Dworkin e princípios jurídicos
Enfim, de volta. Estive muito ocupado e pouco inspirado nos últimos tempos, mas agora sinto ânimo renovado para retomar a velha prática de atualizar esse blog.
Hoje quero falar de um texto que li anteontem e ontem. Chama-se "Contra os princípios jurídicos", foi publicado em 1995, numa coletânea chamada "Law and interpretation" (na tradução brasileira que consultei, Andrei Marmor (ed.), "Direito e interpretação", São Paulo, Martins Fontes, 2000) e é da autoria conjunta de Larry Alexander e Keneth Kress. O artigo pretende refutar a existência de princípios jurídicos no sentido em que Ronald Dworkin fala deles. A idéia de negar que os princípios existam parece estranha à primeira vista, mas não resta dúvida de que é esta a intenção dos autores: "Então, na parte IV, exporemos argumentos diferentes, mas, no fim, relacionados, explicando por que os princípios jurídicos não podem existir, exceto, talvez, como entidades teoricamente possíveis, mas praticamente inertes" (p. 420).
Bom, quando se pensa em princípios jurídicos logo se pensa em coisas como o princípio do direito à liberdade de expressão ou o princípio de que provas colhidas ilicitamente não serão aceitas em processos judiciais. Parece no mínimo insensato negar que tais princípios existam, afinal, estão previstos nas cartas constitucionais e são base de inúmeras decisões judiciais. Levando isso em conta, quando Alexander e Kress anunciam que querem provar que não existem princípios, toma-se um susto inicial, que causa certa prevenção e curiosidade. Para mim esse ponto é importante, porque toca diretamente no assunto de que quero falar nessa postagem.
Quero dizer logo de cara que não são os argumentos de Alexander e Kress contra a existência dos princípios que me impressionaram nesse artigo, embora ache que eles façam bastante sentido e dêem espaço para um boa discussão. O que realmente me impressionou foi a descrição que Alexander e Kress fizeram do que são e de como funcionam os princípios jurídicos na obra de Dworkin. Uma descrição tão diferente da que habitualmente se lê nos manualecos que falam disso no Brasil que me deixou sem fôlego. Vocês vão ver por que me causou essa reação.
Qual a descrição habitual da teoria de Dworkin, com que eu estou acostumado? Alguma coisa mais ou menos assim: Dworkin defende, contra Hart, que nem todos os padrões (standards) a que as decisões judiciais obedecem são regras, porque algumas delas têm um funcionamento lógica e praticamente diferente das regras; esses outros padrões, chamados de "princípios", têm a particularidade de (i) não serem aplicados na forma "tudo ou nada", quer dizer, serem aplicados às situações conforme o peso relativo que tenham para ela, (ii) não poderem ter todas as possíveis exceções listadas, como o enunciado completo de uma regra poderia e deveria fazer e, (iii) quando entram em conflito uns com os outros, esse conflito pode ser resolvido por ponderação entre eles, sem que nenhum tenha que ser excluído ou excepcionado pelo outro; os princípios, em sentido lato, se dividem ainda em princípios, em sentido estrito, que são exigências de justiça e moralidade, fixando direitos a serem respeitados, e políticas, que são objetivos socialmente relevantes, fixando metas a serem alcançadas, sendo que as políticas podem ser perseguidas apenas até o limite em que não violem os princípios em sentido estrito, bem como não devem servir de fundamento para decisões judiciais, sob pena de uma politização indevida do judiciário. Se você tem alguma familiaridade com a teoria de Dworkin, é provável que tenha tido contato com uma versão mais ou menos desse tipo.
