A propósito da palestra "A invisibilização dos princípios jurídicos...", do Prof. Sandro Alex (1)
Na palestra do dia 14/11/07, relatada em postagem anterior deste blog, o Prof. Sandro Alex fez, entre outras, uma afirmação acerca da noção de "memória" que procurarei refutar nessa postagem: a afirmação de que o "paradoxo constitutivo" da memória é que ela, para existir, depende do esquecimento. Começo enunciando como essa tese foi apresentada.
A afirmação de que o "paradoxo constitutivo" da memória é que ela, para existir, depende do esquecimento (ilustrada pelo exemplo literário da personagem Irineu Funes, do conto "Funes, o Memorioso", de Jorge Luís Borges, também postado neste blog) se apóia mais ou menos no seguinte argumento: de tudo que experimentamos, algumas coisas formam significação, outras não formam; as que formam permanecem acessíveis à lembrança (integram a memória); as que não formam são descartadas (esquecidas); assim, só podemos reter algumas coisas na memória à medida que esquecemos de todas as outras; portanto, a memória depende do esquecimento.
Refutarei agora aquela afirmação, com base nos seguintes argumentos.
- Em primeiro lugar, mesmo que a tese fosse verdadeira, seria um equívoco interpretá-la como um "paradoxo". A memória depender do esquecimento seria um paradoxo apenas se, para guardar uma coisa na memória, fosse preciso esquecê-la. Nesse caso, seria preciso fazer duas coisas reciprocamente contraditórias e excludentes a respeito da mesma coisa. Se, contudo, a tese afirma que, para guardar certas coisas na memória, é preciso esquecer outras coisas (e não as mesmas), então o que na verdade ocorre é que a memória incide sobre certas coisas e o esquecimento incide sobre certas outras, não havendo, aí, qualquer paradoxo. Seria como dizer que, para servir-me um copo d'água, a partir de uma garrafa, sem fazê-lo transbordar, é preciso pôr uma porção de água no copo e deixar o restante da água na garrafa, o que não é paradoxo nenhum. Paradoxo seria que, para me servir de um porção de água no copo, precisasse deixar essa mesma porção de água fora do copo. Assim, chamar a (suposta) dependência da memória (de certas coisas) em relação ao esquecimento (de outras coisas) de "paradoxo" é fazer um jogo de palavras sem muita razão de ser. Poderíamos no máximo dizer que se trata de uma "situação curiosa", embora logicamente compreensível e até necessária.
- Em segundo lugar, mesmo que a tese fosse verdadeira, ela valeria apenas para uma memória finita. Não há nada de logicamente impossível em representar uma memória infinita (como a de Funes, ou, para ir mais longe, a de Deus) que fosse capaz de reter todos os detalhes de todas as experiências. Se, contudo, mesmo aceitando essa possibilidade, o luhmanniano dissesse: "Sim, mas mesmo uma memória infinita não poderia evocar todas as suas memórias ao mesmo tempo, mas apenas uma ou, no máximo, algumas delas por vez", haveria que fazer algumas considerações: memória é uma coisa, lembrança é outra. Memória é um acervo de informações e experiências registradas, passíveis de serem evocadas pela lembrança; lembrança é a evocação de uma ou mais informações ou experiências entre as disponíveis na memória. Ao dizer que não se pode evocar todas as memórias de uma vez, está-se falando não mais de memória, e sim de lembrança, e o que se quer dizer é que só faz sentido falar de evocação de uma ou mais memórias, se algumas delas forem evocadas e outras permanecerem não evocadas. Contudo, as memórias não evocadas não são "esquecidas", mas apenas "não lembradas" naquele momento, nada impedindo que o sejam noutro momento. De qualquer maneira, numa memória infinita, seja a memória, seja a lembrança de modo algum dependeriam do esquecimento.
- Em terceiro lugar, o exemplo anterior, da memória infinita, mostra que não existe dependência intrínseca entre memória e esquecimento, de modo que repercute na análise dessa relação inclusive para o caso de uma memória finita. Fixado que memória e esquecimento não incidem sobre os mesmos objetos, e sim sobre objetos diferentes, poderíamos dizer que temos, por exemplo, memória de X e esquecimento de Y. Dizer que a memória de X depende do esquecimento de Y é dizer que, se eu não me esquecer de Y, não lembrarei de X. Ora, digamos que eu tenha me encontrado com você e você tenha me dito "Telefone-me ao meio-dia" ao mesmo tempo em que estava com uma camisa vermelha. Digamos, agora que, mais tarde, eu me lembre que você disse "Telefone-me ao meio-dia", mas não me lembre a cor da camisa com que você estava quando me disse isso. Ora, pode ter acontecido que, devido a um limite de foco e concentração, eu não tenha realmente percebido que você estava com uma camisa vermelha, ou pode ser que tenha percebido na hora, mas, como essa não se mostrou uma informação relevante para situações posteriores, eu tenha me esquecido disso. Numa situação assim, faz sentido dizer que eu guardei na memória o que você disse, ao passo que releguei ao esquecimento a cor da sua camisa. Mas não faz nenhum sentido dizer que eu somente guardei na memória o que você disse porque releguei ao esquecimento a cor da sua camisa. Prova disso é que eu poderia ter guardado ambas as coisas na memória.
