"A República" (I)
Encerrei ontem meu semestre letivo na Faculdade de Castanhal (FCAT), onde tive oportunidade de ensinar Ciência Política e Teoria Geral do Estado a duas belas turmas que ficarão sempre guardadas com muito carinho em minha memória. No próximo semestre não comporei o quadro docente dessa instituição, porque só haverá novamente uma turma de calouros no início de 2009, quando, certamente, estarei de volta para tirar o sono de novos alunos e, de vez em quando, ensinar-lhes alguma coisa.
Propus, contudo, um curso de extensão sobre a obra "A República", de Platão, que, se aprovado pela FCAT, ministrarei no mês de setembro próximo. Será uma boa oportunidade de rever meus queridos ex-alunos. Será também uma boa oportunidade para falar sobre uma das maiores obras filosóficas da humanidade, um verdadeiro monumento à racionalidade e à reflexão política. Até lá, soltarei de vez em quando algumas pílulas de comentários aqui no blog, onde, suponho e torço, esses alunos e vários outros leitores terão oportunidade de acesso.
Bem, para começar a República é um diálogo. Isso quer dizer que, embora seja uma obra de Filosofia, não tem o formato literário normal das obras de filosofia, quer dizer, o formato de tratado, de apresentação sucessiva e sistemática das idéias de um autor acerca de alguma coisa. Tem, ao contrário, o formato de uma conversa, uma conversa entre amigos sobre um tema instigante. Os amigos em questão, Sócrates, Céfalo, Glauco, Adimanto, Polemarco etc., se deparam com o tema da justiça e decidem enfrentá-lo com coragem e profundidade.
Penso que essa é uma bela imagem da filosofia. Uma conversa entre amigos, uma situação de reflexão, sim, mas também de prazer, de troca de idéias sem máscaras, sem floreios, sem sisudez, sem vaidades, sem medos. Uma situação para falar o que se pensa e ouvir o que os outros pensam sobre a mesma coisa. Um momento para descobrir que a outra pessoa, com outra experiência de vida, pensa o mesmo que eu, ou pensa algo totalmente diferente. Um espaço em que se pode concordar sem obrigações e se pode discordar sem atritos. Sim, é uma bela imagem de como a filosofia deveria ser sempre.
Pois bem, mas essa conversa entre amigos não é uma conversa qualquer. Não se trata de uma conversa apenas para se divertir, contar histórias engraçadas, fugir dos compromissos, evitar a seriedade. É uma conversa muito séria, muito comprometida, em que ninguém está ali para usar menos que a razão nem para aceitar menos que a verdade. Outra bela imagem: amigos reunidos, usando a razão para encontrar a verdade. Todos provocados pela dúvida, ansiosos por uma resposta, mas não qualquer resposta rápida e superficial, e sim uma resposta sólida, capaz de resistir a qualquer crítica, capaz de convencer qualquer intelecto.
Nos dias de hoje não são muitas as conversas assim. Geralmente nossas conversas giram em torno de assuntos banais e cotidianos. Não há nada de errado em falar de coisas banais e cotidianas. Não há nada de errado em contar histórias, rir-se de piadas, jogar conversa fora. Pelo contrário, esse é uma prazer de que jamais deveríamos abrir mão. Mas existe, sim, alguma coisa de errado na nossa aversão pelos temas sérios. Toda conversa entre seres humanos termina, cedo ou tarde, tocando num ponto mais sério, um ponto mais profundo, aquelas questões para as quais ou não temos respostas ou as que temos estão longe de serem completas e satisfatórias (e aí está um dos motivos pelos quais a filosofia é, de certa forma, inevitável).
É nessa hora que deveria se despertar a vocação que todos temos para a filosofia. É nessa hora que o Sócrates que habita em cada um deveria chamar a conversa para um caminho mais sério e ousar perguntar: "Mas, enfim, o que vocês pensam disso?", "O que é isso, afinal de contas?", "Por que será que é assim?".