Pois bem, qual foi a descrição de Alexander e Kress sobre a teoria dworkiniana dos princípios que tanto me impressionou? Os autores endossam tudo que foi dito acima, sem nenhuma retificação. Mas se concentram numa passagem do Cap. 4 ("Casos difíceis") de Taking rights seriously ("Levando os direitos a sério", São Paulo, Martins Fontes, 1998), em que Dworkin distingue os princípios jurídicos dos princípios morais. Segundo eles, para Dworkin o que distingue os dois tipos de princípios é que, enquanto os princípios morais são princípios dotados apenas de aceitabilidade moral, os princípios jurídicos são princípios dotados de aceitabilidade moral e ajustamento às decisões institucionais. Isso quer dizer que um conjunto de princípios moralmente corretos não têm força jurídica imediata a menos que possam ajustar-se à história das decisões institucionais tomadas até aqui. Quando isso não acontece, quer dizer, quando os princípios "mais corretos" não se ajustam às decisões institucionais, eles devem ser afastados e se deve dar preferência a um conjunto "menos correto" de princípios, desde que tais princípios tenham mais ajustamento às decisões institucionais. O importante é que, dos muitos princípios que poderiam ajustar-se às decisões institucionais, escolham-se aqueles que, mesmo sem serem os "mais corretos" entre todos os princípios concebíveis, são os "mais corretos" entre os princípios que se ajustam.
Aí você pensa: "Sim, cadê a novidade? Todo mundo sabe que Dworkin faz a dupla exigência de aceitabilidade moral e ajustamento institucional, de modo que se use de certo 'equilíbrio reflexivo', posteriormente chamado de 'integridade', entre as duas exigências, na escolha do melhor conjunto de princípios". Tudo bem, é verdade. Mas o momento em que Alexander e Kress realmente me surpreenderam foi quando falaram de algo que eu desconhecia: a extrema semelhança entre o procedimento que Dworkin recomenda para a descoberta e seleção dos princípios e o procedimento costumeiramente recomendado nos manuais da common law americana para encontrar aquelas "diretrizes" e "padrões gerais" que guiam um grande número de precedentes diferentes. Fazem isso ao longo de um item inteiro, chamado "A descrição de Dworkin dos princípios jurídicos e as metodologias-padrão de análise jurídica", do qual vou transcrever uma passagem significativa:
"A descrição de Dworkin dos princípios jurídicos, naturalmente, é abstrata e teórica. Mas sua força como descrição resulta do êxito com que capta as metodologias-padrão dos estudiosos do Direito, advogados e juízes. Qualquer um que já tenha escrito sumários, pareceres ou artigos acadêmicos no nível médio da doutrina está familiarizado com o seguinte procedimento. Você tem uma questão específica que, como acadêmico, juiz ou advogado, deseja solucionar. Primeiramente, você recolhe os casos na área especial do Direito. Então, procura um princípio ou política atraente que, se seguido coerentemente, teria gerado a maioria dos resultados nesses casos. Em outras palavras, você procura por uma teoria normativamente atraente que abranja os casos. A teoria não precisa ser moralmente correta, já que os princípios morais corretos podem produzir muitos resultados divergentes dos resultados existentes na área. A teoria tem de ser apenas uma teoria tão moralmente atraente quanto pode ser uma teoria incorreta e que, ainda assim, dê conta dos resultados. Além disso, a teoria não precisa dar conta de todos os resultados, embora quanto mais o faça, melhor. Alguns resultados podem ser considerados 'erros' se a teoria abrangente é moralmente atraente. A teoria precisa apenas dar conta da maioria dos resultados. Chamaremos essa metodologia de teoria reconstrutiva".
Se a tese de Alexander e Kress sobre a semelhança entre o procedimento de Dworkin e essa "teoria reconstrutiva" da common law americana estiver certa resultam daí algumas conclusões:
1. Os princípios não são, então, um segundo tipo de normas positivadas, cuja aplicação lógica e prática é distinta da das regras (como são em Alexy, por exemplo). Os princípios não apenas não precisam estar positivados, como normalmente não estão, sendo produto de uma descoberta "a posteriori" e reconstrutiva do teórico ou do operador do direito.
2. "Princípios" como a liberdade de expressão e a vedação das provas ilícitas não são verdadeiros princípios, não apenas porque tais "princípios" estão explicitamente positivados, mas também porque são diretamente invocados como fundamentos de decisões institucionais, não sendo, portanto, necessários enquanto hipóteses reconstrutivas de decisões de certa área.
