Resumo e Crítica: "De que maneira o direito se assemelha à literatura", de Ronald Dworkin

DWORKIN, Ronald. De que maneira o Direito se assemelha à literatura. In: _______, Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 217-49.

Meu resumo do texto:

1. Posiciona-se em favor de uma concepção de interpretação que combina elementos descritivos e valorativos, a qual seria válida tanto para a Literatura quanto para o Direito, e contra a concepção intencionalista da interpretação. Explora uma suposta semelhança entre o Direito e a Literatura para mostrar que, assim como na Literatura a melhor interpretação de uma obra seria aquela que a mostrasse como a melhor obra de arte possível, no Direito a melhor interpretação de uma norma ou decisão seria aquela que a mostrasse como a melhor peça de política possível.

2. Caracteriza a interpretação em Literatura a partir da “hipótese estética”: a melhor interpretação de uma obra seria aquela que a mostrasse como a melhor obra de arte possível. Assim, haveria uma estreita conexão entre a interpretação de uma obra e as convicções sobre como deve ser uma boa obra de arte. Entende que a dependência da interpretação bem-sucedida em relação a certa concepção da arte não implica em relativismo, porque seguramente certas concepções da arte seriam melhores que outras. Pensa que assim se enfraquece a fronteira entre interpretação e crítica de arte, mas não desaparece, porque imaginar o que tornaria certa obra uma boa obra ainda seria diferente de avaliar o que a torna uma boa obra.

3. Ataca a teoria intencionalista da interpretação, não como uma concepção de interpretação que concorre com a hipótese estética, mas sim como a tese, que se apóia na hipótese estética, de que a melhor interpretação de uma obra de arte seria aquela que a apresentasse em conformidade com a intenção do autor. Pensa que, exposta dessa forma, a teoria intencionalista perde qualquer plausibilidade, porque dependeria de uma concepção da arte como comunicação, e não como expressão. Uma vez que a concepção da arte como comunicação é menos adequada e rica, a teoria intencionalista não poderia ser abraçada.

4. Elabora uma situação imaginária em que diferentes romancistas tivessem que escrever cada um deles um dos capítulos de um único romance. Argumenta que cada romancista seria, ao mesmo tempo, intérprete e criador: interpretaria o que fora escrito até então e criaria uma continuação para a mesma história. Essa exigência de integridade com os capítulos anteriores não excluiria a possibilidade de afastar-se de alguns dos seus elementos, desde que tais elementos fossem identificados como erros na direção da melhor obra possível.

5. Voltando-se para o Direito, explora uma correlata da “hipótese estética”: a concepção de que a melhor interpretação de uma norma ou decisão seria aquela que a mostrasse como a melhor peça de política possível. Novamente destaca a estreita conexão entre a interpretação de uma norma ou decisão e as convicções sobre como deve ser a política. Outra vez adverte que tal dependência não implicaria em relativismo, porque, tal como se passa entre as concepções da arte, entre as concepções da política também algumas seriam melhores do que outras.

6. Ataca a versão jurídica da teoria intencionalista com a mesma estratégia que usou contra sua versão literária. A teoria intencionalista deixaria de ser uma concepção sobre interpretação para tornar-se uma candidata, entre outras, ao que seria a melhor interpretação. Nesse caso, os intencionalistas estariam propondo que o que torna uma norma ou decisão a melhor peça de política possível é aquilo que os legisladores ou juízes teriam querido dizer (o que quer que tenha sido). Outra vez, a tese intencionalista derivaria de uma concepção do Direito como comunicação, o que é uma tese menos atraente do que outras possíveis.

7. Projeta o exemplo do “romance em cadeia” para as decisões da Common Law. Cada juiz seria ao mesmo tempo intérprete e criador de uma mesma história judicial. Uma interpretação bem-sucedida teria que tanto apresentar integridade com as decisões anteriores, como mostrar essas decisões sob sua melhor luz, quer dizer, como parte integrante da melhor concepção política possível. A mudança não estaria vedada, mas apenas restrita a correções no sentido da melhor concepção possível.

Minha crítica ao texto:

1. A comparação com a Literatura, justificada no texto pelo fato de que nessa área “foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Direito, inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a teoria jurídica” (p. 221), poderia ser na verdade um expediente argumentativo disfarçado, uma grosseira petição de princípio. Nunca houve uma teoria positivista da arte que quisesse privar a interpretação artística de elementos valorativos, razão por que a “hipótese estética” é muito mais plausível na Literatura que no Direito. Não é possível conceber uma arte insípida que ainda seja arte, mas é possível conceber um Direito insípido que ainda seja Direito. A valoração é claramente inerente à obra de arte de uma maneira que não é para a norma jurídica. Por isso, argumentar em favor de uma concepção de interpretação que contemple elementos valorativos a partir da analogia com uma área que não pode dispensar esses mesmos elementos é direcionar desde o princípio as conclusões a que se pode chegar.