Foi o que fez o Sócrates da República. Céfalo, rico e de idade avançada, falava sem maiores preocupações sobre as vantagens e desvantagens de ser tão rico e, de repente, mencionou que a riqueza lhe ajudava a ser mais justo. Queria dizer que assim não ficava devendo a ninguém, podia pagar pelas coisas que precisava, sem tomar empréstimos, sem deixar contas em aberto. Sócrates, estimulado pela referência à justiça, trouxe à tona uma questão que há muito lhe intrigava: Afinal, que significa ser justo? O que é a justiça?
Tal como na nossa época, na época de Sócrates as pessoas também não tinham tanto fôlego e disposição para discussões difíceis. Logo que eram perguntadas por essas questões desafiadoras, procuravam dar alguma resposta apressada, geralmente reproduzindo as crenças comuns de seu tempo, e ficavam satisfeitas com isso. Mas Sócrates tinha um método para lidar com essa precipitação, evitando, assim, a sabotagem do diálogo.
O método de Sócrates consistia em fazer perguntas, em desafiar as respostas fáceis de seus interlocutores, mostrando que estavam longe de serem sólidas ou satisfatórias como eles pensavam que elas eram. Fazia isso e pedia uma nova resposta, recebia uma e voltava a fazer a mesma coisa. Fazia isso de novo e de novo, até que, em algum momento, o interlocutor, desarmado de suas respostas cotidianas, incapaz de oferecer uma resposta mais aceitável, era obrigado a confessar: "É, Sócrates, de fato, eu não sei o que é isso", ou "Eu não sei por que é assim".
Essa confissão de ignorância não era o ponto final da discussão, mas, ao contrário, era o seu ponto de partida. Admitir que não se sabe é o primeiro passo na direção da busca de uma resposta, pois não se busca aquilo que se pensa ter, mas aquilo que não se tem. E, se os interlocutores percebem que lhes falta a resposta, que na verdade não sabem o que pensavam saber, que na verdade se sentem confusos e carentes de alguma orientação, é exatamente aí que nasce a motivação para prestar atenção ao assunto, para engajar-se na discussão, para buscar, na companhia desses amigos de debate, a resposta capaz de pôr fim a essa angústia.
Mas a nova resposta que se busca, ao contrário daquelas em que se acreditava antes, não é qualquer resposta, porque agora se despertou o senso crítico, agora se submeterá cada nova candidata a resposta à mesma bateria de testes e refutações por que passaram as primeiras respostas, para não se aceitar falsa moeda pela segunda vez. E nessa conjunção: consciência da própria ignorância, amor pela verdade, angústia por resposta e senso crítico de avaliação - nessa explosiva conjunção habita a filosofia, como exercício de razão e procura da sabedoria.
Propus, contudo, um curso de extensão sobre a obra "A República", de Platão, que, se aprovado pela FCAT, ministrarei no mês de setembro próximo. Será uma boa oportunidade de rever meus queridos ex-alunos. Será também uma boa oportunidade para falar sobre uma das maiores obras filosóficas da humanidade, um verdadeiro monumento à racionalidade e à reflexão política. Até lá, soltarei de vez em quando algumas pílulas de comentários aqui no blog, onde, suponho e torço, esses alunos e vários outros leitores terão oportunidade de acesso.
Bem, para começar a República é um diálogo. Isso quer dizer que, embora seja uma obra de Filosofia, não tem o formato literário normal das obras de filosofia, quer dizer, o formato de tratado, de apresentação sucessiva e sistemática das idéias de um autor acerca de alguma coisa. Tem, ao contrário, o formato de uma conversa, uma conversa entre amigos sobre um tema instigante. Os amigos em questão, Sócrates, Céfalo, Glauco, Adimanto, Polemarco etc., se deparam com o tema da justiça e decidem enfrentá-lo com coragem e profundidade.
Penso que essa é uma bela imagem da filosofia. Uma conversa entre amigos, uma situação de reflexão, sim, mas também de prazer, de troca de idéias sem máscaras, sem floreios, sem sisudez, sem vaidades, sem medos. Uma situação para falar o que se pensa e ouvir o que os outros pensam sobre a mesma coisa. Um momento para descobrir que a outra pessoa, com outra experiência de vida, pensa o mesmo que eu, ou pensa algo totalmente diferente. Um espaço em que se pode concordar sem obrigações e se pode discordar sem atritos. Sim, é uma bela imagem de como a filosofia deveria ser sempre.