3. Estas normas que não são princípios, mas também não se parecem com regras, seriam na verdade um outro tipo de normas, os "padrões" (standards). Vejam a seguinte passagem: "As normas jurídicas podem ser divididas de duas maneiras. Primeiro, existe a conhecida dicotomia entre regras e padrões. As regras são as normas jurídicas formais e mecânicas. São acionadas por algumas questões facilmente identificadas e são opacas, na aplicação, aos valores que se destinam a servir. Os padrões, por outro lado, são normas jurídicas flexíveis, sensíveis ao contexto, que exigem julgamentos avaliatórios na sua aplicação. Uma regra paradigmática é 'dirija a 55 milhas por hora ou menos'. Um padrão pardigmático é 'dirija com segurança'. A maioria das normas jurídicas é híbrida, no sentido de que possuem elementos semelhantes a regras e semelhantes a padrões". Aqueles que estão familiarizados com a teoria dos princípios de Robert Alexy devem ter percebido a notável semelhança entre essa divisão, que data dos anos 70 nos EUA, e a divisão entre regras e princípios tal como é feita, em 1988, pelo autor de "Theorie der Grundrechte" ("Teoría de los derechos fundamentales", Madrid, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2001). Se se chegasse à conclusão de que, na verdade, os direitos fundamentais ocupam na teoria de Dworkin o papel de "standards", e não de "princípios", o passo seguinte seria deixar de comparar a teoria dos princípios de Alexy e de Dworkin, porque, embora usem ambas o nome "princípios", não falam da mesma coisa, e passar a comparar a teoria alexiana dos princípios com a teoria americana dos padrões. Essa seria uma conclusão e tanto!
4. Finalmente, se a descrição de Alexander e Kress estiver certa, então, a teoria dos princípios de Dworkin deve ser considerada, na verdade, uma teoria sobre como unificar ou integralizar séries desconexas de regras e decisões a partir de "diretrizes gerais" que tenham ao mesmo tempo apelo moral e ajuste institucional. Tais "diretrizes gerais", que seriam os princípios em sentido dworkiniano, não se confundiriam com os direitos fundamentais nem com outras exigências morais que estão explicitamente previstas nos ordenamentos jurídicos modernos. Elas seriam entidades teoréticas, criadas a posteriori pelo exame reconstrutivo, cuja função é dar unidade teórica e moral às regras das leis e dos precedentes. Não sei para vocês, mas para mim isso seria um baita giro no modo de ler a teoria de Dworkin.
Antes de terminar, quero apenas afastar uma objeção óbvia, que eu mesmo não deixei de levantar. E se toda essa confusão foi causada apenas por uma descrição exótica e francamente inadequada da teoria de Dworkin? E se a identificação de Alexander e Kress da integridade dworkiniana com a "teoria reoconstrutiva" da commmon law americana foi apenas uma suposição precipitada e infeliz desses autores? Bem, para me livrar dessa dúvida, corri atrás dos artigos de outros autores que eles citam nas notas de rodapé e dos capítulos e passagens de Dworkin que eles usam. Essas consultas apenas aumentaram o tamanho do elefante que Alexander e Kress plantaram atrás da minha orelha. Os mais impressionantes de todos são "Rules, standards and principles", de Ronald Dworkin (em que alguns direitos fundamentais são explicitamente citados como exemplos de standards, e não de princípios) e "The jurisprudence of reason", de Frererick Schauer (que é ua resenha de "O império do direito", de Dworkin, e descreve as regras como o "eixo de ajuste" e os princípios morais como o "eixo de aceitabilidade", localizando os princípios jurídicos entre esses dois).
Gostaria de discutir esse assunto com todos os interessados. Estou verdadeiramente pasmado com as novas possibilidades que esse artigo abriu na interpretação da obra de Dworkin.
Abraços a todos!
