Ler ou não ler os textos clássicos?

A nenhum professor de filosofia do direito, que seja cioso da excelência da disciplina e se preocupe com a formação dos alunos, deve ter deixado de ocorrer a dúvida angustiante entre fornecer aos alunos textos introdutórios e comentários ou textos clássicos dos autores mais relevantes. Essa questão, que se anuncia à primeira vista como simples dilema bibliográfico diante do tempo limitado e da pouca capacidade de leitura frutífera do aluno mediano, levanta na verdade um conjunto de controvérsias mais profundas, relativas aos objetivos e à forma do ensino da filosofia do direito nos cursos jurídicos de graduação. É assim porque o que está em jogo não é somente o tipo de texto a ser oferecido, mas antes o tipo de acesso às discussões filosóficas da disciplina que ser franquear ao bacharelando em direito. Nos próximos parágrafos esboçarei dois modelos de ensino da filosofia do direito (o modelo centrado na filosofia e o modelo centrado no direito) e sua relação com fontes bibliográficas primárias e secundárias respectivamente. Em seguida, tecerei considerações acerca dos efeitos que tais abordagens costumam produzir sobre o interesse, o aprendizado e a posterior utilização dos conteúdos da disciplina por parte dos alunos. Finalmente, expressarei a minha opção em termos do modelo docente em geral e do modelo bibliográfico em especial.

Proponho distinguir dois modelos de ensino da filosofia do direito, aos quais chamarei, respectivamente, de modelo centrado na filosofia e modelo centrado no direito. Advirto, contudo, de antemão, que essa distinção não se refere, como pode talvez parecer, ao conhecido problema de saber se a filosofia do direito é melhor quando feita "de cima para baixo", quer dizer, pelos filósofos que, aventurando-se no direito, transferem para ele questões de outros campos da filosofia teórica e prática ("filosofia do direito dos filósofos"), ou se ela é melhor quando feita "de baixo para cima", quer dizer, pelos juristas que, conduzindo suas preocupações para além dos tecnicismos cotidianos, enveredam por questões a que só a especulação filosófica pode responder ("filosofia do direito dos juristas"). Essa discussão diz respeito a qual deve ser a fonte privilegiada dos problemas da disciplina, se as especulações filosóficas ou as perplexidades jurídicas, bem como a qual deve ser o critério através do qual auferir a adequação da resposta, se a profundidade e completude filosófica ou a justeza e aplicabilidade jurídica. Por isso, trata-se de questão sobre como fazer a filosofia do direito que há por ser feita, enquanto eu, mais modestamente, me proponho responder como ensinar a que já está feita, qualquer que tenham sido as fontes de inspiração de suas perguntas e os critérios de adequação de suas respostas. É importante, assim, separar as duas distinções.

O que ora chamo de modelo de ensino da filosofia do direito centrado na filosofia vê a disciplina como um corpo de teorias, problemas e respostas que foi construído ao longo do tempo pelo pensamento de certos autores célebres. Ensinar filosofia do direito seria, então, ensinar o que pensaram Austin, Kelsen, Jhering, Hart etc., bem como o que pensam hoje Alexy, Dworkin, Habermas, Unger etc. Este modelo de ensino da disciplina a visualiza como uma espécie de dimensão superior do pensamento acerca do direito, na qual habitam apenas algumas eminências intelectuais e da qual nós, simples mortais, só podemos nos aproximar para fins de contemplação teórica, assimilação mnemônica e repetição autômata das idéias articuladas por aqueles luminares do saber filosófico-jurídico. Por isso mesmo, para esse modelo de ensino da filosofia do direito, não pode haver outro objetivo para a disciplina que não inculcar teorias, de modo que privilegia um ensino expositivo e um aprendizado passivo dos conteúdos. Nada mais natural, portanto, que veja a distinção entre textos clássicos, de um lado, e comentários e introduções, de outro, como uma hierarquização qualitativa entre textos canônicos que revelam a verdadeira filosofia do direito e textos comuns que tentam apreendê-la e expô-la com maior ou menor competência. A relação entre eles seria, pois, a relação entre o original e a cópia (que depois projetará para a relação entre a aula e a prova), mantendo aquela sábia cautela de jamais esperar da segunda a mesma qualidade e profundidade da primeira.