Pois bem, mas essa conversa entre amigos não é uma conversa qualquer. Não se trata de uma conversa apenas para se divertir, contar histórias engraçadas, fugir dos compromissos, evitar a seriedade. É uma conversa muito séria, muito comprometida, em que ninguém está ali para usar menos que a razão nem para aceitar menos que a verdade. Outra bela imagem: amigos reunidos, usando a razão para encontrar a verdade. Todos provocados pela dúvida, ansiosos por uma resposta, mas não qualquer resposta rápida e superficial, e sim uma resposta sólida, capaz de resistir a qualquer crítica, capaz de convencer qualquer intelecto.
Nos dias de hoje não são muitas as conversas assim. Geralmente nossas conversas giram em torno de assuntos banais e cotidianos. Não há nada de errado em falar de coisas banais e cotidianas. Não há nada de errado em contar histórias, rir-se de piadas, jogar conversa fora. Pelo contrário, esse é uma prazer de que jamais deveríamos abrir mão. Mas existe, sim, alguma coisa de errado na nossa aversão pelos temas sérios. Toda conversa entre seres humanos termina, cedo ou tarde, tocando num ponto mais sério, um ponto mais profundo, aquelas questões para as quais ou não temos respostas ou as que temos estão longe de serem completas e satisfatórias (e aí está um dos motivos pelos quais a filosofia é, de certa forma, inevitável).
É nessa hora que deveria se despertar a vocação que todos temos para a filosofia. É nessa hora que o Sócrates que habita em cada um deveria chamar a conversa para um caminho mais sério e ousar perguntar: "Mas, enfim, o que vocês pensam disso?", "O que é isso, afinal de contas?", "Por que será que é assim?".
Foi o que fez o Sócrates da República. Céfalo, rico e de idade avançada, falava sem maiores preocupações sobre as vantagens e desvantagens de ser tão rico e, de repente, mencionou que a riqueza lhe ajudava a ser mais justo. Queria dizer que assim não ficava devendo a ninguém, podia pagar pelas coisas que precisava, sem tomar empréstimos, sem deixar contas em aberto. Sócrates, estimulado pela referência à justiça, trouxe à tona uma questão que há muito lhe intrigava: Afinal, que significa ser justo? O que é a justiça?
Tal como na nossa época, na época de Sócrates as pessoas também não tinham tanto fôlego e disposição para discussões difíceis. Logo que eram perguntadas por essas questões desafiadoras, procuravam dar alguma resposta apressada, geralmente reproduzindo as crenças comuns de seu tempo, e ficavam satisfeitas com isso. Mas Sócrates tinha um método para lidar com essa precipitação, evitando, assim, a sabotagem do diálogo.
O método de Sócrates consistia em fazer perguntas, em desafiar as respostas fáceis de seus interlocutores, mostrando que estavam longe de serem sólidas ou satisfatórias como eles pensavam que elas eram. Fazia isso e pedia uma nova resposta, recebia uma e voltava a fazer a mesma coisa. Fazia isso de novo e de novo, até que, em algum momento, o interlocutor, desarmado de suas respostas cotidianas, incapaz de oferecer uma resposta mais aceitável, era obrigado a confessar: "É, Sócrates, de fato, eu não sei o que é isso", ou "Eu não sei por que é assim".
Essa confissão de ignorância não era o ponto final da discussão, mas, ao contrário, era o seu ponto de partida. Admitir que não se sabe é o primeiro passo na direção da busca de uma resposta, pois não se busca aquilo que se pensa ter, mas aquilo que não se tem. E, se os interlocutores percebem que lhes falta a resposta, que na verdade não sabem o que pensavam saber, que na verdade se sentem confusos e carentes de alguma orientação, é exatamente aí que nasce a motivação para prestar atenção ao assunto, para engajar-se na discussão, para buscar, na companhia desses amigos de debate, a resposta capaz de pôr fim a essa angústia.
