Sobre máximas de proporcionalidade e postulados normativos
Foi Alexy que primeiro disse que os princípios deviam ser aplicados segundo as três "máximas da proporcionalidade": necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Mais tarde, comentando criticamente a obra de Alexy, o brasileiro Humberto Ávila propôs a substituição das "máximas da proporcionalidade" pelos "postulados normativos", espécies de normas de segundo grau, que orientam a aplicação tanto de regras quanto de princípios: razoabilidade, proporcionalidade e proibição de excesso. A aplicação de uma norma (regra/princípio) seria razoável quando atendesse o fim a que ela se destina, seria proporcional quando encontrasse um equilíbrio entre o bem realizado e o sacrificado e seria não excessiva quando evitasse sacrificar um bem desnecessariamente ou mais que o necessário. Gostaria de discutir um pouco essa idéia de Ávila.
Suponha a norma de trânsito que fixa o limite de velocidade de uma rua em 60Km/h e uma multa de R$100,00 para quem o ultrapasse. Ora, segundo a distinção forte entre regras e princípios, essa seria uma regra. Porém, segundo Ávila, mesmo sendo regra, sua aplicação estaria sujeita aos três postulados normativos. Significa que, mesmo que um automóvel passa por essa rua a uma velocidade superior a 60Km/h, ainda há outros requisitos que precisariam ser preenchidos antes de aplicar-lhe a multa de R$100,00. Seria preciso saber se tal aplicação atende o fim a que a regra se destina. Ora, pode haver certa divergência quanto a isso. Posso supor que o fim da regra é manter a velocidade dos carros na referida rua igual ou inferior a 60Km/h. Nesse caso seria um tanto duvidoso se a aplicação da multa levará àquele fim. Pode ser que aquele carro nunca mais passe naquela rua, pode ser que o motorista esteja de mudança para outra cidade, pode ser que considere baixa a multa de R$100,00, pode ser que sequer ligue o nome da rua ao evento daquele dia quando vir o registro da multa. A suposição de que, como foi multado, da próxima vez agirá diferentemente é plausível, mas não é a única possível e está longe de ser verdadeira para a maioria dos casos. Restaria saber se basta que a suposição de que a aplicação da regra atenderá ao fim proposto seja plausível para que já se justifique sua aplicação. Ao que parece, a consideração da "razoabilidade" da aplicação da regra me levaria à consideração sobre a própria efetividade da legislação de trânsito e da política de multas, o que me parece ultrapassar um pouco as funções judiciais de julgamento.
Agora suponha a proporcionalidade. Ainda raciocinando sobre a aplicação da regra acima exemplificada, o bem realizado com a aplicação da multa é, digamos, segurança - nesse caso, a segurança do próprio motorista, dos outros motoristas e dos transeuntes - e o bem sacrificado é patrimônio - uma vez que a multa é em dinheiro. Aparentemente a pergunta a ser feita é se existe um equilíbrio entre a realização da segurança e o sacrifício do patrimônio. Mas isso não é claro: quanto de segurança precisa ser realizado e quanto de patrimônio precisa ser sacrificado para que ambas as coisas estejam em equilíbrio? Talvez seja melhor substituir a fórmula, mais abstrata, do equilíbrio pela fórmula, mais concreta, de que (a) o sacrifício de patrimônio não seja tão pequeno que não aumente em nada a probabilidade de maior realização da segurança e (b) o sacrifício do patrimônio não seja tão grande que ultrapasse largamente o necessário para a realização da segurança. É interessante notar que, vertida dessa maneira, a proporcionalidade parece poder ser reduzida aos outros dois postulados normativos, porque (a) nada mais é que uma fórmula de razoabilidade e (b) nada mais é que uma fórmula de proibição de excesso. Mas bem, voltando ao ponto comentado. E se o juiz chegar à conclusão de que R$100,00 é pouco sacrifício ou é muito sacrifício? Pode impor uma multa de, digamos, R$50,00 ou de, digamos, R$200,00? Parece controverso que possa. Talvez, com alguma tolerância, possa impor a multa de R$50,00, mas certamente não a de R$200,00 (embora a consideração para dizer que não pode seja a legalidade, e para Ávila a legalidade é um princípio, sujeito, como todo princípio, à ponderação no caso concreto e, portanto, sacrificável em vista de princípio de maior peso). Aqui novamente o limite entre adjudicação e legislação parece ser claramente apagado e ultrapassado.