Isso ainda não quer dizer, contudo, que o professor que adota esse modelo de ensino sempre recomende a seus alunos a direta leitura dos textos clássicos. Pode ser que experiências frustradas de introduzir essas leituras nas aulas e cobrar a reprodução de seus conteúdos nas provas tenham tornado esse professor um cético em relação ao interesse e à capacidade dos alunos, fazendo-o crer que, se não quiser aborrecer-se em vão, melhor fará passando aos alunos aquelas leituras "de segunda classe" que são as introduções e comentários. Fará isso, reforço, movido pela descrença nos alunos, e não pela crença nesses textos. Se lhe perguntam, em particular, quando não possa ser ouvido pelos discentes, se não preferiria adotar os textos clássicos aos quais só tem oportunidade de referir-se indiretamente nas aulas, ele certamente revelará que sim, mas lamentará que seu público não seja aquele com que sonha e concluirá, resignado, que tamanha ousadia deve ser guardada no mundo das utopias privadas.

O professor do modelo centrado na filosofia pode ser, contudo, mais corajoso e decidido que isso e castigar os alunos com uma bibliografia repleta dos textos clássicos que ele considera indispensáveis. Não podendo fazer estudar todos os textos principais no espaço limitado de um ou dois semestres, ver-se-á obrigado a fazer dolorosas escolhas entre os escritos canônicos existentes, optando, no final, por um mínimo de dois e um máximo de seis desses textos. Dar-se-á, então, a um penoso e exaustivo trabalho de "tradução", durante as aulas, de uma por uma das idéias principais dos textos, uma vez que a leitura que recomendou aos alunos, devido à falta de familiaridade com o assunto, com o raciocínio e com a linguagem, não terá ajudado em quase nada nem mesmo os poucos adolescentes heróicos que cumpriram essa tarefa até o fim. Se for especialmente atencioso e dedicado, responderá às dificuldades e ao progressivo desinteresse dos alunos redobrando o esforço na parte didático-expositiva e prestando auxílio particularizado àqueles em quem percebe as maiores barreiras de aprendizado. Se for rigoroso e inflexível, redrobando a dificuldade das provas e castigando com notas baixas tanto o desinteresse culpável de uns quanto o esforço frustrado de outros. Provavelmente se tornará um algoz reconhecido e marcará traumaticamente o percurso acadêmico dos alunos.

Por outro lado, o que ora chamo de modelo de ensino da filosofia do direito centrado no direito vê a disciplina como um campo mais ou menos aberto de problemas curiosos e recalcitrantes que, embora emergindo da prática jurídica do dia-a-dia, superam a capacidade da técnica jurídica ordinária de dar-lhes uma resposta. Não vê a filosofia do direito como um corpo de teorias, mas como uma atividade de reflexão em busca da solução de problemas que causam perplexidade e embaraçam o fazer cotidiano do direito. Os autores célebres, que são os produtores privilegiados da disciplina no modelo centrado na filosofia, são vistos pelo modelo centrado no direito como pensadores que forneceram respostas mais interessantes, coerentes e influentes às mesmas questões que todo jurista em algum momento se vê obrigado a responder. A filosofia do direito está, por assim dizer, não elevada acima da prática jurídica, mas misturada nela. Os anos de formação dogmática a esconderam, a afastaram, a silenciaram no espírito do aluno, mas a oportunidade redentora, no final do curso, de ter contato com a filosofia do direito a resgatará do esquecimento e lhe restituirá o destaque e a dignidade de que é merecedora.

Nessa abordagem, o aluno deve ser convidado, não a incorporar as informações sobre as teorias dos filósofos do direito mais célebres, mas a cultivar a atividade de filosofar na sua prática jurídica e a partir dela. Por isso, a distinção entre textos clássicos e textos de introdução e comentário não corresponde automaticamente a uma distinção entre textos de maior e menor qualidade. Os textos que, do ponto de vista didático, são dotados de maior valor são os que permitem ao aluno ver com mais clareza e precisão os problemas que o direito suscita e a reflexão que se deve fazer sobre eles. Nem sempre os textos clássicos atendem a essa exigência. Os autores famosos costumam escrever para um público acadêmico restrito e especializado, o que contamina suas discussões de certa obscuridade terminológica, certa tendência a estender o texto mais que o necessário e certa predileção pelos temas e argumentos mais badalados da história da disciplina como um todo ou do momento e lugar da obra em especial. São, em suma, peças de literatura especializada para um público seleto, público esse formado pelos filósofos do direito, ou seja, não por operadores do direito ocupados de praticar a reflexão filosófica como parte de sua prática jurídica, mas por pensadores em tempo integral que se dedicam à exegese dos textos canônicos e a discussões sobre tópicos de interesse puramente acadêmico, ocupando-se do direito apenas por meio de exercícios de imaginação.