- Em quarto lugar, o que restaria para um luhmanniano dizer é apenas o seguinte: "Contudo, uma vez que a memória é finita, é razoável supor que, para cada X que se guarde na memória, exista algum Y que se relega ao esquecimento; caso se guarde X e Y na memória, haveria algum outro Z que se relegaria ao esquecimento etc.". Bem, caso se raciocine sobre os limites da memória como se raciocina sobre os limites de caixas ou sobre os limites do disco rígido de computadores domésticos, faz realmente sentido supor que seja assim. Mas, nesse caso, o enigmático "paradoxo constitutivo" se converteria numa informação banal, na simples reafirmação de que, sendo finita, a memória não pode reter tudo ao mesmo tempo. Ter-se-ia apenas dito que, numa memória finita, certas coisas, mas não todas, podem ser guardadas, enquanto outras não podem e são relegadas ao esquecimento. Não se teria mostrado, de modo algum, que o esquecimento dessas últimas foi "condição" para a memória daquelas primeiras. Logo, não se teria mostrado, de modo algum, que a memória daquelas primeiras "dependeu" do esquecimento dessas últimas.
Comentários
Bem, desde já reitero a afirmação de que trata-se de um paradoxo constitutivo esse da relação memória/esquecimento. Na sua refutação habilmente cerzida há um equívoco, pois eu não me referi a um paradoxo a partir da operação da memória focada às coisas, ao seu objeto, doutro modo ele não seria "constitutivo", mas operativo. Por paradoxo constitutivo quero assumir que a memória atua estabelecendo as distinções que lhe permitem selecionar o que se registra e o que se esquece, mas não é capaz de fazer essa seleção em relação a si mesma sob pena de bloquear-se, de impedir sua própria constituição enquanto memória e, portanto, realizar suas operações ulteriores. Faço um exemplo: um senhor californiano chamado de "EP" pelos cientistas que o acompanham, especialmente Larry Squire, neurocientista da Universidade da Califórnia em San Diego, teve em função de um Herpes boa parte do seu hipocampo cerebral devorado pelo vírus. Os hipocampos são estruturas localizadas nos lobos temporais laterais mediais e responsáveis pela memória de longo prazo. "EP" vê, fala, interage e não registra nada que dure mais que um dia. Sua incapacidade de memorizar implica na inconsciência da própria memória. Ele não vê que não vê aquilo que a memória é capaz de indicar. É o ponto cego na linguagem dos sistemas. Portanto, o exemplo dado por você, André, o do telefonema do sujeito trajado em vermelho, não refuta minha afirmação, porque ele está rigorosamente no campo daquilo que a memória observa nas suas operações e, daí, de fato isso é banalíssimo, mas não foi esse meu ponto. Falo de antes, daquilo que permite à memória constituir o aparato distintivo de seu próprio observar.
Assim, isso se aplica mesmo aos casos de memória infinita como você referiu. Mesmo aí, as operações da memória devem ser capazes de estabelecer distinções do que será ou não registrado. Cito outro exemplo real: Kim Peek, aquele mesmo que deu origem a um belo filme hoje relegado ao esquecimento, o "Rain Man", memorizou quase 12 mil livros, sendo capaz de ler uma página a cada 8 segundos ou "AJ" capaz de recordar-se de todos os fatos de sua vida, com data e hora. Ambos os casos são de pessoas extraordinariamente dotadas fisicamente com capacidade de resgate de informação do córtex cerebral em função de hipocampos especialmente desenvolvidos. "AJ", por exemplo, é caso único na literatura médica mundial. Entretanto, mesmo tais supermemórias não são capazes de registrar tudo, mas especializam-se. Peek era tão capaz de recordar-se do que comeu há uma semana como qualquer ser humano médio e "AJ" não possui nenhuma habilidade especial em relação à memorização de palavras. Haverá sempre a necessidade de um operar que revele e outro que invisibilize.A memória será sempre finita em relação à complexidade do mundo. O exemplo "lógico" como construído pela sua hipótese é metafísico e, no meu caso, não interessa, pois meu argumento é sociológico e aqui, permita-me, a metafísica é perniciosa.
