do inglês "adjudication") à função tradicional da jurisdição, qual seja, a de dizer o direito em casos concretos conflituosos que se apresentem para sua decisão, a de decidir controvérsias entre pretensões excludentes a partir do direito vigente. Ora, como veremos, a judicialização que é condenada por Habermas é exatamente aquela que ultrapassa a fronteira da adjudicação e invade as funções políticas do legislativo ou do executivo.
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Comentários
Tenho me debruçado sobre o assunto ainda que mais quanto às dificuldades instrumentais do judiciário para fazê-lo, afinal minha área é a processual. Tento, no entanto, compreender o problema como um todo.
Entendo que para o assunto há várias dificuldades: 1a. prisma da teoria democrática (seria coerente com a conformação do Estado Democrático que o Judiciário participe de discussões tradicionalmente políticas?); 2a. há instrumentos para o judiciário fazê-lo (a conformação da adjudicação tradicional é capaz de julgar confronto de valores tradicionalmente submetidos aos valores políticos?).
Acredito que em ambas as dificuldades percebidas por mim haja necessidade de resposta contrária a chamada Judicialização da Política, desde que o Judiciário modifique sua conformação e suas funções tradicionais advindas da conformação históricamente ligada a ascenção do "liberalismo individualista".
Reputo um marco na história política do Estado o reconhecimento de direitos sociais (categorizados pelos processualistas como difusos e coletivos). É a partir dessa noção que se outorga ao Estado o dever de promover justiça distributiva entre seus membros, saindo da inércia "smithiana", promovendo novos papéis que a estrutura criada não estava pronta para responder. Criou-se direitos para os cidadãos, mas sem adaptar a estrutura para sua exigência.
Nesse momento há um agravamento ainda maior que os americanos já notaram há muito: a dificuldade contra-majoritária da democracia, em termos pobres, o medo da tirania da maioria. Esse pensamento foi o que informou o judicial review da Suprema Corte, o controle de constitucionalidade de atos legislativos.
Essa dificuldade é realmente um bom argumento para a judicialização de questões políticas, pois força a confrontar os mecanismos singelos da maioria com a coerência do raciocínio judiciário, com a necessária oitiva dos interessados. Será o Judiciário o mais adequado e legítimo meio de resolver essa dificuldade? Não sei. Gostaria de ouvir vocês nessa. Adianto que acho não ser um caminho obrigatório: a adoção pelo legislativo e executivo de mecanismos processuais v.g. audiências públicas podem transformar aqueles poderes e adequá-los às novas necessidades. Mas acho interessante a resposta judiciária, poder ligado a extração de sentido racional do ordenamento nos casos apresentados, não apenas passional ou pautada no mero interesse de classe.
Quanto a segunda parte: acredito que o Judiciário, modo de exercício do poder estatal, não precisa ficar restrito ao mecanismo da adjudicação tradicionalmente identificado na doutrina dos direitos individuais para os quais o Judiciário foi desenhado.
Essa a impressão que passa Fuller (aquele mesmo do Caso dos Exploradores de Cavernas), num artigo que depois posso passar pra vocês, de que o Judiciário não está apto para resolver conflitos policêntricos que caracterizam a discussão política. Acho que isso é uma questão de método o qual pode ser resolvido com um pouco de criatividade.
O processo judicial não precisa necessariamente decidir entre dois direitos. O exercício da jurisdição pode ser mais que isso. Pode ser a mediação racional de conflitos sociais, quando assim for melhor. Não é novidade que a jurísdição deve se adequar ao tipo de tutela, esse caso é mais uma situação em que o conflito deve ser estudado e adaptado ao tipo de solução que se quer dar.
A justiça distributiva passa por uma racionalização dos interesses. Acredito no potencial racional do judiciário que nosso Habermas diz ser o fator primordial de legitimação do poder. É isso. Queria muito discutir isso com vocês. Meu e-mail: daniel.silveira@advassociados.com.br