Liberalismo
INTRODUÇÃO
Nascido da luta contra o Absolutismo monárquico europeu, o liberalismo se define como uma defesa da liberdade individual e da limitação do poder do Estado. Tal como o anarquismo, tem na máxima liberdade do indivíduo seu valor fundamental, mas, diferentemente do anarquismo, não atribui à racionalidade do indivíduo a capacidade de impor o autocontrole necessário para evitar que o exercício da liberdade de um ofenda a liberdade do outro. Por isso, acredita que o Estado é um mal necessário, que deve ser mantido dentro de limites bem fixados. A função do Estado seria garantir a liberdade dos indivíduos, protegendo-os uns dos outros. Qualquer ação do Estado que ultrapassasse esse objetivo seria invasiva da liberdade e, portanto, ilegítima.
Assim, sendo a liberdade o principal valor do liberalismo, convém começar por compreendê-la corretamente e distingui-la de outras concepções possíveis de liberdade.
LIBERDADE DOS ANTIGOS E LIBERDADE DOS MODERNOS
Foi Benjamin Constant (em seu célebre discurso “De la liberté des Anciens comparée à celle des Modernes”, 1819) quem pela primeira vez traçou uma diferença marcante entre as formas antiga e moderna de compreender a liberdade.
Primeiro se perguntem, cavalheiros, o que um inglês, um francês, um cidadão norte-americano entende hoje pela palavra “liberdade”. Para cada um deles é o direito de ser submetido apenas às leis, e de não ser preso, detido, condenado à morte ou maltratado de modo algum pela vontade arbitrária de um ou mais indivíduos. É o direito de todos de expressar sua opinião, escolher uma profissão e praticá-la, de usar e abusar de sua propriedade; de ir e vir sem permissão, e sem ter que revelar seus motivos ou intenções. É o direito de todos de associar-se com outros indivíduos, ou para discutir seus interesses, ou para professar a religião que eles e seus associados preferem, ou mesmo apenas para ocupar os seus dias e horas da maneira que é mais compatível com suas inclinações e caprichos. Finalmente, é o direito de todos de exercer alguma influência sobre a administração do governo, seja elegendo todos ou alguns de seus funcionários, ou por meio de representações, petições e demandas a que as autoridades estão mais ou menos obrigadas a prestar atenção. Agora comparem essa liberdade com a dos antigos.
Esta última consistia em exercer de modo coletivo, mas direto, várias partes da soberania completa; em deliberar, em praça pública, sobre a guerra e a paz; em formar alianças com governos estrangeiros; em votar leis, pronunciar julgamentos; em examinar as contas, os atos, a responsabilidade dos magistrados; em convocá-los a se apresentarem em frente à assembléia do povo, em acusá-los, condená-los ou absolvê-los. Mas, se isso era o que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam, como compatível com essa liberdade coletiva, a completa submissão do indivíduo à autoridade da comunidade. Não se encontra entre eles quase nenhum dos direitos que vimos há pouco fazendo parte da liberdade dos modernos. Todas as ações privadas eram submetidas a supervisão rigorosa. Nenhuma importância era dada à independência individual, nem em relação a opiniões, nem ao trabalho, nem, sobretudo, à religião. O direito de escolher sua própria filiação religiosa, um direito que consideramos entre os mais preciosos, teria parecido aos antigos um crime e um sacrilégio. Nos domínios que nos parecem os mais úteis, a autoridade do corpo social se interpunha e obstruía a vontade dos indivíduos (...).
Assim, segundo Constant, a liberdade dos antigos é uma liberdade de participação da vida pública na condição de cidadão, mas que não oferece nenhuma proteção ao indivíduo enquanto tal em relação à interferência, no exercício da sua vontade, dos outros indivíduos ou do corpo social como um todo. A liberdade dos modernos, ao contrário, implica exatamente nessa proteção, nessa não interferência do Estado nos assuntos individuais, no domínio pessoal, familiar, econômico e social, nessa garantia de que cada um pode viver da maneira como quiser, acreditar no que quiser, associar-se com quem quiser e fazer o que quiser, desde que não seja causa de ofensa ou prejuízo para os outros indivíduos. É essa liberdade, a liberdade dos modernos, a liberdade do indivíduo, perante os outros indivíduos e perante o Estado, para viver como quiser, que é o cerne do liberalismo.