Assim, a distinção entre textos clássicos e textos de apoio perde importância, em favor da distinção entre textos claros e precisos de problematização e textos obscuros e especializados de teorização. Alguns textos de autores célebres ainda poderiam, claro, ser empregados com proveito, como provam vários capítulos e artigos de Kelsen, de Hart, de Alexy, de Dworkin etc., em que esses autores descem ao mundo dos juristas de carne e osso e tentam fazê-los perceber como a prática jurídica cotidiana acaba, cedo ou tarde, requerendo alguma especulação filosófica. Contudo, a imensa maioria dos textos que são bem sucedidos nesse mister estaria do lado dos autores menos célebres, simples professores de filosofia do direito dotados de talento especial para colocar problemas e apresentar possíveis soluções alternativas, sempre com aquele rigor analítico que não compromete a elegância didática.

O contato reiterado dos alunos com essa filosofia do direito para juristas, se desperta, por um lado, o interesse e até certo prazer na discussão filosófica, alimenta, ao mesmo tempo, uma dificuldade e uma hostilidade ainda maiores em relação aos textos da filosofia do direito para filósofos. Fomenta-se uma reserva e uma resistência aos textos clássicos, cumulada com a inabilidade de decifrar sua linguagem e de relacionar suas idéias com a prática toda vez que essa elucidação e conexão não estiverem feitas explicitamente pelo autor. O aluno terá sido acostumado a ser estimulado a pensar por si e recusará contemplar o produto acabado do pensamento do outro. Não verá razão para investir na leitura de um texto clássico obscuro e árido o triplo do tempo que gastaria para entender a mesma coisa exposta de forma simples e constextualizada pelos autores introdutórios. No fim das contas, o aluno, quando se trata de conhecer a filosofia do direito que já existe, se terá tornado dependente e refém dos textos de apoio.

Eis os dois modelos. Qual deles é melhor?

Honestamente, acho que é uma questão de temperamento, de estilo, de visão de mundo, de ideal acadêmico, de simpatia e afinidade intelectual de cada um. Alguém poderia preferir o modelo centrado na filosofia e dizer que é porque ele é mais profundo e outro poderia preferir o modelo centrado no direito e dizer que é porque ele é mais prático. Mas seria inócuo, porque adotar o critério do mais profundo ou o critério do mais prático já é, na verdade, optar por um dos dois modelos. Se o defensor do modelo centrado na filosofia perguntar ao defensor do modelo adversário: "E por que diabos devia preocupar-me com a prática, se ela limita a profundidade?", o cultor do modelo centrado no direito não poderá dar uma resposta que seja realmente convincente para o seu interlocutor, embora de fato possa dar muitas boas respostas que não alcancem esse resultado. Se o defensor do modelo centrado no direito perguntar ao defensor do modelo adversário: "E por que diabos devia preocupar-me com uma profundidade que nada tem a dizer para a prática?", o cultor do modelo centrado na filosofia também não poderá dar uma resposta que seja realmente convincente para o seu interlocutor, embora de fato também possa dar muitas boas respostas que não alcancem esse resultado. Boas respostas de um lado, boas respostas de outro, e nenhuma conversão do adversário em aliado em nenhum dos casos - são todos sinais de que nos encontramos diante de alternativas incomensuráveis, indecidíveis, insuperáveis. Por isso concluo que se trata de uma questão de identidade intelectual.

Contudo, para não ficar em cima do muro, forneço a minha resposta pessoal, que não é melhor que a resposta pessoal de nenhum outro professor da disciplina, mas vincula e orienta a minha prática cotidiana. Para mim, o modelo centrado no direito é melhor. Primeiro, porque se trata de alunos de direito, não de filosofia, e portanto uma práxis reflexiva que contribua para o ofício do direito é preferível a uma especulação teórica que se distancie desse ofício. Segundo, porque são alunos de graduação, nenhum dos quais deveria ser submetido à aridez e às dores de cabeça que os textos teóricos mais especializados costumam proporcionar, pois não têm, pelo menos não até então, nenhuma intenção declarada de seguir carreira como estudiosos acadêmicos do direito. Terceiro, porque afasta da disciplina aquela desconfiança e hostilidade de que normalmente ela é cercada, suscitando certa alegria e certo prazer de descobrir-se capaz de pensar coisas ao mesmo tempo interessantes e úteis e de articulá-las com a atividade a que dedicará os dias de sua vida.

Por tudo isso, sinto-me eticamente convocado a adotar, ao ensinar filosofia do direito, para alunos da graduação em direito, o modelo centrado no direito. Nada impede, contudo, que outros pensem e optem diferentemente.

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