Filosofia e Literatura (I): Comentários ao Conto "A Carteira", de Machado de Assis
Segue abaixo o conto "A Carteira", de Machado de Assis. Os números entre parênteses se referem aos meus comentários, listados em ordem ao final.
A Carteira
Machado de Assis
...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira (1). Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu (2), salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
-- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
-- É verdade, concordou Honório envergonhado (3).
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado (4). A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta coisa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.
-- Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.
-- Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
-- Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando (5).
Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes. Enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou-se à parede, olhando para fora (6). Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira (7). Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo (8).
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo (9). Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? (10) E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar- me do dinheiro," pensou ele (11). Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele (12).
A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo (13). Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer." (14)
Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma coisa.
-- Nada.
-- Nada?
-- Por quê?
-- Mete a mão no bolso; não te falta nada?
-- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?
-- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio (15). Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.
-- Mas conheceste-a?
-- Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor. (16)
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(1) "De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira". Todo o restante do conto girará em torno do conflito de Honório entre usar ou não o dinheiro que achara na carteira. Machado já enuncia, desde a primeira frase, o conflito moral em que baseará a trama. Achar a carteira de outra pessoa na rua é o que se pode chamar de conflito moral típico: de um lado, o desejo de apoderar-se do dinheiro achado; de outro lado, o dever de respeitar a propriedade alheia. Não se trata de escolher a mais correta entre duas alternativas de ação, e sim de escolher entre a alternativa claramente correta, que nega o desejo, e a alternativa claramente incorreta, que o satisfaz.
(2) "Ninguém o viu", informa o narrador. Recorda a lenda do Anel de Giges: Giges, pastor grego honesto, encontra um anel mágico, capaz de torná-lo invisível, depois do que perde seus escrúpulos e limites, comete todo tipo de atrocidade, torna-se o pior de todos os crápulas. Moral da história: O controle moral que os homens exercem sobre si se deve antes à prudência que à honestidade, de modo que, se um homem pudesse violar as regras morais sem jamais ser descoberto, certamente o faria. Honório não tem anel mágico, mas, se não está invisível fisicamente, o está socialmente, porque ninguém o viu pegar a carteira, ou pelo menos ninguém que soubesse que ela não lhe pertencia, ninguém que pudesse lançar sobre ele o olhar inquisidor, crítico, controlador, da sociedade. Isso anuncia que se trata apenas de um conflito entre Honório e Honório: se fraquejar e ficar com o dinheiro, ninguém saberá, ninguém o condenará, ninguém sequer o recordará disso no futuro. Essa circunstância, por tornar a falta moral mais fácil, torna o conflito ainda mais escruciante.
(3) "Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez", disse-lhe a única testemunha da ocasião, ao que Honório responde envergonhado: "É verdade". Em vez de ser o olhar crítico capaz de despertar seus escrúpulos, o homem à porta da loja, pensando ver o dono de uma carteira perdida a encontrar de novo, faz um comentário que situa Honório numa posição bastante confortável para cometer o erro moral. Bastava assumir-se, perante aquela única testemunha, como o verdadeiro dono da carteira. As circunstâncias do conto, doravante, empurrarão Honório sempre mais para o erro, conspirarão para o seu pecado. Ao mesmo tempo, Honório se vê lançado, antes do que esperava, a um momento de escolha moral: Dizer a verdade ao homem, mentir-lhe ou não dizer nada? Quando parecia que Honório só teria que fazer sua escolha depois, à caminho de algum lugar, quando teria que decidir o que fazer da carteira, vê-se de repente precipitado a uma escolha moral prematura. Como vimos, escolheu mentir, cometeu sua primeira falta, menos grave, como elemento preparatório da outra, mais grave, que ainda não decidira cometer, mas para a qual, como se vê, já se inclinava.