LIBERALISMO CLÁSSICO E LIBERALISMO MODERNO
O liberalismo teve duas fases. A primeira fase, chamada de liberalismo clássico, se caracterizou por uma luta contra o Estado absolutista, em nome da limitação de seus excessivos poderes e da afirmação da liberdade individual. Nessa fase se incluem pensadores como John Locke, David Hume, Montesquieu, Benjamin Constant, Thomas Paine, Immanuel Kant, Jeremy Bentham etc., e economistas como Adam Smith e David Ricardo.
A segunda fase, chamada de liberalismo moderno, surge da percepção das crises e das injustiças produzidas pelos mecanismos livres do mercado e da necessidade de uma intervenção do Estado em alguns setores estratégicos da vida econômica e social a fim de assegurar, por um lado, o equilíbrio do mercado e, por outro, um acesso mais amplo e igualitário aos recursos sociais. Nessa fase se incluem pensadores como John Stuart Mill, T. H. Green, Isaiah Berlin, Karl Popper, John Rawls, Ronald Dworkin etc., e economistas como Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman.
LIBERALISMO ECONÔMICO E LIBERALISMO POLÍTICO
Tanto o liberalismo clássico como o liberalismo moderno tiveram uma vertente econômica e uma vertente política. É necessário distinguir bem claramente as duas vertentes.
O liberalismo econômico é uma doutrina econômica, cuja preocupação é encontrar a melhor estratégia para proporcionar ao mesmo tempo crescimento e estabilidade às economias. Por isso defende a liberdade não no sentido político (liberdade de ir e vir, de expressão, de associação, de religião, de voto etc.), mas sim num sentido puramente econômico (liberdade de produzir, de comprar, de vender e de consumir), e não por um motivo político (porque tal liberdade fosse um direito ou fosse justa), mas sim por um motivo puramente econômico (porque, segundo defende, tal liberdade, exercitada na maior medida possível, leva ao maior crescimento econômico possível).
O liberalismo político é uma doutrina política, cuja meta é assegurar os direitos dos indivíduos e limitar o poder do Estado. Sua preocupação está em determinar a exata medida da extensão do Estado, de forma que não exista Estado de menos que leve ao caos, nem Estado de mais que leve à opressão. A questão econômica é uma das questões de que se ocupa, mas não é nem a única nem a principal.
Uma forma de resumir a diferença entre os dois é dizer que o liberalismo econômico é uma doutrina da liberdade do mercado contra as interferências indevidas e prejudiciais do Estado e o liberalismo político é uma doutrina da liberdade do individuo contra as interferências injustas e opressoras do Estado.
LIBERALISMO ECONÔMICO CLÁSSICO: ADAM SMITH
A teoria econômica de Adam Smith pode ser considerada a versão mais influente do liberalismo clássico econômico. Smith, em sua obra “A riqueza das nações” (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, de 1776), defendeu que o mercado era um mecanismo auto-regulado, que funcionava segundo duas leis básicas, a lei de oferta e procura, pela qual há sempre uma tendência de equilíbrio entre o volume de oferta e o volume de demanda, mediado pela variação dos preços (ou seja, se a oferta é maior que a procura, o preço cai, aumentando a procura; se a procura é maior que a oferta, o preço sobe, diminuindo da procura), e a lei de concorrência (quanto maior a concorrência, maior a possibilidade de que só sobrevivam os negócios que produzirem mais e melhor com o menor preço).
Essa doutrina se opunha ao mercantilismo (a doutrina econômica abraçada pela maioria dos Estados absolutistas), que pensava que subsidiar os produtos nacionais e sobretaxar os produtos estrangeiros era a melhor estratégia para ter vantagem na balança comercial e acumular riquezas. Segundo Smith, o ideal era exatamente o contrário: não subsidiar os produtos nacionais e abrir a livre concorrência deles entre si e deles com os produtos estrangeiros era a melhor forma de forçar a todos a produzirem mais e melhor com menores preços. A mão visível do Estado devia ser substituída pela “mão invisível” do mercado, que era ao mesmo tempo mais eficiente, porque forçava à otimização da produção e do consumo, e mais justa, porque recompensava quem tinha maior talento e esforço (que vendia, sobrevivia e enriquecia) e punia quem tinha menor esforço e talento (que não vendia, empobrecia e fechava).