2. Não há qualquer referência à distinção entre o caráter contemplativo da interpretação artística e o caráter prático da interpretação jurídica. É muito diferente que existam certos estudiosos da Literatura que praticam certo tipo de interpretação das obras literárias e que existam certos juízes de Direito que praticam certo tipo de interpretação das normas jurídicas. No primeiro caso, posso simplesmente discordar do modo como eles interpretam as obras e tolerar que eles sigam interpretando da mesma maneira. No segundo caso, posso ser exatamente a pessoa cuja causa será julgada por um dos juízes em questão e cuja vida pode depender do tipo de interpretação que ele fará das normas. Intérpretes de Literatura não julgam pessoas, seus erros não repercutem em danos à vida, à liberdade, ao patrimônio e à honra dos indivíduos, suas concepções não são inofensivas nem podem ser apenas toleradas.

3. A crítica à tese intencionalista, mostrando-a como uma candidata à melhor interpretação possível, pode não passar de um golpe baixo. Dworkin deveria dizer por que uma interpretação que é ao mesmo tempo descritiva e valorativa é melhor do que uma interpretação que é apenas descritiva. Em vez disso, julga a segunda a partir dos critérios da primeira. É inútil mostrar que a tese intencionalista não alcança um objetivo que ela jamais sequer visou. Nenhum intencionalista acredita que buscar a intenção do legislador ou julgador seja uma forma de mostrar normas e decisões sob sua melhor luz. Acredita que a intenção do autor, qualquer que ela seja, deve ser respeitada, porque é uma idéia básica da democracia que sejamos governados pelas decisões daqueles que elegemos para decidir, e não por interpretações que mostrem essas normas sob a luz que algum julgador não-eleito pensa ser a melhor. O intencionalista poderia argumentar que, se sua tese não parece muito atraente, é talvez porque viver sob a legitimidade democrática não seja atraente, mas apenas correto e inafastável.

4. A comparação das decisões judiciais com o “romance em cadeia” também apresenta sérios problemas. Primeiro, o Direito não é uma narrativa, não é apenas ficção para fins de entretenimento ou de prazer estético, não possui uma estrutura do tipo coisas que acontecem umas depois das outras, não mantém os mesmos “personagens” de uma decisão para a outra, não precisa manter coerência entre os fatos, mas sim entre normas, não está previamente encaixado num estilo do qual se esperam certas coisas, não lida com a originalidade sempre de modo positivo, não é feito para satisfazer ou surpreender seus potenciais leitores. Segundo, no exemplo do “romance em cadeia” já está previamente acertado que cada escritor terá uma participação na criação da história, um acerto que nem todos reconheceriam existir a respeito da função judicial, pois, ao contrário do futuro leitor, o jurisdicionado não espera ansiosamente para ler o próximo capítulo do romance judicial, não sente prazer em ser surpreendido pelo juiz, nem pode simplesmente abandonar a leitura da sentença final porque ela não satisfaz suas expectativas sobre a Política.

5. Talvez Dworkin tivesse podido evitar tantas dificuldades se tivesse feito uma defesa aberta e precisa em favor da interpretação que combinasse elementos descritivos e valorativos. Teria podido mostrar o que considera como vantagens de adotar essa concepção em lugar da intencionalista e como cogita que a interpretação política escapa da discricionariedade judicial (o que está longe de ser claro).

Comentários

Anônimo disse…
Querido Filósofo Grego.