(4) "Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado", comenta o narrador. Ora, se Honório estivesse esbanjando riqueza e a carteira estivesse cheia de dinheiro ou se Honório estivesse necessitado, mas a carteira estivesse vazia, a decisão de deixá-la no chão, de levá-la às autoridades ou de tentar devolvê-la ao dono ainda seria moralmente correta, mas não teria mérito, porque não teria nenhuma dificuldade nem demandaria nenhum esforço ou sacrifício. É a conjugação da necessidade e da oportunidade que instauram no coração de Honório o conflito moral. Já não se trata apenas do desejo por dinheiro, argumento mais fraco e adversário mais leve de abater, mas trata-se, sim, de necessidade, grande e urgente, que, a depender do conteúdo que recheasse a carteira encontrada, poderia ser aliviada ou mesmo resolvida de vez.
(5) Agora sabemos que Honório é advogado, que enfrenta necessidades, acumula dívidas, mas vive de empréstimos e de aparências. Não é casual que exerça a advocacia, profissão com fama associada à mentira e à desonestidade. Esse fato por si, espcialmente num conto machadiano, adiciona suspeitas sobre seu caráter. Mas agora, ao lado da ganância e da necessidade, se coloca outro campeão dos vícios humanos: o orgulho. Honório recusa confessar-se em dificuldades, mesmo para o amigo e a esposa. Para alguém cioso da própria imagem, temeroso de que alguém descubra seus apertos financeiros, ofendido do olhar e do tom de voz dos credores, uma dívida vincenda é coisa ainda mais dolorosa e preocupante. Nesse contexto, a carteira achada se torna uma oportunidade ainda mais irrecusável.
(6) "Enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou-se à parede, olhando para fora". Nota-se a presença da confusão e da dúvida. Apesar da necessidade que sofre e da oportunidade que se lhe apresenta, Honório mantém escrúpulos morais que o lançam em estado de desordem mental, com uma multidão de pensamentos e sentimentos contraditórios que o perturbam. Trava-se uma luta entre razão e desejo.
(7) "Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira". Aqui se marca a oposição com verbos distintos: a consciência lhe "dizia", os apuros "puxavam" por ele. Os verbos refletem a oposição entre saber e desejo, entre conhecimento e inclinação. Se a consciência - a voz que, dentro da alma, representa aqui a parte da personalidade que introjetou as regras morais - lhe diz que não deve, que é errado, é que tem perfeita noção de qual a alternativa que deveria ser tomada e qual deveria ser rejeitada. Contudo, os apuros puxam por ele, ou melhor, a representação mental dos apuros presentes e a representação mental da possibilidade futura de dar fim a eles, esse misto de percepção e antecipação, de conhecimento e imaginação que sempre está presente nos desejos, especialmente nos mais intensos e elaborados.
(8) "Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo". O sujeito do verbo "chegavam" ainda são os apuros, como metonínima da inclinação. Aqui o teste da reciprocidade, famosa ferramenta de orientação moral, ganha uma versão distorcida. A pergunta: "E se fosse comigo?", que normalmente serve para guiar que façamos aos outros apenas o que quereríamos que fizessem a nós (a chamada Regra de Ouro), aqui se converte no pensamento sombrio de que façamos aos outros apenas aquilo que, de fato, os outros fariam por nós. Esse é um artifício para que a maldade alheia escuse a nossa própria, um argumento de que, se fazemos aos outros apenas a mesma maldade que os outros fariam a nós, essa maldade é, por algum motivo, menor ou mais justificada. Não é. Fazermos ao outro o que o outro faria a nós é, sim, reciprocidade, mas reciprocidade de fato, não de direito ou, noutras palavras, reciprocidade de conduta, mas não reciprocidade moral. A reciprocidade que deve guiar a conduta é a reciprocidade moral, e esta consiste em fazermos aos outros apenas aquilo que gostaríamos que eles fizessem a nós, sendo aqui o "gostaríamos" uma forma de elevar-se da conduta fática (no campo do ser) do outro para a conduta desejada (no campo do dever-ser) do outro, esta, sim, o parâmetro com que devemos medir a nossa.
