Positivismo Jurídico, Lacunas e Discricionariedade
O Positivismo Jurídico tem uma relação bastante curiosa com as lacunas do Direito. Conhecidos por prezarem acima de tudo a segurança jurídica, os teóricos positivistas não hesitam, contudo, em dar uma solução que parece, pelo menos à primeira vista, bastante insegura para o problema das lacunas. Se ocorrer uma lacuna no Direito, quer dizer, se o juiz se deparar com um caso que não esteja previamente regulado por uma norma, mas ainda assim precisar decidir o caso, sua decisão será, segundo os positivistas, discricionária. Esta postagem se dedica a desfazer a perplexidade que essa tese costuma despertar no estudioso que começa a ter contato com a doutrina positivista. Meu objetivo é mostrar não apenas que a tese da discricionariedade judicial é realmente uma decorrência lógica de outra tese positivista, a tese da subsunção, mas também mostrar que aquela tese tem um sentido relativamente distinto do que se costuma atribuir a ela num primeiro momento. Para isso, vou primeiro esclarecer (1) a tese da subsunção, depois (2) o conceito de lacuna do Direito e (3) o conceito de discricionariedade, para então formular (4) a tese da discricionariedade judicial, tal como proposta pelo Positivismo Jurídico. Em seguida, vou considerar uma objeção mais ou menos óbvia à tese da discricionariedade, que é (5) o uso dos chamados métodos de integração, mostrando que, ainda assim, persiste o problema levantado pelos teóricos positivistas. Finalmente, vou mostrar (6) que, de modo geral, a tese da discricionariedade está correta e levanta problemas muito maiores que aqueles que ela parece levantar.
1. Segundo os positivistas, toda norma é formada de duas partes: a condição de fato e a conseqüência jurídica. A condição de fato é a enunciação de certo fato da realidade, na ocorrência do qual a norma será aplicada (por exemplo, "matar alguém", "auferir renda superior a certo valor X", "completar 18 anos de idade" etc.). A conseqüência jurídica é a previsão de certa providência jurídica que o judiciário deve tomar em relação a um caso toda vez que verificar a ocorrência da condição de fato (por exemplo, "condenar o autor a reclusão, de 6 a 20 anos", "condenar o contribuinte ao pagamento do IR no valor Y", "considerar o sujeito maior de idade e plenamente capaz para os atos da vida civil"). Também segundo os positivistas, toda norma é aplicada por subsunção: quer dizer, uma vez que os fatos e características do caso sejam tais que se encaixem na condição de fato enunciada na norma, deve-se aplicar a ele, na decisão, a conseqüência jurídica que a norma previa (por exemplo, se o indivíduo matou alguém, deve sofrer uma pena de reclusão de 6 a 20 anos; se o indivíduo auferiu renda no valor superior a X, deve pagar IR no valor Y; se o indivíduo completou 18 anos de idade, deve ser considerado maior de idade e plenamente capaz para os atos da vida civil). Feitos esses esclarecimentos, pode-se enunciar a tese da subsunção, defendida pelos teóricos positivistas modernos: toda norma é dotada de condição de fato e conseqüência jurídica e toda norma se aplica por subsunção. Não há que falar em aplicação de uma norma a certo caso se não se estiver falando de fazer uma subsunção, quer dizer, um encaixe dos fatos e das características do caso na condição de fato e uma conversão da conseqüência jurídica em decisão do caso.