Quanto ao seu convite da postagem anterior sobre o porquê eu afirmei que a exclusão através do direito é perigosa, bem poderia me satisfazer no momento dizendo -até por saber que isso não passará impunemente pela sua análise, felizmente- que esse é um exemplo clássico da invisibilização que mencionei no título da palestra, na qual o direito produz um discurso de inclusão, valorativo e principiológico, como no caso da teoria da justiça rawlsiana, operando de fato, no plano do sistema jurídico, profunda exclusão juridicizada. Isto é, sob o pano de fundo dos valores e princípios jurídicos ele produz o que deveria e deseja combater. O caso da política de cotas brasileiro creio que ilustra isso, com o efeito de, na crença de resolver-se o problema de inclusão via legal, o sistema político "adormece" na execução de políticas públicas orientadas ao incremento de investimentos em educação fundamental e média pública ampliadas e de qualidade. Na implementação de planos de cargos e salários atraentes aos professores. Na criação e disseminação das bibliotecas e laboratórios de informática etc. Tudo aquilo que o ensino privado tem para quem possa pagá-lo, independentemente de cor da pele e ascendência...
Por hoje, fico por aqui e te dou um grande abraço.
Sandro Alex Simões - CESUPA
Fizeste bem de incluir a tese do paradoxo constitutivo da memória entre as "afirmações comprimidas", porque de fato o que disseste na palestra nem de longe permitia supor o que acabaste de somar. Eu que fui mal com chamar de "refutações" o que escrevi na postagem, quando "provocações" lhes teria caído melhor.
Meu senso analítico fareja nesta discussão a carência de certas distinções conceituais. Na outra postagem distingui entre memória e lembrança com as metáforas do acervo e da evocação. Distingo agora os 4 R's, recepção, registro, retenção e rememoração, as quatro funções clássicas da memória na abordagem filosófica. Recepção é a captação da informação, registro é seu armazenamento, retenção é sua continuidade em registro e rememoração é sua evocação à mente (o que chamei de lembrança na postagem).
De posse dessas distinções podemos falar de: lapsos de recepção, no caso de informações não captadas (como o que passa na TV enquanto ela está desligada); lapsos de registro, no caso de informações captadas mas não armazenadas (como o novo corte de cabelo das moças, que olho sem ver); lapsos de retenção, no caso de informações armazenadas mas não mantidas (como as fórmulas de física e química do meu segundo grau); e lapsos de rememoração, no caso de informações retidas mas não evocadas em certo momento (como o nome que está na ponta da língua mas teima de escorregar do pensamento que tenta agarrá-lo).
Dos quatro lapsos, estaria inclinado a chamar de "esquecimento" apenas o lapso de retenção. Chamaria o lapso de recepção de não percepção, o lapso de registro de percepção sem apercepção e o lapso de rememoração de não lembrança. Contudo, você parece usar o termo "esquecimento" para referir-se tanto aos lapsos de registro quanto aos lapsos de retenção. Não registrar uma informação que atinge a percepção é uma coisa, não reter uma informação que tinha sido outrora registrada é outra coisa.
(Agora o sono me impede de continuar, mas concluo amanhã sem falta. Prometo que essas filigranas conceituais levarão a algum lugar o argumento.)
Não sei se entendi o que quiseste dizer com a seguinte passagem: "Por paradoxo constitutivo quero assumir que a memória atua estabelecendo as distinções que lhe permitem selecionar o que se registra e o que se esquece, mas não é capaz de fazer essa seleção em relação a si mesma sob pena de bloquear-se, de impedir sua própria constituição enquanto memória e, portanto, realizar suas operações ulteriores".
O exemplo do pobre EP, que não se lembra que não se lembra, não me pareceu mostrar que a memória depende do esquecimento, mas sim que certos tipos de esquecimento não podem ser percebidos e registrados como tais pela memória. Mas esse certamente não é o caso de todos os esquecimentos. Por exemplo, eu me recordo perfeitamente que um dia soube quais eram os dez primeiros números das casas decimais de "pi", sem no entato me recordar desses números agora. Esqueci-me, mas sei que esqueci, e não me parece que esse esquecimento tenha sido condição para a memorização de nenhuma outra coisa.
Acredito que, quando dizes que a memória seleciona o que será registrado e o que será "esquecido", chamas de "esquecimento" um lapso que na verdade é de "registro", e não de "retenção". Como disse antes, eu não estaria inclinado a chamar um lapso de registro de "esquecimento". Para mim isso seria como chamar de "apagar" o ato pelo qual decido não escrever alguma coisa no papel ou não gravar parte de uma entrevista numa fita magnética.