(9) "Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo". Depois de endossar a falsa crença do estranho na rua de que apanhava sua própria carteira perdida, aqui Honório dá um segundo passo em direção ao erro. Conferiu se tinha dinheiro e quanto dinheiro era. Quem estivesse convicto de entregar a carteira de volta, teria interesse de procurar por um nome, um endereço, uma referência. Mas não por contar as notas. Quem conta as notas quer saber se o erro, que pensa em cometer, valeria mesmo a pena. Avalia as possibilidade, calcula entre vantagens e desvantagens. Neutraliza por um momento seu senso moral, para só retomá-lo em seguida, quando voltasse ao seu conflito moral, agora já ciente da extensão dos benefícios seu erro lhe poderia proporcionar.
(10) "Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles?". Passa-lhe pela cabeça que talvez a fortuna, talvez os anjos o tenham favorecido com aquela oportunidade. Se fosse a Fortuna, Deusa pagã, que girava sua roda mística e fazia com que os afortunados se tornassem desgraçados e vice-versa, de uma hora para outra, por seu simples capricho, poderia ser verdade. Afinal, teria de repente tirado aquele dinheiro de um e dado a outro a oportunidade de encontrá-lo, fazendo da perda de um o alívio do outro. Mas a Fortuna pagã é caprichosa e, por isso mesmo, irracional e injusta. Não prejudica os maus e favorece os bons, mas ora prejudica, ora favorece tanto maus quanto bons, indiferentemente, sem outro critério que não o simples arbítrio. Sendo assim, ser por ela favorecida não significa merecer o favor, de modo que aceitá-lo como favor da Fortuna não o reveste de nenhum sentido moral. Se forem, não a Fortuna, mas os anjos, não seriam certamente os anjos divinos e bondosos, pois teriam feito a felicidade de um a partir do prejuízo do outro. Anjos assim careceriam de sentido moral, e a imoralidade dos anjos não é menos imoralidade que qualquer outra. Um favorecimento imoral da parte dos anjos segue sendo imoral a despeito de sua fonte. Em ambos os casos, Honório, dividido entre dever e desejo, procura no reino do acaso a justificativa para um ato que o reino da razão já condenou.
(Atualizada em 2.9.2008, às 10:47. Renovarei essa postagem em breve, com outros prometidos comentários)
A Carteira
Machado de Assis
...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira (1). Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu (2), salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
-- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
-- É verdade, concordou Honório envergonhado (3).
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado (4). A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta coisa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.
-- Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.
-- Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
-- Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando (5).
Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes. Enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou-se à parede, olhando para fora (6). Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira (7). Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo (8).
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo (9). Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? (10) E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar- me do dinheiro," pensou ele (11). Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele (12).
A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo (13). Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer." (14)
Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma coisa.
-- Nada.
-- Nada?
-- Por quê?
-- Mete a mão no bolso; não te falta nada?
-- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?
-- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio (15). Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.
-- Mas conheceste-a?
-- Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor. (16)
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(1) "De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira". Todo o restante do conto girará em torno do conflito de Honório entre usar ou não o dinheiro que achara na carteira. Machado já enuncia, desde a primeira frase, o conflito moral em que baseará a trama. Achar a carteira de outra pessoa na rua é o que se pode chamar de conflito moral típico: de um lado, o desejo de apoderar-se do dinheiro achado; de outro lado, o dever de respeitar a propriedade alheia. Não se trata de escolher a mais correta entre duas alternativas de ação, e sim de escolher entre a alternativa claramente correta, que nega o desejo, e a alternativa claramente incorreta, que o satisfaz.
(2) "Ninguém o viu", informa o narrador. Recorda a lenda do Anel de Giges: Giges, pastor grego honesto, encontra um anel mágico, capaz de torná-lo invisível, depois do que perde seus escrúpulos e limites, comete todo tipo de atrocidade, torna-se o pior de todos os crápulas. Moral da história: O controle moral que os homens exercem sobre si se deve antes à prudência que à honestidade, de modo que, se um homem pudesse violar as regras morais sem jamais ser descoberto, certamente o faria. Honório não tem anel mágico, mas, se não está invisível fisicamente, o está socialmente, porque ninguém o viu pegar a carteira, ou pelo menos ninguém que soubesse que ela não lhe pertencia, ninguém que pudesse lançar sobre ele o olhar inquisidor, crítico, controlador, da sociedade. Isso anuncia que se trata apenas de um conflito entre Honório e Honório: se fraquejar e ficar com o dinheiro, ninguém saberá, ninguém o condenará, ninguém sequer o recordará disso no futuro. Essa circunstância, por tornar a falta moral mais fácil, torna o conflito ainda mais escruciante.
