Habermas: A Tensão entre Facticidade e Validade
[Obs. Os asteriscos e números entre colchetes remetem às notas do fim da postagem, que fornecem ao iniciante um glossário reduzido de algumas expressões empregadas]
Alinho-me ao pensamento de Habermas, mas sou um filósofo analítico. Essa condição ambígua gera certo conflito (certa "tensão", para brincar com o título dessa postagem) entre dois aspectos do meu interesse. Por um lado acredito no projeto da hermenêutica crítica [*1] (uma idéia profundamente continental [*2], profundamente alemã): interpretar as instituições e estruturas sociais em termos comunicativos, trazendo à tona seus pressupostos de validade e tornando possível uma perspectiva crítica e emancipatória em relação a elas. Por outro lado acredito no procedimento da filosofia analítica [*3] (uma forma de pensar tipicamente insular [*4], tipicamente inglesa): conhecer o mundo através da linguagem com que o construímos, aclarando os conceitos e expressões a partir de seus usos comuns ou especializados e evidenciando as condições e implicações contidas em seu significado. Esses dois programas - emancipação e aclaramento - têm o ponto comum de realizarem-se no espírito da guinada lingüística [*5], quer dizer, fazendo da linguagem ou o seu meio privilegiado de acesso ao objeto (hermenêutica crítica) ou até o seu objeto por excelência (filosofia analítica). Mas têm também seus pontos de distinção. Um deles é o alcance de seu propósito: enquanto a hermenêutica crítica quer descortinar significados profundos e ocultos e ir além do seu objeto, a filosofia analítica quer apenas tornar claros os significados usuais e imediatos e ter uma visão clara do seu objeto. Outro ponto de distinção é o estilo literário e o manejo lingüístico-conceitual que uma e outra praticam (aspecto a que me aterei mais nessa postagem): enquanto a hermenêutica crítica (como, de resto, a filosofia continental em geral) se utiliza largamente do expediente europeu de usar conceitos e expressões em sentido metafórico, imagético, dialético, sugestivo, de sabor literário, a filosofia analítica rejeita esse expediente, acha-o obscuro, confuso, inadequado e até desonesto, dando preferência a uma linguagem denotativa, descritiva, empírica, de sabor ora científico, ora jornalístico.
Essa última diferença entre hermenêutica crítica e filosofia analítica se mostra bem no objeto que vou abordar agora. Habermas diz que o direito só pode ser compreendido a partir da noção de uma "tensão entre facticidade e validade" [*6]. "Facticidade" seria o plano dos fatos, das coisas como elas são e funcionam, a dimensão do êxito real, cega para questões de certo/errado. "Validade" seria o plano dos ideais, das normas que se reconhecem como corretas e que justificam as ações, dos valores que se reconhecem como importantes e que justificam as escolhas, das utopias que se reconhecem como inspiradoras e justificam as instituições existentes e das esperanças que se reconhecem como necessárias e que justificam seguir em frente apesar de todos os desapontamentos. Pois bem, concebido apenas em termos de facticidade (como teriam feito o positivismo jurídico [*7] e o realismo jurídico [*8]), o direito não consegue justificar sua obrigatoriedade e, por conseguinte, explicar sua legitimidade ao longo do tempo. Concebido apenas em termos de validade (como teria feito a escola do direito natural [*9]), o direito perde seu contato e seu engajamento com o mundo concreto dos fatos, das ações e dos interesses e se torna uma retórica vazia sobre bem e justiça, que não é capaz de coordenar realística e eficazmente as relações em sociedade. Dessa forma, o verdadeiro lugar do direito é entre os planos da facticidade e da validade, como um "médium" (elo, canal, ponte) entre os dois, tornando a facticidade válida o bastante para ser obrigatória e aceitável, e a validade factual o bastante para ser viável e concretizável ao longo do tempo.
Ora, é evidente que a idéia de uma "tensão entre facticidade e validade" tem um pouco de metáfora e um pouco de dialética. É, portanto, o tipo de artigo tipicamente encontrado na linguagem da filosofia continental, e não da filosofia analítica. Eu, como filósofo de temperamento analítico, a vejo com certa suspeita na forma em que está enunciada, embora acredite que, "analiticamente depurada", ela possa adquirir um sentido mais preciso e lançar alguma luz sobre fatos concretos.
A meu ver, "a tensão entre facticidade e validade" deve ser desdobrada em quatro conceitos distintos:
a) A "tensão entre facticidade e validade" deve ser entendida, em primeiro lugar, como uma teoria sobre o modo como o direito é percebido pelos sujeitos: o direito é percebido ao mesmo tempo como fato (algo que está posto como ato de poder e que deve ser obedecido sob ameaça de sanção) e como norma (algo que pode ser reconhecido e obedecido voluntariamente por um agente racional). Essa concepção se baseia na idéia de que o direito moderno é produzido democraticamente, motivo por que as normas que se tornam obrigatórias ao fim do procedimento legislativo carregam consigo a presunção de serem esclarecidas e corretas. Essa idéia depende diretamente da concepção habermasiana sobre a democracia deliberativa.