Se, porém, ignorando discordâncias de nomenclatura, tomarmos o tal "paradoxo" constitutivo como significando que o "registro depende do não-registro", acho que, depois de feitas as mesmas considerações da postagem, voltamos à informação banal de que, das coisas percebidas, nem todas são gravadas, ou, agora com os termos que introduzi nesse comentário, que, das coisas recepcionadas, nem todas são registradas.
O exemplo de uma memória que fosse capaz de registrar tudo que recepciona não pode ser dispensado com uma simples rotulação de "metafísico". Trata-se de um experimento mental, capaz de testar se existe alguma coisa de logicamente necessário na conexão entre o registro e o não-registro, e prova que não há. Se houvesse uma ligação intrínseca entre registro e não-registro, ela se revelaria mesmo numa suposta memória infinita, o que o experimento mental mostra não ser o caso. (Experimentos mentais não têm nada de "metafísico": são usados com proveito inclusive nas ciências empíricas naturais. Um exemplo representativo é o das pesquisas que, simulando universos em que a gravidade não existisse, projetam o comportamento da luz, ou de pesquisas que, supondo que a matéria total do universo fosse infinita, projetam qual seria o seu comprotamento ao longo do tempo etc.). Se numa memória finita, que registra seletivamente, o registro e o não-registro ocorrem ao mesmo tempo, isso absolutamente não prova que um depende do outro, mas apenas que uma memória seletiva não consegue registrar tudo, exatamente porque é seletiva.
As memórias de Kim Peek e AJ não provam qualquer coisa de diferente. Elas apenas operam a partir de uma seletividade diversa, capaz de registrar, bem mais que as outras, informações de uma ordem específica, enquanto outras são registradas nos mesmos níveis que as memórias comuns ou até em níveis menores.
Não chegaste a refutar o primeiro argumento da minha postagem, que permanece de pé mesmo que tua resposta posterior seja tomada como correta. Como essa relação entre memória e esquecimento pode ser um paradoxo (constitutivo ou operativo) se as coisas sobre as quais os dois conceitos contrários incidem são coisas diferentes, e não as mesmas coisas? Assume-se que seria um paradoxo ter que esquecer de X para poder memorizar X. Mas o que há de paradoxal em ter que esquecer de X para ter que memorizar Y?
Gostaria que você esclarecesse um pouco mais aquela coisa do "ponto cego", expressão que você chegou a empregar inclusive na palestra, mas sem dizer a que exatamente se referia.
Apenas me arrisquei a oferecer um comentário após a imprescindível resposta do Sandro sobre as tuas refutações (ou, como depois as chamaste, provocações). Isso em razão de que minha contribuição é muito distante de qualquer acréscimo consistente em termos de novos argumentos para o debate; nem mesmo posso – e acho que ninguém deve – me arrogar a condição de árbitro numa peleja em que os vencedores são apenas os que se permitem refletir sobre o direito da sociedade moderna. A seguir, pontuo minhas impressões sobre os teus argumentos relativos ao tema da memória e seu “paradoxo constitutivo” e as contraposições oferecidas pelo Sandro.
Tua “confissão”, tanto numa das respostas ao comentário do Sandro, quanto na postagem sobre a teoria do direito de Habermas, de que és um filósofo analítico, ao mesmo tempo, me surpreende (se tivesse que apostar, imputaria a ti, com a devida licença, o rótulo de habermasiano com preocupações sérias quanto ao uso da linguagem, e não de um analítico afeiçoado com o projeto formatado a partir da teoria da ação comunicativa) e tranqüiliza, porque torna todas as tuas colocações coerentes e, antes disso, explicáveis (falo, mesmo, do “contexto de descoberta” das justificativas que empregas). Mas não é esse o meu foco.
Sobre as aclarações lingüístico-conceituais que fizeste sobre os termos paradoxo, memória, lembrança, esquecimento, os “4R’s”, não me arrisco, agora, a entrar em debate. Creio ser oportuno e relevante levantar uma questão prévia: não estariam tais preocupações analíticas atingidas por uma espécie de pureza que não atenta para os pressupostos sociológicos em que o tal “paradoxo constitutivo” da memória se ancora? É dizer, noutros termos – e aqui segue a minha resposta à pergunta que formulei – que a clareza do uso da linguagem não pode ignorar que a teoria sistêmica visa a explicar o funcionamento da memória do sistema social e dos diversos subsistemas (especialmente, o jurídico, dado seus vínculos fortes com o passado) num contexto marcado pela complexidade (excesso de possibilidades de escolha) e de contingência (tudo poderia ser diferente do que foi, do que é e o vir a ser está aberto). Sei das contribuições que a filosofia, inclusive em sua vertente analítica, pode fornecer para a teoria social. Todavia, é necessário que o faça sem excessos, no sentido de não obstar todas as construções teóricas sobre a sociedade sob o argumento de que os títulos, metáforas ou simplificações lingüísticas empregadas não se coadunam com certo(s) conceito(s) ou modos muito particulares de compreensão de um conceito. Registro as reservas que o próprio Luhmann levantava quanto ao conhecimento filosófico para a compreensão do sistema social e suas modificações.