(3) "Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez", disse-lhe a única testemunha da ocasião, ao que Honório responde envergonhado: "É verdade". Em vez de ser o olhar crítico capaz de despertar seus escrúpulos, o homem à porta da loja, pensando ver o dono de uma carteira perdida a encontrar de novo, faz um comentário que situa Honório numa posição bastante confortável para cometer o erro moral. Bastava assumir-se, perante aquela única testemunha, como o verdadeiro dono da carteira. As circunstâncias do conto, doravante, empurrarão Honório sempre mais para o erro, conspirarão para o seu pecado. Ao mesmo tempo, Honório se vê lançado, antes do que esperava, a um momento de escolha moral: Dizer a verdade ao homem, mentir-lhe ou não dizer nada? Quando parecia que Honório só teria que fazer sua escolha depois, à caminho de algum lugar, quando teria que decidir o que fazer da carteira, vê-se de repente precipitado a uma escolha moral prematura. Como vimos, escolheu mentir, cometeu sua primeira falta, menos grave, como elemento preparatório da outra, mais grave, que ainda não decidira cometer, mas para a qual, como se vê, já se inclinava.
(4) "Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado", comenta o narrador. Ora, se Honório estivesse esbanjando riqueza e a carteira estivesse cheia de dinheiro ou se Honório estivesse necessitado, mas a carteira estivesse vazia, a decisão de deixá-la no chão, de levá-la às autoridades ou de tentar devolvê-la ao dono ainda seria moralmente correta, mas não teria mérito, porque não teria nenhuma dificuldade nem demandaria nenhum esforço ou sacrifício. É a conjugação da necessidade e da oportunidade que instauram no coração de Honório o conflito moral. Já não se trata apenas do desejo por dinheiro, argumento mais fraco e adversário mais leve de abater, mas trata-se, sim, de necessidade, grande e urgente, que, a depender do conteúdo que recheasse a carteira encontrada, poderia ser aliviada ou mesmo resolvida de vez.
(5) Agora sabemos que Honório é advogado, que enfrenta necessidades, acumula dívidas, mas vive de empréstimos e de aparências. Não é casual que exerça a advocacia, profissão com fama associada à mentira e à desonestidade. Esse fato por si, espcialmente num conto machadiano, adiciona suspeitas sobre seu caráter. Mas agora, ao lado da ganância e da necessidade, se coloca outro campeão dos vícios humanos: o orgulho. Honório recusa confessar-se em dificuldades, mesmo para o amigo e a esposa. Para alguém cioso da própria imagem, temeroso de que alguém descubra seus apertos financeiros, ofendido do olhar e do tom de voz dos credores, uma dívida vincenda é coisa ainda mais dolorosa e preocupante. Nesse contexto, a carteira achada se torna uma oportunidade ainda mais irrecusável.
(6) "Enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou-se à parede, olhando para fora". Nota-se a presença da confusão e da dúvida. Apesar da necessidade que sofre e da oportunidade que se lhe apresenta, Honório mantém escrúpulos morais que o lançam em estado de desordem mental, com uma multidão de pensamentos e sentimentos contraditórios que o perturbam. Trava-se uma luta entre razão e desejo.
(7) "Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira". Aqui se marca a oposição com verbos distintos: a consciência lhe "dizia", os apuros "puxavam" por ele. Os verbos refletem a oposição entre saber e desejo, entre conhecimento e inclinação. Se a consciência - a voz que, dentro da alma, representa aqui a parte da personalidade que introjetou as regras morais - lhe diz que não deve, que é errado, é que tem perfeita noção de qual a alternativa que deveria ser tomada e qual deveria ser rejeitada. Contudo, os apuros puxam por ele, ou melhor, a representação mental dos apuros presentes e a representação mental da possibilidade futura de dar fim a eles, esse misto de percepção e antecipação, de conhecimento e imaginação que sempre está presente nos desejos, especialmente nos mais intensos e elaborados.