Hoje quero falar de um texto que li anteontem e ontem. Chama-se "Contra os princípios jurídicos", foi publicado em 1995, numa coletânea chamada "Law and interpretation" (na tradução brasileira que consultei, Andrei Marmor (ed.), "Direito e interpretação", São Paulo, Martins Fontes, 2000) e é da autoria conjunta de Larry Alexander e Keneth Kress. O artigo pretende refutar a existência de princípios jurídicos no sentido em que Ronald Dworkin fala deles. A idéia de negar que os princípios existam parece estranha à primeira vista, mas não resta dúvida de que é esta a intenção dos autores: "Então, na parte IV, exporemos argumentos diferentes, mas, no fim, relacionados, explicando por que os princípios jurídicos não podem existir, exceto, talvez, como entidades teoricamente possíveis, mas praticamente inertes" (p. 420).
Bom, quando se pensa em princípios jurídicos logo se pensa em coisas como o princípio do direito à liberdade de expressão ou o princípio de que provas colhidas ilicitamente não serão aceitas em processos judiciais. Parece no mínimo insensato negar que tais princípios existam, afinal, estão previstos nas cartas constitucionais e são base de inúmeras decisões judiciais. Levando isso em conta, quando Alexander e Kress anunciam que querem provar que não existem princípios, toma-se um susto inicial, que causa certa prevenção e curiosidade. Para mim esse ponto é importante, porque toca diretamente no assunto de que quero falar nessa postagem.
Quero dizer logo de cara que não são os argumentos de Alexander e Kress contra a existência dos princípios que me impressionaram nesse artigo, embora ache que eles façam bastante sentido e dêem espaço para um boa discussão. O que realmente me impressionou foi a descrição que Alexander e Kress fizeram do que são e de como funcionam os princípios jurídicos na obra de Dworkin. Uma descrição tão diferente da que habitualmente se lê nos manualecos que falam disso no Brasil que me deixou sem fôlego. Vocês vão ver por que me causou essa reação.
Qual a descrição habitual da teoria de Dworkin, com que eu estou acostumado? Alguma coisa mais ou menos assim: Dworkin defende, contra Hart, que nem todos os padrões (standards) a que as decisões judiciais obedecem são regras, porque algumas delas têm um funcionamento lógica e praticamente diferente das regras; esses outros padrões, chamados de "princípios", têm a particularidade de (i) não serem aplicados na forma "tudo ou nada", quer dizer, serem aplicados às situações conforme o peso relativo que tenham para ela, (ii) não poderem ter todas as possíveis exceções listadas, como o enunciado completo de uma regra poderia e deveria fazer e, (iii) quando entram em conflito uns com os outros, esse conflito pode ser resolvido por ponderação entre eles, sem que nenhum tenha que ser excluído ou excepcionado pelo outro; os princípios, em sentido lato, se dividem ainda em princípios, em sentido estrito, que são exigências de justiça e moralidade, fixando direitos a serem respeitados, e políticas, que são objetivos socialmente relevantes, fixando metas a serem alcançadas, sendo que as políticas podem ser perseguidas apenas até o limite em que não violem os princípios em sentido estrito, bem como não devem servir de fundamento para decisões judiciais, sob pena de uma politização indevida do judiciário. Se você tem alguma familiaridade com a teoria de Dworkin, é provável que tenha tido contato com uma versão mais ou menos desse tipo.
Pois bem, qual foi a descrição de Alexander e Kress sobre a teoria dworkiniana dos princípios que tanto me impressionou? Os autores endossam tudo que foi dito acima, sem nenhuma retificação. Mas se concentram numa passagem do Cap. 4 ("Casos difíceis") de Taking rights seriously ("Levando os direitos a sério", São Paulo, Martins Fontes, 1998), em que Dworkin distingue os princípios jurídicos dos princípios morais. Segundo eles, para Dworkin o que distingue os dois tipos de princípios é que, enquanto os princípios morais são princípios dotados apenas de aceitabilidade moral, os princípios jurídicos são princípios dotados de aceitabilidade moral e ajustamento às decisões institucionais. Isso quer dizer que um conjunto de princípios moralmente corretos não têm força jurídica imediata a menos que possam ajustar-se à história das decisões institucionais tomadas até aqui. Quando isso não acontece, quer dizer, quando os princípios "mais corretos" não se ajustam às decisões institucionais, eles devem ser afastados e se deve dar preferência a um conjunto "menos correto" de princípios, desde que tais princípios tenham mais ajustamento às decisões institucionais. O importante é que, dos muitos princípios que poderiam ajustar-se às decisões institucionais, escolham-se aqueles que, mesmo sem serem os "mais corretos" entre todos os princípios concebíveis, são os "mais corretos" entre os princípios que se ajustam.