Sigamos ao que mais releva.
Vejo que teu entendimento sobre o que pode ser interpretado como um “paradoxo” está embasado numa acepção bastante restritiva do uso do termo (incidência da memória e do esquecimento sobre a mesma coisa). Assim, entendo que atribuir caráter paradoxal à “dependência da memória (de certas coisas) em relação ao esquecimento (de outras coisas)” não é, em si, um equívoco ou um problema. Talvez paradoxo não seja o termo mais adequado, porém não é, para os objetivos da teoria em que está inserto, uma grave falha. Pode ser, como referiste, um jogo de palavras, cuja utilidade para a explicação teórica da sociedade precisa ser testada. Essa última missão escapa da competência da filosofia analítica. Assim, um passo adiante é preciso.
Parece-me que o “passo adiante” foi dado por ti quando passaste a defender que a tese do paradoxo constitutivo apenas valeria para memórias finitas. Teu experimento mental (não metafísico, em minha compreensão, e, sim, instrumento lógico) concernente a memórias infinitas me instiga a incluir entre elas não apenas o exemplo fictício do conto de Borges ou mesmo a referência a Deus; falo da memória da sociedade, que pode ser representada por um altíssimo e incalculável potencial de captação, registro, retenção e rememoração (para abranger as quatro funções que apontaste) de informações e eventos. E aí caberia objetar: se a memória da sociedade é potencialmente infinita (ou é a memória que mais se aproxima da capacidade ilimitada), onde estaria sua relação paradoxal (permita-me assim chamar) com o esquecimento?
A resposta pode estar, sugiro, numa por reconstrução lingüística, que parte da diferenciação entre memória e lembrança. Vamos por partes.
A tese da dependência intrínseca que contrapuseste não integra o paradoxo constitutivo da memória nos termos em que interpreto a teoria sistêmica. Quando afirmas que “Dizer que a memória de X depende do esquecimento de Y é dizer que, se eu não me esquecer de Y, não lembrarei de X”, atribuis um nível de dependência entre X e Y que está ligada a uma interpretação muito específica da relação entre o que é e o que não é guardado como registro. Ou seja, entendes tal dependência em seu nível mais forte. Além disso, o paradoxo constitutivo não encerra uma teoria sobre os limites da memória da sociedade em termos de capacidade, espaço ou tamanho. Como bem referiste, isto faria da tese uma informação banal. Mas justo por não ser formulado em termos quantitativos o paradoxo não pode ser recusado por esse argumento.
Em resumo, defendo que tuas objeções postas no tópico A propósito da palestra "A invisibilização dos princípios jurídicos...", do Prof. Sandro Alex”, com exceção da distinção entre memória e lembrança, estão no plano das operações possíveis que a memória pode exercer em relação aos seus diversos objetos imagináveis. Não atingem, e concordo com a colocação do Sandro, o âmbito constitutivo do paradoxo existente entre memória e esquecimento, o qual pode ser, graças às tuas contribuições analíticas, reformulado em termos mais claros, considerada a distinção entre memória e lembrança, esquecimento e não lembrança. O problema da memória da sociedade e do direito na teoria dos sistemas não está prioritariamente atrelado a o quê e como se registra ou não registra (ou retém, ou rememora). O ponto crucial está em reconhecer que há uma relação memória-esquecimento que é conformadora, modeladora do funcionamento do sistema social e dos subsistemas. Assim, é decisiva para a sociedade, tendo em vista o diagnóstico da complexidade e da contingência, a possibilidade de promover comunicações que selecionem historicamente os elementos que “permanecerão”, serão convertidos em sínteses de sentido, capazes de servir como informação significativa para a interação social. O jogo entre o que integra a memória mais ou menos institucionalizada e o que é esquecido não se interrompe na história, nem se submete a determinismos que apontam seleções “necessárias” (daí a negação da causalidade).
A partir da aceitação de que a memória abrange o receber, o registrar, o reter e o rememorar, o paradoxo constitutivo pode sofrer uma reelaboração que o ajuste a estas distinções pertinentes. Uma vez que em tal paradoxo a referência é à memória não de um indivíduo, mas da sociedade, é preciso identificar qual(is) função(ões) da memória está(ão) ligadas às sintetizações de sentido resultantes dos mecanismos seletivos e redutores de complexidade presentes no sistema social.