Finalmente, a proibição de excesso. Aqui vale a pena levar em conta outra coisa que até agora ficou esquecida. O "valor" do sacrifício deve ser medido segundo um critério objetivo ou subjetivo? Digamos que fosse um critério objetivo. Ter-se-ia que levar em conta o motorista médio, com sua renda média, ou algo do gênero. Ora, mas essa consideração já não teria sido feita antes pelo legislador? Ao instituir uma multa de R$100,00, em vez de, por exemplo, R$50,00 ou R$200,00, o legislador já não estaria dizendo que sacrifício considera proporcional e não excessivo para o motorista brasileiro médio? Parece que sim. Nesse caso, o critério da proibição de excesso só faria sentido como medida com vista ao caso particular e concreto, para temperar a suposição do legislador nos casos em que ela se aplica menos adequadamente. Para isso, o critério teria que ser subjetivo. Digamos agora que o critério fosse subjetivo. Ora, uma multa de R$100,00 pode ser cara para quem ganha R$1.000,00 e barata para quem ganha R$1.000.000,00. Significa que, aplicada ao primeiro, constituiria um excesso, mas ao segundo, não? Se for assim, pessoas de baixa renda podem ter suas multas de trânsito reduzidas ou mesmo anuladas com base na proibição de excesso? Isso não equivaleria a uma autorização tácita para que motoristas de baixa renda dirijam naquela rua na velocidade que bem entenderem? Não levaria a um "conflito de segundo grau", entre postulados normativos, nesse caso a razoabilidade e a proibição de excesso, dado que evitar o excesso poderia frustrar a finalidade em casos particulares? E como se resolvem conflitos de segundo grau, já que não há normas jurídicas superiores aos postulados normativos e, segundo Ávila, os postulados normativos não podem ter sua aplicação afastada em nenhum caso e sob nenhum argumento?
Bom, são algumas questões para pensar com Ávila. Gostaria de saber a opinião dos demais sobre o assunto.
Suponha a norma de trânsito que fixa o limite de velocidade de uma rua em 60Km/h e uma multa de R$100,00 para quem o ultrapasse. Ora, segundo a distinção forte entre regras e princípios, essa seria uma regra. Porém, segundo Ávila, mesmo sendo regra, sua aplicação estaria sujeita aos três postulados normativos. Significa que, mesmo que um automóvel passa por essa rua a uma velocidade superior a 60Km/h, ainda há outros requisitos que precisariam ser preenchidos antes de aplicar-lhe a multa de R$100,00. Seria preciso saber se tal aplicação atende o fim a que a regra se destina. Ora, pode haver certa divergência quanto a isso. Posso supor que o fim da regra é manter a velocidade dos carros na referida rua igual ou inferior a 60Km/h. Nesse caso seria um tanto duvidoso se a aplicação da multa levará àquele fim. Pode ser que aquele carro nunca mais passe naquela rua, pode ser que o motorista esteja de mudança para outra cidade, pode ser que considere baixa a multa de R$100,00, pode ser que sequer ligue o nome da rua ao evento daquele dia quando vir o registro da multa. A suposição de que, como foi multado, da próxima vez agirá diferentemente é plausível, mas não é a única possível e está longe de ser verdadeira para a maioria dos casos. Restaria saber se basta que a suposição de que a aplicação da regra atenderá ao fim proposto seja plausível para que já se justifique sua aplicação. Ao que parece, a consideração da "razoabilidade" da aplicação da regra me levaria à consideração sobre a própria efetividade da legislação de trânsito e da política de multas, o que me parece ultrapassar um pouco as funções judiciais de julgamento.