Aí você pensa: "Sim, cadê a novidade? Todo mundo sabe que Dworkin faz a dupla exigência de aceitabilidade moral e ajustamento institucional, de modo que se use de certo 'equilíbrio reflexivo', posteriormente chamado de 'integridade', entre as duas exigências, na escolha do melhor conjunto de princípios". Tudo bem, é verdade. Mas o momento em que Alexander e Kress realmente me surpreenderam foi quando falaram de algo que eu desconhecia: a extrema semelhança entre o procedimento que Dworkin recomenda para a descoberta e seleção dos princípios e o procedimento costumeiramente recomendado nos manuais da common law americana para encontrar aquelas "diretrizes" e "padrões gerais" que guiam um grande número de precedentes diferentes. Fazem isso ao longo de um item inteiro, chamado "A descrição de Dworkin dos princípios jurídicos e as metodologias-padrão de análise jurídica", do qual vou transcrever uma passagem significativa:
"A descrição de Dworkin dos princípios jurídicos, naturalmente, é abstrata e teórica. Mas sua força como descrição resulta do êxito com que capta as metodologias-padrão dos estudiosos do Direito, advogados e juízes. Qualquer um que já tenha escrito sumários, pareceres ou artigos acadêmicos no nível médio da doutrina está familiarizado com o seguinte procedimento. Você tem uma questão específica que, como acadêmico, juiz ou advogado, deseja solucionar. Primeiramente, você recolhe os casos na área especial do Direito. Então, procura um princípio ou política atraente que, se seguido coerentemente, teria gerado a maioria dos resultados nesses casos. Em outras palavras, você procura por uma teoria normativamente atraente que abranja os casos. A teoria não precisa ser moralmente correta, já que os princípios morais corretos podem produzir muitos resultados divergentes dos resultados existentes na área. A teoria tem de ser apenas uma teoria tão moralmente atraente quanto pode ser uma teoria incorreta e que, ainda assim, dê conta dos resultados. Além disso, a teoria não precisa dar conta de todos os resultados, embora quanto mais o faça, melhor. Alguns resultados podem ser considerados 'erros' se a teoria abrangente é moralmente atraente. A teoria precisa apenas dar conta da maioria dos resultados. Chamaremos essa metodologia de teoria reconstrutiva".
Se a tese de Alexander e Kress sobre a semelhança entre o procedimento de Dworkin e essa "teoria reconstrutiva" da common law americana estiver certa resultam daí algumas conclusões:
1. Os princípios não são, então, um segundo tipo de normas positivadas, cuja aplicação lógica e prática é distinta da das regras (como são em Alexy, por exemplo). Os princípios não apenas não precisam estar positivados, como normalmente não estão, sendo produto de uma descoberta "a posteriori" e reconstrutiva do teórico ou do operador do direito.
2. "Princípios" como a liberdade de expressão e a vedação das provas ilícitas não são verdadeiros princípios, não apenas porque tais "princípios" estão explicitamente positivados, mas também porque são diretamente invocados como fundamentos de decisões institucionais, não sendo, portanto, necessários enquanto hipóteses reconstrutivas de decisões de certa área.