Minha interpretação é que memória e esquecimento, na teoria dos sistemas, são conceitos que se vinculam a outros dois, que nomeio livremente: permanência temporal e institucionalização (que envolve a estabilização de escolhas e o reconhecimento delas nos procedimentos institucionalizados de decisão). Por isso, memória e esquecimento estão diretamente conectados com a retenção e a rememoração, que são as funções da memória nas quais prevalece a manutenção das informações, seja quanto ao prolongamento do registro (retenção) ou à constância da invocação do que foi retido (rememoração ou lembrança). Na afirmação do Sandro de que “Por paradoxo constitutivo quero assumir que a memória atua estabelecendo as distinções que lhe permitem selecionar o que se registra e o que se esquece”, não há prejuízo de sentido se, em vez do verbo registrar, fosse posta a forma reter, que implica, com base nas precisões analíticas que ofereceste, nada mais que um registro duradouro.
Quero dizer que, na análise da memória da sociedade e do direito, retenção e lembrança são inseparáveis. O que é retido forma uma síntese de significado dentre as várias possibilidades de formação de significado num mundo complexo (por isso a memória opera distinções e seleções), consiste em um resumo da acumulação de experiências comunicativas, o qual é, ao mesmo tempo, herança e premissa do futuro. Os objetos da memória social retida se converterão em lembrança no funcionamento de cada subsistema, já que a operatividade destes depende da memória acumulada. A redução de complexidade em cada subsistema depende da invocação da memória retida quando do desenvolvimento das operações internas características. A acessibilidade à lembrança, condição da simultaneidade das interações no sistema social, depende da prévia retenção de significados na memória da sociedade.
O paradoxo constitutivo, então, abrangeria a memória tanto no que concerne à retenção quanto à lembrança, tal como, no outro pólo, estariam tanto o esquecimento quanto a não lembrança.
São essas as minhas colocações, após algum esforço de síntese. Podem ser solenes equívocos, mas minha tentativa foi recolocar a discussão no trilho da memória da sociedade e do direito, a qual configura uma metáfora com alto potencial explicativo e que não pode ser integralmente comparada com as memórias individuais e suas operações.
Respondo aos seus comentários.
Sobre minha "confissão", devo dizer algumas coisas a título de esclarecimento. Não estou comprometido com o projeto neopositivista de uma língua perfeita, isenta de obscuridades, vaguezas e ambigüidades, nem com a visão de mundo dos jogos de linguagem e sua intransponibilidade. Não vejo a filosofia como um glossário dos termos da ciência e da linguagem comum, uma "ancilla scientiarum" à moda lingüística. Não acho que a virada lingüística representou a pá de cal em toda filosofia anterior nem que a própria pretensão analítica não seja um projeto filosófico historicamente contextualizado e explicável à luz de fatores da história da lógica e das ciências empíricas. Sendo assim, em que sentido ainda se pode dizer que sou um filósofo analítico? Talvez, como se faz nos casos de Brandom, Rorty, Quine, se devesse dizer que sou "pós-analítico", ou um analítico mais modesto, menos obsessivo pela terapêutica lingüística dos "pseudo-problemas" da filosofia, mais aberto ao diálogo com as ciências "moles" e à reflexão extra-lingüística. Por isso sou fã daquele texto de Rorty que postei há não muito tempo. Como ele, sou um filósofo (pós-)analítico de "outra geração", que não precisa comaprtilhar dos equívocos das gerações anteriores para ainda apostar as fichas no seu estilo intelectual e literário de fazer filosofia.
O que me resta de analítico? Em primeiro lugar, uma preocupação com o refinamento e o uso rigoroso dos conceitos. A linguagem rebuscada, metafórica, figurativa, obscura etc. (isso inclui muitas passagens de Luhmann e algumas do próprio Habermas), mesmo quando me soa como boa literatura, me cheira a má filosofia. Em segundo lugar, a crença de que o esclarecimento dos conceitos em seus respectivos contextos de uso (virada pragmática) fornece o ponto de partida de qualquer teoria séria sobre coisas familiares. Isso inclui uma forte aversão por reducionismos behaviouristas e por simplificações operativas cuja única justificativa de uso é sua funcionalidade metodológica. Em terceiro lugar, uma suspeita inicial contra toda abordagem ou proposição contra-intuitiva, exigindo-lhe razões substantivas (e não apenas metodológicas) de fundamentação. Em quarto lugar, uma tendência de rejeitar teorias que não conseguem dialogar com outras a não ser em seus próprios termos. Esse é um dos traços que mais me incomoda na teoria sistêmica. Em quinto lugar, uma identificação da filosofia com a filosofia contemporânea, do diálogo filosófico como debates em torno de problemas bem definidos, com argumentos elegantes de um lado e de outro e deixando espaço para concessões, mudanças de idéias, assunção de compromissos e reconhecimento autocrítico. Tudo isso creio que a filosofia analítica oferece mais que a continental.