LIBERALISMO POLÍTICO CLÁSSICO: JOHN LOCKE
No seu “Segundo tratado sobre o governo” (a segunda parte de Two treatises of government, de 1689), Locke defende a tese do surgimento do Estado a partir de um contrato social entre os indivíduos. Contudo, o estado de natureza em que os indivíduos viviam antes não era um estado de guerra de todos contra todos, como imaginara Hobbes, e o contrato que agora celebravam não implicava uma renúncia a todos os seus direitos em favor do soberano, como no Estado Leviatã. Ao contrário, os indivíduos criavam o Estado apenas para administrar a coerção, e a aplicação direta da coerção uns sobre os outros era o único direito a que esses indivíduos renunciavam em favor do Estado. Dessa forma, mantinham todos os outros direitos naturais, incluindo todas as liberdades individuais, que funcionavam como limite da ação do Estado, no sentido de que este só podia usar a coerção para proteger a liberdade de um contra o exercício abusivo da liberdade de outro, e nunca para violar ou suprimir arbitrariamente a liberdade desses indivíduos.
Assim, o Estado estava impedido de fazer o que a lei não o autorizasse e de aprovar leis que restringissem as liberdades individuais, estabelecendo controles, taxas ou punições invasivas e indevidas. O Estado era, então, um Estado mínimo ou Estado vigia noturno, guardião das liberdades e aplicador da coerção.
VIRADA DO LIBERALISMO
No final do Séc. XIX o cenário político e econômico havia se transformado completamente. As Revoluções Burguesas, inspiradas pelo liberalismo clássico, haviam derrubado os reis absolutistas, limitado o poder do Estado mediante constituições, dividido o poder político entre órgãos legislativos, executivos e judiciários, implantado o império das leis e entregado o poder de fazê-las nas mãos de representantes eleitos pelo voto direto. Haviam também eliminado as políticas mercantilistas, mantendo apenas casos isolados de subsídios e baixas taxas alfandegárias, promovendo os valores do livre mercado. As principais metas do liberalismo clássico haviam sido alcançadas, o liberalismo surgia triunfante como a grande ideologia política da era moderna.
Contudo, foi justamente nesse momento, em que se podia considerar o liberalismo mais consolidado, que os problemas com o Estado mínimo e o livre mercado começaram a se tornar evidentes. A urbanização, a industrialização e a superexploração do trabalho haviam criado um enorme contingente de pessoas nas cidades, submetido a péssimas condições de emprego, de educação, de saúde, de saneamento, de transporte etc. Essa enorme massa de pobres e despossuídos era resultante ora do desemprego, que crescia no mesmo ritmo das migrações e da mecanização do trabalho, ora dos próprios empregos, que exigiam cada vez mais em horas de trabalho e em esforço e produtividade e garantiam e remuneravam cada vez menos os trabalhadores envolvidos. Isso gerou um grande número de questões sociais que o Estado era chamado a resolver, mas que não poderia resolver sem deixar de ser um Estado mínimo.
Paralelamente, o próprio mercado começou a dar mostras de que, deixado por si mesmo, não mantinha aquele equilíbrio inabalável que os economistas clássicos haviam predito. Em vez de livre concorrência, o que se via cada vez mais era a formação de monopólios (quer dizer, de setores da economia dominados por poucas ou mesmo por apenas uma empresa), em que a vontade de um ou de poucos ditava o ritmo da produção, dos preços, da circulação e do consumo. A produção crescia, mas os preços, em vez de caírem, subiam, e a maioria da população, desempregada ou sub-remunerada, era incapaz de consumir na mesma proporção. Tudo isso criou o cenário de ausência de concorrência e de excedente de produção que culminaria com a com a Quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.