2. A tese da subsunção vale muito bem, pelo menos à primeira vista, para todo caso que encontra uma norma jurídica que o regule (casos regulados, cobertos ou contemplados pelo ordenamento jurídico), mas levanta dúvida quanto àqueles casos que não encontram no ordenamento jurídico nenhuma norma que os regule (casos não regulados, não cobertos ou não contemplados). O problema dos casos não regulados costuma ser conhecido como o problema das "lacunas do Direito", ou seja, o problema da falta ou ausência de norma jurídica atualmente vigente que regule um caso concreto que, no entanto, demanda decisão. Algumas das novas configurações familiares (como a união homoafetiva) e algumas das novas modalidades criminosas do ambiente virtual (como a invasão de sistema de dados) estão hoje na situação de lacunas do Direito: são situações que ocorrem na prática, levantam questões e problemas, demandam uma solução jurídica, por vezes levam as partes envolvidas a recorrer ao judiciário em busca dessa solução, mas não encontram no ordenamento jurídico atualmente vigente nenhum tratamento explícito e nenhuma solução estabelecida. É importante ressaltar que nem todo caso não explicitamente regulado constitui uma lacuna, porque existem ramos e tópicos do direito em que a ausência de norma reguladora implica ela mesma em orientação para a solução do caso: por exemplo, a ausência de proibição de certa modalidade contratual implica na sua autorização, a ausência de tipificação penal de certa conduta implica na sua licitude etc.; nesses casos, há ausência de norma reguladora, mas não há lacuna, porque a própria ausência de norma já indica como o caso deve ser solucionado; isso mostra que a lacuna deve ser caracterizada como aquela ausência de norma reguladora que implique numa ausência de solução jurídica para o caso concreto em exame.
3. Como os positivistas defenderão que, diante de lacuna do Direito, a decisão judicial será discricionária, é preciso antes esclarecer o que é a discricionariedade e quando podemos dizer que certa escolha ou decisão é discricionária. Normalmente, escolhas ou decisões seguem certos critérios. Dependendo do tipo de critério que orienta a escolha ou decisão, diremos que se trata de uma escolha ou decisão vinculada, discricionária ou arbitrária. Uma escolha é vinculada se ao responsável por escolher é imposto um critério determinado e fechado, mas tão fechado que permite uma, e apenas uma decisão correta, que pode ser apontada objetivamente (como escolher, por exemplo, entre os móveis de uma mobília, o móvel mais baixo, o móvel mais barato ou o móvel mais antigo). Uma escolha é arbitrária se ao responsável por escolher não é imposto critério algum, de modo que ele pode escolher com o critério que bem entender e nunca poderá estar errado na decisão que tomar, exatamente porque faltam critérios com que dizer se foi certa ou errada (como escolher, por exemplo, um móvel qualquer). A meio caminho entre as duas, existe a decisão discricionária. Uma decisão é discricionária se ao responsável por escolher é imposto um critério determinado, mas aberto, quer dizer, aquele tipo de critério para cuja aplicação será necessária uma dose da discrição (quer dizer, do bom-senso) do decisor (como escolher, por exemplo, o móvel mais elegante ou o móvel mais adequado para certa decoração). Nesse último caso, se diz que a decisão, diferentemente da arbitrária, seguiu um critério determinado (o que faz com que ela possa ser julgada como tendo sido certa ou errada, embora de modo menos objetivo e menos absoluto que no caso da decisão vinculada), mas, ao mesmo tempo, diferentemente da decisão vinculada, seguiu um critério que deixou certa margem de liberdade para o responsável pela escolha. Assim, uma decisão discricionária é uma decisão não vinculada, mas não é uma decisão arbitrária: é uma decisão tomada a partir de um critério determinado, mas aberto, usando da discrição do decisor.
4. Feitas essas considerações, podemos voltar ao tema das lacunas e dizer que, para os positivistas, toda vez que o juiz precisar decidir um caso não regulado, sua decisão será discricionária. Aqui é preciso esclarecer certos pontos. Primeiro, essa tese supõe que a decisão só é discricionária em caso de lacuna, ou seja, quando o caso sob decisão não está regulado pelo ordenamento jurídico e quando esta ausência de regulação já não fornece ela própria a orientação para a decisão (como nos exemplos que abordamos acima). Isso quer dizer que, na visão do positivista, casos que encontram no ordenamento jurídico uma norma que os regule, ou seja, casos regulados, têm decisão vinculada. O positivista acredita que, se um caso está regulado por uma norma, então o encaixe de seus fatos e características na condição de fato prevista pela norma levará inevitavelmente à aplicação da conseqüência jurídica em decisão do caso. Daí que considere que essa decisão é vinculada: seu critério, ou seja, o encaixe ou não do caso na condição de fato, seria não apenas determinado, mas também fechado, sem dar espaço algum para o bom-senso ou discrição do juiz. Haveria uma decisão "mecânica", sem reflexão nem ponderação: ou o caso se encaixa na condição de fato ou não se encaixa e, se se encaixa, aplica-se a ele a condição jurídica e ponto final. Em contraste, a lacuna, como exigirá do juiz que procure alguma forma outra de decidir que não a simples e mecânica aplicação da norma pertinente ao caso, é uma decisão não vinculada, é uma decisão discricionária.