3. Estas normas que não são princípios, mas também não se parecem com regras, seriam na verdade um outro tipo de normas, os "padrões" (standards). Vejam a seguinte passagem: "As normas jurídicas podem ser divididas de duas maneiras. Primeiro, existe a conhecida dicotomia entre regras e padrões. As regras são as normas jurídicas formais e mecânicas. São acionadas por algumas questões facilmente identificadas e são opacas, na aplicação, aos valores que se destinam a servir. Os padrões, por outro lado, são normas jurídicas flexíveis, sensíveis ao contexto, que exigem julgamentos avaliatórios na sua aplicação. Uma regra paradigmática é 'dirija a 55 milhas por hora ou menos'. Um padrão pardigmático é 'dirija com segurança'. A maioria das normas jurídicas é híbrida, no sentido de que possuem elementos semelhantes a regras e semelhantes a padrões". Aqueles que estão familiarizados com a teoria dos princípios de Robert Alexy devem ter percebido a notável semelhança entre essa divisão, que data dos anos 70 nos EUA, e a divisão entre regras e princípios tal como é feita, em 1988, pelo autor de "Theorie der Grundrechte" ("Teoría de los derechos fundamentales", Madrid, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2001). Se se chegasse à conclusão de que, na verdade, os direitos fundamentais ocupam na teoria de Dworkin o papel de "standards", e não de "princípios", o passo seguinte seria deixar de comparar a teoria dos princípios de Alexy e de Dworkin, porque, embora usem ambas o nome "princípios", não falam da mesma coisa, e passar a comparar a teoria alexiana dos princípios com a teoria americana dos padrões. Essa seria uma conclusão e tanto!
4. Finalmente, se a descrição de Alexander e Kress estiver certa, então, a teoria dos princípios de Dworkin deve ser considerada, na verdade, uma teoria sobre como unificar ou integralizar séries desconexas de regras e decisões a partir de "diretrizes gerais" que tenham ao mesmo tempo apelo moral e ajuste institucional. Tais "diretrizes gerais", que seriam os princípios em sentido dworkiniano, não se confundiriam com os direitos fundamentais nem com outras exigências morais que estão explicitamente previstas nos ordenamentos jurídicos modernos. Elas seriam entidades teoréticas, criadas a posteriori pelo exame reconstrutivo, cuja função é dar unidade teórica e moral às regras das leis e dos precedentes. Não sei para vocês, mas para mim isso seria um baita giro no modo de ler a teoria de Dworkin.
Antes de terminar, quero apenas afastar uma objeção óbvia, que eu mesmo não deixei de levantar. E se toda essa confusão foi causada apenas por uma descrição exótica e francamente inadequada da teoria de Dworkin? E se a identificação de Alexander e Kress da integridade dworkiniana com a "teoria reoconstrutiva" da commmon law americana foi apenas uma suposição precipitada e infeliz desses autores? Bem, para me livrar dessa dúvida, corri atrás dos artigos de outros autores que eles citam nas notas de rodapé e dos capítulos e passagens de Dworkin que eles usam. Essas consultas apenas aumentaram o tamanho do elefante que Alexander e Kress plantaram atrás da minha orelha. Os mais impressionantes de todos são "Rules, standards and principles", de Ronald Dworkin (em que alguns direitos fundamentais são explicitamente citados como exemplos de standards, e não de princípios) e "The jurisprudence of reason", de Frererick Schauer (que é ua resenha de "O império do direito", de Dworkin, e descreve as regras como o "eixo de ajuste" e os princípios morais como o "eixo de aceitabilidade", localizando os princípios jurídicos entre esses dois).
Gostaria de discutir esse assunto com todos os interessados. Estou verdadeiramente pasmado com as novas possibilidades que esse artigo abriu na interpretação da obra de Dworkin.
Abraços a todos!
Comentários
vc como sempre me surprendendo a cada dia, não é atoa que digo q vc é o mestre nota 10.
Pode ser uma nova visão sobre Dworkin, mas também pode ser apenas uma questão de semântica.
Sei lá....
Eu apresento minha monografia em junho e se tivesse acesso a esse texto antes eu certamente incrementaria ele, pois achei sensacional o posicionamento desses autores.
Um braço André.
Thiago