Dessa forma, seja para responder às novas questões sociais produzidas pela industrialização, seja para impedir que o mercado sofresse de tempos em tempos crises de concorrência e de superprodução, tornou-se necessário um novo modelo de Estado. Esse novo Estado não seria mínimo, e sim interventor, agindo sobre setores estratégicos da economia (política fiscal, cambial, financeira, controle da balança comercial, incentivo à produção, à circulação e ao consumo, financiamento e gestão da indústria de minérios, combustíveis, transportes, comunicações, etc.) e da sociedade (com políticas de educação, de saúde, de saneamento, de emprego, de previdência, de assistência social etc.). Esse novo Estado era ao mesmo tempo um incentivador e mediador da atividade econômica e um prestador de serviços e garantidor de direitos a população. Esse novo Estado, batizado de welfare state, ou Estado do bem-estar, trouxe consigo a necessidade de repensar o liberalismo, não só para rever as apostas no Estado mínimo e no livre mercado, mas também para impedir que os novos poderes do Estado levassem aos mesmos excessos de controle e opressão do Estado absolutista.
ASSIMILAÇÃO DA CRÍTICA SOCIALISTA
Outro fator que contribuiu para a transição do liberalismo de sua forma clássica para a forma moderna foi a assimilação das críticas que o socialismo fazia ao liberalismo clássico.
Devido à bipolarização política da Guerra Fria entre um bloco capitalista de um lado e um bloco socialista do outro, o liberalismo e o socialismo, identificados respectivamente como as ideologias oficiais dos dois blocos, desenvolveram uma forte oposição entre si. As críticas que resultaram dessa oposição acabaram contribuindo para reformas de ambos os lados, de modo que as versões revisionistas do socialismo assimilaram as críticas que o liberalismo fazia ao regime totalitário soviético, ao mesmo tempo em que o novo liberalismo assimilou algumas críticas do socialismo aos regimes ocidentais.
A principal das críticas socialistas ao liberalismo clássico que foi assimilada pelo liberalismo moderno foi a denúncia da excessiva conivência da ideologia liberal com as injustiças sociais produzidas pelo mercado. Segundo os socialistas, o liberalismo (entendido como liberalismo clássico, pois o liberalismo moderno ainda não existia), ao entregar as relações sociais ao mercado, submetia-as todas exclusivamente à lógica do lucro e fechava os olhos para as profundas desigualdades e explorações a que o mercado dava causa ao longo do tempo. Para aos socialistas, sob o argumento de livrar o individuo da opressão do Estado, o liberalismo o entregava à opressão do mercado, tornando-o não livre, mas escravo dos grandes interesses econômicos.
Quando os problemas sociais advindos da industrialização se tornaram gravíssimos, era praticamente impossível negar uma parcela de razão àquela crítica socialista. Por isso, o novo liberalismo, quando surgiu, já fazia sua essa crítica socialista, acusando o liberalismo clássico de ter alimentado uma crença ingênua nos resultados justos do mercado e de não ter previsto que as leis de oferta e procura e de concorrência, sozinhas, são cegas para as necessidades dos seres humanos e só produzem eficiência na medida em que sacrificam justiça e igualdade.
LIBERDADE POSITIVA E NEGATIVA
Numa passagem famosa de suas “Palestras sobre os princípios da obrigação política” (Lectures on the Principles of Political Obligation, de 1883), T. H. Green traçou uma distinção entre liberdade entendida em sentido negativo e liberdade entendida em sentido positivo, que estava destinada a exercer grande influência na formulação das idéias do novo liberalismo.
Segundo Green, a liberdade dos modernos, da maneira como Constant a havia descrito, tinha um sentido negativo, quer dizer, era entendida apenas a partir de negações: o indivíduo não ser preso, não ser impedido, não sofrer controle, não sofrer intervenção. Green diz que, em sentido negativo, portanto, a liberdade pode ser entendida como uma não interferência do Estado nos assuntos e nos direitos do indivíduo. Seria essa não interferência que Constant teria advogado.