5. É comum escutar a seguinte objeção à tese da discricionariedade: "Mas essa tese é absurda! Todo mundo sabe que, na falta de norma direta que regule o caso, aplicam-se a analogia, os princípios, os costumes e a eqüidade". Essa objeção, que é mais ou menos esperável e inclusive óbvia para todo estudante de Direito que tenha assimilado bem as aulas de integração de lacunas, em Introdução ao Estudo do Direito, ou as aulas sobre os artigos iniciais da Lei de Introdução ao Código Civil, em Direito Civil I, incorre, no entanto, numa confusão. Decisão discricionária, como já dissemos, não é decisão arbitrária, não é decisão despida de critérios, e sim decisão com critérios que, por mais que sejam determinados, não são fechados, e sim abertos, pedindo do bom-senso ou discrição do aplicador. Sendo assim, o teórico positivista não teria problema algum em aceitar que, na falta de norma direta que regule o caso, aplicam-se a analogia, os princípios, os costumes e a eqüidade (pois a decisão discricionária, ao contrário da arbitrária, tem critérios) e, mesmo assim, insistir que a decisão é discricionária. Isso porque nem analogia, nem princípios, nem costumes, nem eqüidade são critérios fechados (quer dizer, nenhum deles é daquele tipo que indica uma, e apenas uma decisão correta, que pode ser apontada objetivamente). Então, o fato de haver os chamados "métodos de integração de lacunas", quer dizer, esses critérios, analogia, princípios, costumes, eqüidade, não afeta em nada a tese da discricionariedade, apenas a confirma: há critérios, mas são critérios abertos, e não fechados; portanto, a decisão é, sim, discricionária.
6. Portanto, reafirmando, o Positivismo Jurídico não afirma que a decisão judicial, nos casos de lacuna, é arbitrária, e sim discricionária: pode perfeitamente e inclusive deve ter certos critérios (como a analogia, os princípios, os costumes, a eqüidade), mas esses critérios (porque não têm a estrutura condição de fato/conseqüência jurídica) não são fechados, não levam a uma decisão vinculada. Entendida dessa maneira, a tese da discricionariedade é não apenas uma conclusão necessária diante da tese da subsunção, mas é uma tese absolutamente irrefutável. Não há como negar que, diante de uma lacuna do Direito, a decisão exigirá certa dose de bom-senso e discrição do decisor. Contudo, o que fica realmente ameaçada com essa conclusão não é tanto a segurança jurídica (pois, afinal, lacunas não são tão freqüentes assim e ainda existem critérios, mesmo que abertos, para decidir casos diante de lacunas), mas sim a tese de que, quando existe, sim, uma norma que regule o caso, a decisão seria vinculada. Em outras palavras, o problema não é admitir que a decisão do caso não regulado é discricionária, e sim admitir que a decisão do caso regulado não é discricionária. Ora, para o Positivismo Jurídico o simples fato de a norma conter uma condição de fato e uma conseqüência jurídica faria dela um critério determinado e fechado e garantiria que a decisão tomada com base nela fosse uma decisão vinculada. Mas nem sempre a simples previsão de uma condição de fato bastará para tornar a aplicação da norma uma aplicação mecânica, não reflexiva: se essa condição de fato for obscura ("tramar contra a ordem pública"), for ambígua ("não observar sua função social"), for vaga ("tomar atitude que comprometa a boa imagem da empresa"), se envolver juízos de valor ("expressão ofensiva", "divisão eqüitativa") ou de ponderação ("indenização proporcional", "no melhor interesse do bem comum"), vai-se por água abaixo toda suposta objetividade que tal critério possuiria. Seria preciso reconhecer que, tal como acontece com a analogia, os princípios, os costumes e a eqüidade, a norma também, muitas vezes, não é um critério fechado, e sim aberto, cuja aplicação pede, sim, do bom-senso ou discrição do decisor, de modo que, mesmo sem lacuna alguma, mesmo na presença de norma reguladora do caso, a decisão pode e em muitos casos será discricionária.
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