O que é? (1): Dever-ser
Na filosofia vale a regra de que as idéias mais simples são as mais difíceis de explicar. Dever-ser é uma dessas idéias simples, na verdade tão simples que não pode ser definida em termos de alguma outra coisa. Se eu digo, por exemplo, que o dever-ser é "aquilo que se deve fazer", a definição já inclui a idéia de "dever", que é a idéia que se deveria definir. Se digo que o dever-ser é "aquilo que é obrigatório, permitido ou proibido", essa definição se serve de três outras idéias - obrigatório, permitido, proibido - que só podem ser explicadas recorrendo à idéia de dever-ser: obrigatório é aquilo que se deve fazer, permitido é aquilo que não se deve nem fazer nem não fazer, proibido é aquilo que se deve não fazer. Como se vê, há pouca esperança de que a idéia de dever-ser possa ser explicada com recurso a alguma idéia mais simples que não contenha referência direta nem indireta ao dever-ser.
Talvez isso ocorra porque dever-ser seja uma daquelas idéias irredutíveis, mais ou menos intuitivas, a partir das quais organizamos as outras idéias e que, por isso mesmo, não pode ser organizada a partir delas. Não quero entrar nesse aspecto, sobre se o dever-ser é ou não intuitivo, porque me desviaria muito de meus propósitos iniciais. Apenas quero advertir que dizer que o dever-ser é uma idéia intuitiva não é dizer que temos conhecimento intuitivo das coisas que devem ou não devem ser. Ser uma idéia intuitiva é uma coisa: quer dizer que temos um conhecimento intuitivo do que significa dizer que alguma coisa deve ou não deve ser. Ter conhecimento intuitivo das coisas que devem ou não devem ser é outra coisa: seria saber, por intuição, se uma coisa é certa ou errada, boa ou má, bela ou feia etc. É perfeitamente possível que nosso conhecimento do que é bom ou mau não seja intuitivo, mas sim aprendido, reflexivo, e no entanto a idéia de dever-ser seja intuitiva, de modo que saibamos por intuição distinguir uma coisa que é de outra que deve ser.
Se não é possível dizer o que o dever-ser é, é possível, contudo, dizer como empregamos essa idéia na nossa linguagem cotidiana. Nesse caso troco a pergunta, um tanto metafísica: "O que é o dever-ser?", pela pergunta, mais modesta e provável de ser bem respondida: "O que significa dizer que alguém deve ou não deve fazer alguma coisa?".
Vejamos um exemplo. Entro na sala de leitura de uma biblioteca e me deparo com uma placa que diz: "Silêncio!". Porque estou acostumado com bibliotecas e com placas de aviso, sei que o que a placa quer dizer é: "Mantenha-se em silêncio". (Vou-me permitir omitir o processo mais ou menos complexo pelo qual se passa da primeira à segunda fórmula, apenas para manter-me focado no meu ponto de interesse principal). O aviso da placa é, portanto, uma ordem: "Mantenha-se em silêncio". Essa ordem é reveladora de um dever-ser: eu "devo" me manter em silêncio.
Que quer dizer a sentença: "Eu devo me manter em silêncio"? Certamente não quer dizer que eu me mantenho em silêncio, porque ela não é uma descrição do que faço, é uma ordem do que devo fazer; também não quer dizer que me manterei em silêncio, porque ela não é uma predição do que farei, e sim uma ordem do que devo fazer. Se fosse uma descrição ou predição do meu comportamento, então seria falsa toda vez que o meu comportamento fosse outro que não manter-me em silêncio. Se eu ficasse conversando com um colega, gritando com a atendente ou cantando a música que ouço em meu i-pod, isso tornaria falso o que a placa diz.
É isso o que acontence, por exemplo, com outro tipo de placa, aquela que se coloca nos bancos de madeira que acabaram de ser pintados, dizendo: "Tinta fresca". Embora esse tipo de placa contenha uma ordem implícita ("Não sente aqui"), o seu conteúdo expresso é uma descrição, algo como "A tinta com que esse banco foi pintado ainda está fresca". Ora, é claro que isso não seria verdade se o banco não tivesse sido pintado ou se a tinta não estivesse mais fresca. Isso poderia acontecer se o funcionário responsável tivesse posto a placa no banco errado ou esquecido de tirá-la mesmo depois de um dia inteiro. Nesse caso, o fato de a tinta não estar fresca, quer dizer, o fato contrário ao fato que a placa informa, tornaria o conteúdo do aviso falso. Isso ocorre porque a placa contém uma informação sobre o ser, quer dizer, sobre algo que é (no caso, uma tinta que está fresca), e se o ser não é do modo como ela diz que ele é (no caso, se a tinta não está fresca), então a informação é falsa.
Mas a placa de silêncio não contém nenhuma informação sobre o ser. Ela não quer me informar o que ou como o ser é (por exemplo, me dizer que a sala de leitura está silenciosa), mas sim o que ou como o ser deve ser (por exemplo, que a sala de leitura deve ser silenciosa, ou seja, que as pessoas que estão nela devem manter-se em silêncio). Por isso, se as pessoas, a despeito do aviso, não se mantêm em silêncio, isso não torna "falso" o conteúdo do que a placa diz. Tanto é assim que o bibliotecário pode vir e chamar atenção do usuário barulhento, dizendo: "Senhor, veja o que diz a placa: o senhor deve se manter em silêncio". Quer dizer que aquilo que a placa diz não se tornou "falso" quando ele se comportou de outra maneira, mas, ao contrário, a maneira como ele se comportou, na medida em que não se conformou ao que a placa diz, se tornou passível de reprovação, com base justamente na validade do aviso da placa.