Sua afirmativa "Nunca houve uma teoria positivista da arte que quisesse privar a interpretação artística de elementos valorativos " já é, por si mesma, um juízo de valor, mormente que o estruturalismos e a semiótica são instrumentos que não levam em conta tal "valoração".
Outra afirmação sua: "A valoração é claramente inerente à obra de arte de uma maneira que não é para a norma jurídica", aí poderíamos discutir a questão do tridimensionalismo de Miguel Reale (Fato-Valor-Norma). Outro problema: "Intérpretes de Literatura não julgam pessoas, seus erros não repercutem em danos à vida, à liberdade, ao patrimônio e à honra dos indivíduos, suas concepções não são inofensivas nem podem ser apenas toleradas". Nesse ponto, seria bom não confundir "crítica literária" ou a teoria da recepção com a própria literatura (O que é Literatura? O que é o Direito?). Mais um problema:"Acredita que a intenção do autor, qualquer que ela seja, deve ser respeitada, porque é uma idéia básica da democracia que sejamos governados pelas decisões daqueles que elegemos para decidir, e não por interpretações que mostrem essas normas sob a luz que algum julgador não-eleito pensa ser a melhor". Ademais, no âmbito do legislativo, aprovam-se leis por voto de liderança; um voto de um eleitor de uma pequena unidade federada chega a valer dezesseis vezes o voto de um cidadão das unidades maiores, fazendo com que uma estranha matemática transforme a maioria em minoria, apontando para uma crise do paradigma do Direito. Claro que não se deseja uma "república de juízes", mas, nas ditas "democracias delegativas", como a nossa, não é possível esperar menos de o Poder Judiciário como vetor de transformação, não de mero reflexor de litígios interindividuais, espelho da sociedade, mas, sim, como vetor de intervenção, para que as promessas dos bens materiais, legitimamente garantidos no texto constitucional, sejam entregues à população, porque esse pacto também é jurídico(não como pensara Rousseau), daí que o juiz liberal-individualista-normativista, direcionado por uma filosofia da consciência, ainda não se deu conta de que na relação sujeito-objeto ele não pode se assujeitar deste, coisificando a norma em detrimento da relação sujeito-sujeito ("linguistic turn). Portanto, em não se estando cumprindo a Constituição, preciso faz-se a intervenção judicial ou então o Estado Democrático de Direito não passará de mais uma Utopia vendida no atacado do Direito. Abraço. Marcelino Botelho.
Anônimo disse…
Caro Marcelino. Agradeço sua atenção, dedicando seu tempo à leitura e ao comentário de minha resenha crítica. Seus comentários, na medida em que dão continuidade a essa discussão, certamente enriquecem o que essa postagem tem a oferecer. Antes de responder às objeções que você formulou, quero fazer um esclarecimento sobre as críticas que fiz ao texto de Dworkin: A maior parte delas visa mostrar que aquilo que Dworkin quer provar (que a interpretação no direito deve ser ao mesmo tempo descritiva e valorativa) não pode ser provado pelo expediente que ele emprega (uma comparação entre interpretação jurídica e interpretação literária). Não sou contra a tese em si, mas contra o argumento usado por Dworkin em sua defesa, porque o considero, em vários níveis, uma coleção de petições de princípio. Não acho a interpretação intecionalista mais atraente que a proposta de Dworkin, mas acho que essa proposta deveria ser defendida com outros meios argumentativos. Por isso, minhas respostas à sua objeção não tomam a forma de uma defesa da teoria que Dworkin quer afastar, mas sim de uma manutenção dos argumentos que usei contra a estratégia do texto resenhado.
Anônimo disse…
Agora vamos lá, para cada uma das objeções e respostas.

1) Disse que nunca houve uma teoria que quisesse privar a interpretação literária de elementos valorativos. Você ofereceu o estruturalismo e a semiótica como contra-exemplos. Eu considero que essas abordagens mantêm elementos valorativos, como unidade da obra, fechamento temático e expressividade. Mas confesso que não sou especialista no assunto para afirmar isso com total certeza. Assim, minha resposta toma outra direção: Se houve teorias "positivistas" da interpretação literária, por que Dworkin não as cita e não compara os argumentos que elas oferecem com os argumentos que oferecem as teorias "positivistas" da interpretação jurídica? Não seria uma estratégia melhor e mais honesta?

2) A teoria de Miguel Reale apenas diz que, se uma norma obriga ou proíbe tal conduta, é porque valora essa conduta positiva ou negativamente. Mas esse "valora" tem sentido jurídico (obrigar/proibir), e não, como quer Dworkin, político. Dar à valoração jurídica o sentido de valoração política é cair na falácia democrática de que todas as normas já são expressão do que quer o povo como titular da soberania. Além disso, mesmo que a valoração inerente à norma fosse política, isso ainda não quereria dizer que as razões de tal valoração precisam ser levadas em conta na interpretação da norma. Uma coisa não se segue automaticamente da outra.

3) Eu não acredito que a intenção do legislador deve ser respeitada, disse apenas que quem defende a teoria intencionalista acredita nisso e acredita também que fazer isso é respeitar mais o que uma democracia significa. Dworkin não pode atacar o intencionalismo sem atacar a teoria da democracia que subjaz a ele. E é isso que ele tenta fazer nesse texto quando desvincula a teoria intencionalista de sua justificativa política e a situa numa teoria da norma como comunicação.

4) Concordo sobre a necessidade que as promessas constitucionais sejam cumpridas, mas não se segue daí que devam ser os juízes a tomar para si a tarefa de cobrar essas promessas. Por que não a própria sociedade organizada, que elege seus representantes e que tem poder de tirá-los de lá ou de não elegê-los novamente quando eles não cumprem as promessas (tanto as da constituição, quanto as deles próprios em campanha)? Não digo que seja uma proposta necessariamente melhor que a sua (embora ache que seja). Digo apenas que é uma proposta alternativa à sua e plausível, de modo que, da necessidade do cumprimento das promessas cosntitucionais, não se segue automaticamente uma necessidade de ativismo judicial.

Abraços

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