b) A "tensão entre facticidade e validade" deve ser entendida, em segundo lugar, como uma teoria sobre as características de normas jurídicas bem sucedidas: as normas devem poder ser obedecidas tanto em vista dos interesses do agente, quanto em vista da correção (presumida, derivada do procedimento que a gerou) de seu conteúdo. Para isso não devem ser nem tão realistas que coloquem os agentes num puro jogo de interesses em que prevalece o mais forte ou o mais esperto, nem tão idealizantes que esperem dos agentes que renunciem voluntariamente aos seus interesses particulares em busca de um bem maior ou geral. Devem ser tais que consigam ao mesmo tempo corresponder a expectativas ideais e "engatar-se" aos interesses e condutas reais dos agentes concretos.
c) A "tensão entre facticidade e validade" deve ser entendida, em terceiro lugar, como uma teoria sobre as razões do êxito do direito enquanto estrutura de integração entre os indivíduos e grupos na sociedade: mesmo estes indivíduos e grupos tendo interesses conflitantes e orientações éticas diversas, são integrados pelo direito na medida em que este oferece iguais oportunidades de êxito para os interesses de um lado e do outro segundo regras imparciais e corretas e não estende sua força obrigatória para além do plano moral, quer dizer, do plano daquelas regras e deveres que podem ser universalmente reconhecidos como corretos e necessários, não exigindo, portanto, renúncias injustificadas nem fazendo ingerências indevidas nos ideais éticos de cada qual. (Sobre esse último ponto, ver a postagem "Filosofia moral: ética e moral", de novembro/2007, nesse blog).
d) Finalmente, a "tensão entre facticidade e validade" deve ser entendida, em quarto lugar, como uma teoria sobre as razões do êxito do direito enquanto estrutura de integração entre sistemas e mundo-da-vida (Ver postagem sobre "Teoria da ação comunicativa, Tomo I", de outubro/2005, nesse blog). Uma vez que Habermas caracterizou os sistemas de ação econômica e política como estruturas voltadas exclusivamente para o êxito e cegas para questões normativas e culturais e caracterizou o mundo da vida como espaço de comunicação cotidiana em que se manifesta o mundo da história e da cultura, abriu um abismo entre os dois que não podia ser vencido unilateralmente por nenhum deles. Como, no entanto, uma integração de ambos é necessária, porque da reprodução material, produzida pelos sistemas, depende a reprodução simbólica, conduzida pelo mundo da vida, mas também da reprodução simbólica depende a reprodução material, um depende do outro e não pode funcionar bem senão em coordenação com ele. O direito exerceria, então, o papel de ser esse mediador bifronte entre sistemas e mundo da vida, capaz de traduzir a linguagem do êxito em linguagem de correção e vice-versa. (É claro que essa dimensão da "tensão entre facticidade e validade" só existe para quem acredita na teoria social de Habermas).
Acredito que, assim, o conceito de "tensão entre facticidade e validade" se torna um pouco menos metafórico e obscuro. Ganha mais e clareza, em precisão e em potencial teórico-explicativo.
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*1 "Hermenêutica" é a teoria da interpretação de textos ou de objetos que, embora não sendo textos em sentido literal, podem ser vistos como textos para fins de interpretação, como costumes, comportamentos, instituições etc. "Hermenêutica crítica" não é uma escola de pensamento, mas sim uma forma de abordagem do objeto, de que se servem autores das mais distintas escolas de pensamento: estruturalistas como Deleuze, pós-estruturalistas como Foucault, pós-modernistas como Derrida, transcendentalistas como Levinas, neopragmatistas como Rorty, republicanistas como Pettit, espiritualistas como Ricoeur, deliberacionistas como Habermas. Essa forma de abordagem consiste na tentativa de, mediante a interpretação de instituições e estruturas sociais (de crença, de gosto, de pensamento, de ação etc.), denunciar os constrangimentos não necessários e não legítimos que elas impõem, com vista a eventual superação desses constrangimentos (emancipação).
*2 "Continental" se refere à Europa não-britânica, principalmente à Alemanha e à França, países cuja tradição filosófica se desenvolveu sob inspiração do romantismo, do historicismo, da hermenêutica e do estruturalismo. São históricas e íntimas suas conexões com as artes, com a literatura, com as ciências humanas, com a teologia e com a psicanálise (os saberes moles - "soft knowledges"). Para os defensores mais radicais da filosofia dita continental, a filosofia dita analítica é uma empresa superficial e potencialmente ideológica, convicta do caráter racional e exato da linguagem e da eficiência das ferramentas lógicas e lingüísticas das ciências empíricas.
*3 "Filosofia analítica" também não é o nome de uma escola de pensamento, mas sim de uma forma de abordagem do objeto de que se servem pensadores de escolas de pensamento muito distintas: neopositivistas como Carnap, empiristas como Russel, contextualistas como (o segundo) Wittgenstein, racionalistas críticos como Popper, comportamentalistas como Ryle, neopragmatistas como Quine, dualistas como Searle, contratualistas como Rawls, metafísicos como Lewis etc. Essa forma de abordagem consiste em tornar maximamente claro e preciso o significado de certos termos e expressões científicos e filosóficos, a fim de desfazer as obscuridades e pseudo-problemas criados pela má compreensão da linguagem, bem como elaborar concepções mais acuradas do que as coisas designadas por aqueles termos e expressões verdadeiramente são.