(8) "Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo". O sujeito do verbo "chegavam" ainda são os apuros, como metonínima da inclinação. Aqui o teste da reciprocidade, famosa ferramenta de orientação moral, ganha uma versão distorcida. A pergunta: "E se fosse comigo?", que normalmente serve para guiar que façamos aos outros apenas o que quereríamos que fizessem a nós (a chamada Regra de Ouro), aqui se converte no pensamento sombrio de que façamos aos outros apenas aquilo que, de fato, os outros fariam por nós. Esse é um artifício para que a maldade alheia escuse a nossa própria, um argumento de que, se fazemos aos outros apenas a mesma maldade que os outros fariam a nós, essa maldade é, por algum motivo, menor ou mais justificada. Não é. Fazermos ao outro o que o outro faria a nós é, sim, reciprocidade, mas reciprocidade de fato, não de direito ou, noutras palavras, reciprocidade de conduta, mas não reciprocidade moral. A reciprocidade que deve guiar a conduta é a reciprocidade moral, e esta consiste em fazermos aos outros apenas aquilo que gostaríamos que eles fizessem a nós, sendo aqui o "gostaríamos" uma forma de elevar-se da conduta fática (no campo do ser) do outro para a conduta desejada (no campo do dever-ser) do outro, esta, sim, o parâmetro com que devemos medir a nossa.
(9) "Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo". Depois de endossar a falsa crença do estranho na rua de que apanhava sua própria carteira perdida, aqui Honório dá um segundo passo em direção ao erro. Conferiu se tinha dinheiro e quanto dinheiro era. Quem estivesse convicto de entregar a carteira de volta, teria interesse de procurar por um nome, um endereço, uma referência. Mas não por contar as notas. Quem conta as notas quer saber se o erro, que pensa em cometer, valeria mesmo a pena. Avalia as possibilidade, calcula entre vantagens e desvantagens. Neutraliza por um momento seu senso moral, para só retomá-lo em seguida, quando voltasse ao seu conflito moral, agora já ciente da extensão dos benefícios seu erro lhe poderia proporcionar.
(10) "Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles?". Passa-lhe pela cabeça que talvez a fortuna, talvez os anjos o tenham favorecido com aquela oportunidade. Se fosse a Fortuna, Deusa pagã, que girava sua roda mística e fazia com que os afortunados se tornassem desgraçados e vice-versa, de uma hora para outra, por seu simples capricho, poderia ser verdade. Afinal, teria de repente tirado aquele dinheiro de um e dado a outro a oportunidade de encontrá-lo, fazendo da perda de um o alívio do outro. Mas a Fortuna pagã é caprichosa e, por isso mesmo, irracional e injusta. Não prejudica os maus e favorece os bons, mas ora prejudica, ora favorece tanto maus quanto bons, indiferentemente, sem outro critério que não o simples arbítrio. Sendo assim, ser por ela favorecida não significa merecer o favor, de modo que aceitá-lo como favor da Fortuna não o reveste de nenhum sentido moral. Se forem, não a Fortuna, mas os anjos, não seriam certamente os anjos divinos e bondosos, pois teriam feito a felicidade de um a partir do prejuízo do outro. Anjos assim careceriam de sentido moral, e a imoralidade dos anjos não é menos imoralidade que qualquer outra. Um favorecimento imoral da parte dos anjos segue sendo imoral a despeito de sua fonte. Em ambos os casos, Honório, dividido entre dever e desejo, procura no reino do acaso a justificativa para um ato que o reino da razão já condenou.
(Atualizada em 2.9.2008, às 10:47. Renovarei essa postagem em breve, com outros prometidos comentários)
Comentários
ass: Wellyngton sousa
Não me joguem pedras. Fantástico! A moral depende das circunstâncias.
teria como me dizer??