Agora suponha a proporcionalidade. Ainda raciocinando sobre a aplicação da regra acima exemplificada, o bem realizado com a aplicação da multa é, digamos, segurança - nesse caso, a segurança do próprio motorista, dos outros motoristas e dos transeuntes - e o bem sacrificado é patrimônio - uma vez que a multa é em dinheiro. Aparentemente a pergunta a ser feita é se existe um equilíbrio entre a realização da segurança e o sacrifício do patrimônio. Mas isso não é claro: quanto de segurança precisa ser realizado e quanto de patrimônio precisa ser sacrificado para que ambas as coisas estejam em equilíbrio? Talvez seja melhor substituir a fórmula, mais abstrata, do equilíbrio pela fórmula, mais concreta, de que (a) o sacrifício de patrimônio não seja tão pequeno que não aumente em nada a probabilidade de maior realização da segurança e (b) o sacrifício do patrimônio não seja tão grande que ultrapasse largamente o necessário para a realização da segurança. É interessante notar que, vertida dessa maneira, a proporcionalidade parece poder ser reduzida aos outros dois postulados normativos, porque (a) nada mais é que uma fórmula de razoabilidade e (b) nada mais é que uma fórmula de proibição de excesso. Mas bem, voltando ao ponto comentado. E se o juiz chegar à conclusão de que R$100,00 é pouco sacrifício ou é muito sacrifício? Pode impor uma multa de, digamos, R$50,00 ou de, digamos, R$200,00? Parece controverso que possa. Talvez, com alguma tolerância, possa impor a multa de R$50,00, mas certamente não a de R$200,00 (embora a consideração para dizer que não pode seja a legalidade, e para Ávila a legalidade é um princípio, sujeito, como todo princípio, à ponderação no caso concreto e, portanto, sacrificável em vista de princípio de maior peso). Aqui novamente o limite entre adjudicação e legislação parece ser claramente apagado e ultrapassado.
Finalmente, a proibição de excesso. Aqui vale a pena levar em conta outra coisa que até agora ficou esquecida. O "valor" do sacrifício deve ser medido segundo um critério objetivo ou subjetivo? Digamos que fosse um critério objetivo. Ter-se-ia que levar em conta o motorista médio, com sua renda média, ou algo do gênero. Ora, mas essa consideração já não teria sido feita antes pelo legislador? Ao instituir uma multa de R$100,00, em vez de, por exemplo, R$50,00 ou R$200,00, o legislador já não estaria dizendo que sacrifício considera proporcional e não excessivo para o motorista brasileiro médio? Parece que sim. Nesse caso, o critério da proibição de excesso só faria sentido como medida com vista ao caso particular e concreto, para temperar a suposição do legislador nos casos em que ela se aplica menos adequadamente. Para isso, o critério teria que ser subjetivo. Digamos agora que o critério fosse subjetivo. Ora, uma multa de R$100,00 pode ser cara para quem ganha R$1.000,00 e barata para quem ganha R$1.000.000,00. Significa que, aplicada ao primeiro, constituiria um excesso, mas ao segundo, não? Se for assim, pessoas de baixa renda podem ter suas multas de trânsito reduzidas ou mesmo anuladas com base na proibição de excesso? Isso não equivaleria a uma autorização tácita para que motoristas de baixa renda dirijam naquela rua na velocidade que bem entenderem? Não levaria a um "conflito de segundo grau", entre postulados normativos, nesse caso a razoabilidade e a proibição de excesso, dado que evitar o excesso poderia frustrar a finalidade em casos particulares? E como se resolvem conflitos de segundo grau, já que não há normas jurídicas superiores aos postulados normativos e, segundo Ávila, os postulados normativos não podem ter sua aplicação afastada em nenhum caso e sob nenhum argumento?
Bom, são algumas questões para pensar com Ávila. Gostaria de saber a opinião dos demais sobre o assunto.
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