(continua)
Falemos primeiro sobre paradoxos. Um paradoxo conhecido é do mentiroso. Se alguém diz "Esta sentença é falsa", referindo-se à sentença que diz através da própria sentença dita, cria uma situação inusitada. Se a sentença que diz é falsa, então é verdadeira. Se é verdadeira, então é falsa. Como se supõe que a mesma sentença não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa, bem como que a verdade de uma sentença não pode ser a razão de sua falsidade e vice-versa, aquela situação merece o nome de "paradoxo".
Deve-se distinguir o paradoxo filosófico do paradoxo literário. Esse é a figura de linguagem que consiste na associação ou aproximação de idéias contrárias ou opostas, como no famoso poema de Camões:
"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?"
Por sinal, belíssimo. Mas quando destrinchamos conceitualmente seus "paradoxos", vemos que eles são mais lances de estilo que causam perplexidade, que encantam porque aproximam os opostos, do que verdadeiros paradoxos em sentido filosófico. Veja por exemplo o verso que diz: "É solitário andar por entre a gente". Nesse caso, a sensação de paradoxo é provocada pela aproximação das idéias opostas de "solitário" e "por entre a gente". Mas é claro que, como acontece na expressão "sozinho na multidão", o "solitário" se refere a como o sujeito se sente, enquanto o "por entre a gente" se refere a situação em que, fisicamente, se encontra. Feito esse aclaramento, vê-se que se trata de um "falso paradoxo", porque não afirma que o sujeito está sozinho e acompanhado ao mesmo tempo e no mesmo sentido, mas sim que está ao mesmo tempo sozinho em certo sentido e acompanhado noutro sentido. Nisso não há paradoxo, mas apenas um jogo de palavras com propósito estético.
Diferentemente disso, o paradoxo filosófico não apenas aproxima, com jogos de palavras, idéias opostas. Ele na verdade mostra uma situação em que coisas opostas estão verdadeira e inevitavelmente associadas. Não pode ser desfeito com a mesma manobra de esclarecimento de sentido que usamos acima, porque no paradoxo filosófico as coisas ou idéias opostas estão associadas ao mesmo tempo e com o mesmo sentido. Não é um jogo de palavras, e sim um verdadeiro problema, uma perplexidade lógica que reclama alguma solução. Por exemplo, a noção de que um "ponto" tem extensão igual a zero (do contrário seria uma linha e poderia ser dividido) e a linha tem sempre extensão maior que zero (do contrário seria um ponto e não seria divisível), mas que um conjunto (mesmo que infinito) de pontos não extensos se combina na formação de uma linha extensa é um paradoxo. Como o extenso pode se formar a partir do não extenso? Parece impossível do ponto de vista lógico, mas inegável do ponto de vista geométrico.
Ora, o tal "paradoxo constitutivo" da memória, de que fala a teoria sistêmica, não é um verdadeiro paradoxo filosófico, parecendo-se mais com um paradoxo literário. Se só é possível memorizar certas coisas na medida em que se esquecem outras, não há nisso nada de logicamente impossível, nenhuma perplexidade lógica. Ao contrário, quando se explica o sentido em que memorizar e esquecer está sendo usado, tem-se a mesma impressão que se tinha diante do poema de Camões: aquilo que há pouco parecia paradoxal se revela agora perfeitamente aceitável do ponto de vista lógica, parecendo-se mais com uma verdade trivial do que com o asinalamento de um aspecto verdadeiramente intrigante e perturbador da realidade.
Agora, "falsos paradoxos" se toleram na literatura, por seu efeito estético. Mas por que razão se haveria que tolerá-los na filosofia da mente e na filosofia social? Esses ramos da investigação filosófica (vistos pelo viés analítico) estão comprometidos justamente com o aclaramento de nossas já bastante confusas idéias cotidianas, e não com o agravemento de sua obscuridade mediante a adição de outras pseudo-perplexidades.
Daí que me incomode a noção do "paradoxo constutivo" da memória. À luz de uma analíse lingüística, ele não apenas se revela como pirotecnia estética por trás da qual se esconde uma idéia banal (como gostavam de fazer Hegel, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Freud e Heidegger, para ficar nos colinguanos de Luhmann), mas também atrai magneticamente a curiosidade por uma teoria que se anuncia como reveladora de "grandes mistérios ocultos" por trás da realidade social.