Mas a nova resposta que se busca, ao contrário daquelas em que se acreditava antes, não é qualquer resposta, porque agora se despertou o senso crítico, agora se submeterá cada nova candidata a resposta à mesma bateria de testes e refutações por que passaram as primeiras respostas, para não se aceitar falsa moeda pela segunda vez. E nessa conjunção: consciência da própria ignorância, amor pela verdade, angústia por resposta e senso crítico de avaliação - nessa explosiva conjunção habita a filosofia, como exercício de razão e procura da sabedoria.
Comentários
Li A República com vinte e pouquinhos anos. Reconheço, hoje, muitas brechas em minha educação, a começar porque jamais me foram indicados clássicos para ler, antes da graduação. Um crime contra mim, mas em geral só nos damos conta disso muito tarde (embora não o bastante para remediar). E a obra em questão, justamente por sua forma de diálogo, permite a compreensão do leigo - ainda que (ou talvez justamente porque), volta e meia, precisemos interromper a leitura para absorver devagar o que foi lido. Às vezes, eu me permitia divagar por algum tempo, puxando outras questões.
Infelizmente, na ocasião eu não dispunha de alguém com quem compartilhar minhas reflexões, daí que elas devem ter-se estagnado. O conhecimento não é um produto individual: ele precisa de alguma interação para alcançar maior grau de desenvolvimento. Desejo, por isso, que a FCAT autorize o teu curso e, desde já, lamento não poder participar dele.
A FCAT é nova, seus alunos são recém-chegados ao mundo do Direito e, por isso, creio que este seja o melhor momento para estabelecer culturas, hábitos, que podem vir a caracterizar o curso e os profissionais dele saídos. Espero que a instituição e, especialmente, os alunos saibam aproveitar isso.
Sucesso!
Quanto à leitura da República, penso que, como toda obra clássica com longa história de interpretação, a República possui pelo menos três níveis de acesso a que todos os alunos deveriam ser estimulados a chegar. O primeiro é o nível que se alcança sozinho, mediante leitura atenta e dedicada, com pausas de reflexão e digestão das idéias expostas. O segundo é o nível que se alcança com auxílio de um professor, que se coloca como um leitor mais experimentado, capaz de chamar a sua atenção para pontos despercebidos, mostrar conexos entre idéias veiculadas em momentos diferentes do texto, tornar mais visível a importância de certas passagens, colocar as idéias do texto em contraste com seu pano de fundo cultural e com as tradições anterior e posterior. E, finalmente, o terceiro nível é aquele que se acessa pelas mãos dos mais autorizados comentadores do autor e da obra, aqueles especialistas que levantam questões e propõem interpretações originais do texto, redefinindo o modo de vê-lo e de compreendê-lo seja em seu conteúdo, seja em sua relevância. Acredito que pelo menos os primeiros dois níveis sejam passíveis de alcançar quando se têm oportunidades como essa do curso que propus.
Sabe o que eu gostaria muito? Gostaria muito de propor e executar um curso, ou pelo menos um programa de palestras, sobre autores e obras clássicas do pensamento ocidental, mas voltado para professores, especialmente para professores de Direito, mostrando as relações e influências daquelas idéias no Direito e como as questões fundamentais podem ser conectadas com as questões técnicas do saber dogmático. Acho que falta essa infraestrutura clássica na formação docente dos professores.
Abraços!
Acabou o semestre e muitas coisas apredi. aprendi que tenho tenho que estudar muito, aprendi que tenho que ler muito e como disse o Willian Whakespeare, "para se crescer como pessoa e preciso me cercar de gente mais inteligente do que eu..." .. felizmente eu me "cerquei" de você. onde aprendi muita coisa. Obrigado por tudo. Muito Sucesso e muita saúde. Boas Férias. e Se nao Ministrar a palestra Que pretendes, Até o Ano que vem. Fica com Deus. e como dizem meus amigos españos: "Quedas con Dios".. abracão - Gui