Então a placa não diz como me comporto nem prediz como me comportarei. Ela na verdade prescreve ou regula como devo me comportar, no caso, que devo me manter em silêncio. Mas isso é o que queremos esclarecer. Que significa a sentença: "Eu devo me manter em silêncio"?
Uma sugestão tentadora seria dizer que significa que alguém quer que eu me mantenha em silêncio. Nesse caso o aviso da placa seria o comunicado de um ato de vontade, uma informação sobre o querer de alguém. De quem? Talvez do dono da biblioteca, do bibliotecário, das outras pessoas presentes à sala de leitura, de um sujeito indeterminado, de toda a sociedade, de Deus etc. Não importa. Por ora devemos nos preocupar em saber se o "dever" pode ser interpretado em termos de "querer". Se concluirmos que pode, aí nos preocuparemos em assinalar quem é que quer o quê em cada caso.
Há um teste analítico que pode ser aplicado a esse caso. Quando dizemos que A é B, quer dizer, que uma coisa qualquer (A) é uma outra coisa qualquer (B), dizemos ao mesmo tempo, ainda que não o percebamos, que seria impossível que A fosse verdadeiro e B fosse falso, ou vice-versa, para o mesmo caso. Por exemplo, se dizemos que o sal de cozinha é a substância NaCl, dizemos também, mesmo sem perceber, que é impossível que alguma coisa seja sal de cozinha e não seja NaCl, ou que seja NaCl e não seja sal de cozinha. Se for possível pelo menos um caso em que algo é sal de cozinha mas não é NaCl, ou é NaCl mas não é sal de cozinha, já não poderemos dizer que o sal de cozinha é a substância NaCl. Quer dizer, como a sentença "A é B" implica que "Toda coisa que é A é também B e toda coisa que é B é também A", por conseqüência implica também que "É impossível que alguma coisa seja A e não seja B ou que seja B e não seja A". Se se mostrar que na verdade isso é possível, desfaz-se a afirmada identidade entre A e B. (Esse teste se chama "teste de universalização da identidade", porque verifica se a afirmada identidade entre A e B vale para todos os casos possíveis).
Ora, voltemos agora ao nosso exemplo. Estamos examinando se a sentença "Eu devo me manter em silêncio" pode ser interpretada como "Tal pessoa quer que eu me mantenha em silêncio". Se aplicarmos a essa hipótese o teste analítico de que falamos acima, entenderemos que: se "Eu devo me manter em silêncio" é o mesmo que "Tal pessoa quer que eu me mantenha em silêncio", então seria impossível que "Eu devo me manter em silêncio" fosse verdadeiro (quer dizer, que eu devesse realmente me manter em silêncio) quando "Tal pessoa quer que eu me mantenha em silêncio" fosse falso (quer dizer, quando a tal pessoa não quisesse que eu me mantivesse em silêncio), bem como seria impossível que "Eu devo me manter em silêncio" fosse falso (quer dizer, que eu não devesse me manter em silêncio) quando "Tal pessoa quer que eu me mantenha em silêncio" fosse verdadeiro (quer dizer, quando a tal pessoa realmente quisesse que eu me mantivesse em silêncio).
Digamos que a tal pessoa fosse, por exemplo, o bibliotecário. Nesse caso "Eu devo me manter em silêncio" seria o mesmo que "O bibliotecário quer que eu me mantenha em silêncio". Deveríamos agora nos perguntar: Há pelo menos uma situação concebível em que eu devesse me manter em silêncio mesmo que o bibliotecário não quisesse isso ou em que eu não devesse me manter em silêncio mesmo que o bibliotecário quisesse isso? Suponhamos a seguinte situação: O bibliotecário está entendiado, não suporta mais a mesmice da biblioteca, está torcendo que alguma coisa de excepcional aconteça para agitar aquele dia monótono. Suponhamos que, quando eu passo pelo balcão e peço ao bibliotecário informação sobre um dos livros que procuro, ele aproveita para me confessar esse seu desejo e me pedir que eu o realize, por exemplo, pondo uma música dançante, gritando coisas para os outros usuários, lendo em voz alta os parágrafos do livro que estou consultando etc.
Ora, parece razoável que, mesmo o bibliotecário querendo e me pedindo que fizesse isso, eu continuasse devendo me manter em silêncio. Aparentemente, o desejo do bibliotecário não suspende a validade da ordem de que eu me mantenha em silêncio (na verdade, ele não está suspendendo a validade da ordem, mas sim me pedindo que viole a ordem, o que pressupõe que ela segue sendo válida). Essa ordem parece valer independentemente de que o bibliotecário queira ou não queira que as pessoas se comportem daquela maneira. Assim, mesmo que seja verdade que o conteúdo da ordem da placa de aviso (que as pessoas presentes se mantenham em silêncio) é o que o bibliotecário costuma querer que aconteça, o fato de que ele assim queria ou assim não queira não é o que torna a ordem válida.
(continua)
Comentários
Obrigado
João Costa
Obrigada pelos exemplos e explicações!!!!!
Maria Luiza
2011