Melhor seria dizer: a memória é finita e seletiva. Memoriza certas coisas e deixa de memorizar outras. Algumas das que memoriza retém, outras esquece. Ponto final. Uma idéia banal...
"Sei das contribuições que a filosofia, inclusive em sua vertente analítica, pode fornecer para a teoria social. Todavia, é necessário que o faça sem excessos, no sentido de não obstar todas as construções teóricas sobre a sociedade sob o argumento de que os títulos, metáforas ou simplificações lingüísticas empregadas não se coadunam com certo(s) conceito(s) ou modos muito particulares de compreensão de um conceito".
Não sei se me engano, mas isso me soa ao velho argumento nominalista (Abelardo, Scott, Eriúgena) segundo o qual "Quod verum in lingua, non necesse verum in mundo est" (o que é verdadeiro na linguagem, não necessariamente é verdadeiro no mundo). Tal concepção usualmente se apóia na idéia de que o estado da linguagem em certo local e tempo reflete o estado das crenças daquele local e tempo, de modo que submeter a linguagem das novas descobertas ao escrutínio lingüístico dos cânones correntes é tornar impossível a descoberta dos pontos em que o mundo não se ajusta à linguagem com que falamos dele. Tenho três considerações sobre isso:
a) Mesmo que fosse verdade, não se aplicaria ao caso. Os conceitos de contingência e complexidade não mudam o sentido dos termos "memória" e "esquecimento". Luhmann não afirma estar falando de "outra" memória ou de "outro" esquecimento, mas da memória e do esquecimento que conhecemos. Se é assim, um possível "paradoxo constitutivo" envolvendo as duas idéias teria que preencher ao mesmo tempo a duas condições: 1) revelar-se empiricamente verdadeiro, no sentido de que o que é chamado por esse nome se confirme no confronto com a realidade; 2) revelar-se lógica e lingüísticamente adequado à noção de "paradoxo". A meu ver, a filosofia analítica nada tem para dizer acerca da condição 1), mas não só tem muito a dizer, como é a autoridade última de decisão sobre o preenchimento da condição 2).
b) Dado que, por um lado, a filosofia analítica implodiu a distinção rígida entre linguagem e mundo (sem ter, por isso, reduzido o mundo à linguagem com que se fala dele) e dado que a filosofia pós-analítica mostrou que mesmo as identidades e distinções conceituais analíticas que parecem isentas de referências empíricas são na verdade afetadas e até condicionadas por elas (sem ter, por isso, borrado a distinção entre análise lingüística e descrição empírica), parece um tanto deslocado falar de uma distinção forte entre a "pureza conceitual analítica" e o uso metodologicament orientado de conceitos operativos para fins de descrição e explicação da realidade. (Uma maneira interessante, contudo, de reformular essa objeção seria na forma de uma oposição entre uso comum dos termos - por exemplo, memória e esquecimento - e uso técnico dos termos - por exemplo, memória social e esquecimento social na teoria sistêmica -, mas essa seria uma discussão posta em termos bem diferentes).
c) Pode ser, contudo, que a sua objeção esteja na verdade dizendo que não se pode confundir noções filosóficas com noções sociológicas, o que implicaria que uma crítica dos conceitos sociológicos de "memória" e "esquecimento" a partir dos respectivos conceitos filosóficos (que não passariam de "certo(s) conceito(s) ou modos muito particulares de compreensão de um conceito") seria inadequada, porque saltaria por cima da fronteira epistemológica entre as disciplinas e meteria a colher lingüística em assuntos empíricos. Nesse caso, peço-lhe que faça a seguinte reflexão em seqüência:
I - Os conceitos de paradoxo, memória e esquecimento se referem, na filosofia e na sociologia, às mesmas coisas ou a coisas distintas? (Minha resposta aqui seria: Às mesmas coisas).
II - Os conceitos de "formar um paradoxo com" e de "depender de" são lógico-lingüísticos ou sócio-empíricos? (Minha resposta aqui seria: São lógico-lingüísticos. Explicação: saber se A está numa relação X com B é uma questão empírica; saber que tipo de relação é X é uma questão também empírica; mas saber se o tipo de relação que é X pode ser caracterizada como um "paradoxo", ou como "dependência", é uma questão lingüística, e não empírica).
III - Sendo assim, quando digo, a partir da autoridade lingüística, que o tipo X de relação que a teoria sistêmica diz existir entre memória e esquecimento não constitui, na verdade, um genuíno paradoxo, não estaria extrapolando nenhuma limitação epistemológica, estaria? (Minha resposta seria: Não, não estaria).