*4 "Insular" se refere à Europa britânica e, por extensão, aos Estados Unidos e aos demais países anglófonos, cuja tradição filosófica se desenvolveu sob inspiração do nominalismo, do empirismo, do pragmatismo e do neopositivismo. Suas conexões são com a lógica, a matemática, as ciências naturais e as ciências tecnológicas (os saberes duros - "hard knowledges"). Para os defensores mais radicais da filosofia dita analítica, a filosofia dita continental é uma empresa vazia, vaga, obscura e mistificadora, por trás de cujas belas metáforas e sugestivas imagens não se encontra qualquer rigor conceitual ou verdade empírica digna de consideração.
*5 "Guinada lingüística" foi uma mudança de paradigma do pensamento filosófico (para seus praticantes; para seus críticos não passa de uma "moda intelectual") que, partindo da premissa de que não temos acesso a outro mundo que não àquele que construímos intersubjetivamente por meio da linguagem, dirigiu para a linguagem o esforço de investigação, acreditando que o conhecimento do mundo é, na verdade, o conhecimento das regras e significados lingüísticos que o tornam possível. Essa idéia comum, contudo, se ramificou das mais diversas maneiras conforme os autores, as escolas e os projetos que se apropriaram dela.
*6 HABERMAS, Jürgen, "Direito e democracia: entre facticidade e validade", publicado no Brasil pela editora Tempo Brasileiro.
*7 Modernamente, "positivismo jurídico", ou "juspositivismo", designa a concepção, exposta e defendida sobretudo por Hans Kelsen e Herbert L. A. Hart, de que o direito é, fundamentalmente, um conjunto de regras postas pelo Estado. Tais regras seriam obrigatórias não em razão de seu conteúdo ou valor moral, político etc., mas sim em razão de uma convenção final (norma fundamental em Kelsen, regra de reconhecimento em Hart) que lhes atribui validade jurídica. Elas seriam obedecidas por causa do temor à sanção (Kelsen) ou do respeito à convenção social (Hart), mas, em qualquer caso, independentemente de que o agente aprove o conteúdo da regra a que obedece. A regra jurídica, além disso, representaria um mínimo normativo, prévio e seguro, com que dirimir conflitos que não se poderiam resolver com base nos interesses conflitantes nem nas morais rivais das partes envolvidas.
*8 "Realismo jurídico" designa uma tendência de abordar o direito mais em termos das decisões que os juízes tomam do que das regras a que eles dizem obedecer. Plantada por Oliver Wendell Holmes e Roscoe Pound e depois levada adiante, na vertente escandinava, por Axel Hägerström, Alf Ross e Karl Olivecrona e, na vertente norte-americana, por Benjamin Cardozo, Wesley Hohfeld, Karl Llewellyn, Felix S. Cohen, Jerome Frank etc., e hoje em dia por Robert Posner e Brian Leiter, a idéia central é que os juízes reagem mais aos fatos do caso que às regras que os disciplinam. O primeiro contato com os fatos do caso já lhes sugere uma solução que lhes parece boa ou satisfatória, independentemente das regras e antes mesmo de consultá-las. As regras só são buscadas depois que a decisão está tomada, com intuito de fornecer a ela uma justificação jurídica "a posteriori", mera satisfação que prestam ao sistema jurídico, pura racionalização posterior capaz de convencer até mesmo o próprio julgador de que sua decisão foi inspirada por aquelas regras ou baseada nelas.
*9 "Escola do direito natural", ou "jusnaturalismo", designa um conjunto de concepções muito diversas no formato, no propósito e nas conclusões, tendo como ponto comum a crença de que existem regras "naturais", justas e perfeitas em essência, anteriores e superiores ao direito positivo, às quais as regras deste último devem corresponder tanto quanto possível para que se instaurem a paz, a justiça e a felicidade entre os homens. Foi defendida por Aristóteles e Cícero na Antigüidade, Agostinho e Aquino no Medievo, Hobbes, Locke, Rousseau e Kant na Modernidade e tem em John Finnis seu grande defensor atual.
Comentários
calreou mt meu entendimento sobre faticidade e validade
Será que o autor quer dizer que o Direito não pode ser concebido como o "direito positivo"(normas postas sob coerção), nem como um instrumental em que expressos valores sociais,mas um pouco de cada?
Onde entra aí o agir comunicativo, a razão comunicativa e o conteúdo elocucionário da fala?
Muito complexo.
onde entra o agir comunicativo, razão comunicativa e conteúdo elocucionário?
parabéns!
Bruno
Sou iniciante em Habermas e alguns termos ainda não compreendo direito.
Ajudou-me a clarear o conceito "tensão entre facticidade e validade".
Parabéns pela didática.
Já estava cansada de ler a respeito do assunto, mas com autores que só repetiam os termos sem qualquer explicação para leigos.
Marcelo Alvarenga - São João del-Rei- MG