Entretanto, ainda segundo Green, essa concepção negativa, da liberdade como não interferência, era só uma parte da concepção completa de liberdade. Green defendia que a liberdade consistia, na verdade, no exercício da vontade e que tal exercício tem dois requisitos: um negativo, que consiste em não sofrer interferência, e um positivo, que consiste na posse dos meios necessários para a realização da vontade. Se se quer fazer algo, mas não se tem o meio com que fazê-lo, não se é de fato livre para fazê-lo. A não interferência precisa ser complementada pela posse dos meios para, aí sim, se traduzir verdadeiramente em liberdade.
Ora, aplique-se o raciocínio de Green para a enorme massa de despossuídos que a industrialização havia gerado. As constituições nacionais asseguravam àqueles indivíduos uma série de direitos do ponto de vista formal, no papel. Mas o fato de que estavam totalmente alijados dos meios necessários para exercê-los faziam com que tais direitos formais não se traduzissem em direitos concretos, ou seja, em liberdades completas. Seria preciso que aquelas pessoas tivessem os meios necessários para acessar emprego, educação, saneamento, saúde, segurança, previdência etc. para que, aí sim, se pudesse dizer que tinham direitos assegurados, que eram de fato livres.
Essa noção fazia bastante diferença para o tipo de Estado que era necessário para assegurar a liberdade. Se a liberdade fosse vista apenas em sentido negativo, ou seja, apenas como não interferência, então o Estado necessário para assegurá-la seria um Estado que não interferisse, que se omitisse o máximo possível, que se mantivesse em limites muito estreitos de ação. Esse Estado era justamente o Estado mínimo do liberalismo clássico. Mas se a liberdade fosse vista também em sentido positivo, ou seja, também como posse dos meios para o exercício da vontade, então o Estado capaz de assegurar a liberdade seria um Estado que proporcionasse aos indivíduos acesso de fato aos meios necessários para o exercício de seus direitos. Esse Estado já não poderia ser mínimo, porque a sua completa omissão não ajudaria em nada para esse acesso aos meios. Seria preciso que fosse um Estado que conduzisse políticas sociais capazes de oferecer serviços essenciais e garantir a realização concreta dos direitos previstos pelas constituições nacionais. Daí que a distinção traçada por Green tenha sido usada para mostrar que o welfare state não era uma ameaça à liberdade, e sim um modelo de Estado capaz de realizar essa liberdade numa dimensão também positiva, além da negativa.
A QUESTÃO “JUSTIÇA”
Talvez a obra mais importante do novo liberalismo seja “Uma teoria da justiça” (A theory of justice, de 1971), de John Rawls. Nessa obra, Rawls defende que, se uma sociedade fosse convidada a escolher os princípios de justiça segundo os quais gostaria de viver, essa sociedade provavelmente escolheria os seguintes dois princípios:
1 - “Cada pessoa terá direito igual ao esquema mais amplo de liberdades iguais básicas, compatível com um esquema semelhante de liberdades para os outros”. (Princípio da máxima liberdade igual)
2 – As desigualdades sociais e econômicas devem ser ajustadas de modo que (a) sejam as mais benéficas possíveis para os membros menos favorecidos da sociedade e (b) cargos e posições sejam abertos a todos sob condições de justa igualdade de oportunidades. (Princípio da diferença compensatória)
O primeiro princípio de Rawls, na medida em que prima pela máxima liberdade para todos, seria compatível com o liberalismo clássico. Contudo, no segundo princípio já se percebe a preocupação típica do liberalismo moderno: conciliar o velho ideal de liberdade com o novo ideal de justiça social (entendida como igualdade). O primeiro distancia Rawls do socialismo: a preocupação com a igualdade não deve ser tal que implique abrir mão do máximo de liberdade, o que significa que nenhum Estado totalitário será admitido. Mas o segundo princípio o distancia do liberalismo clássico: o Estado não só deve atuar para promover uma justa igualdade de oportunidades como também, ali onde tal igualdade não exista, pode conceder tratamento diferenciado e mais benéfico para os menos favorecidos.
Na mesma direção vai “A virtude soberana” (Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality, de 2000), obra em que Ronald Dworkin convida o liberalismo a uma nova visão sobre a igualdade. Dworkin argumenta que a igualdade (equal treatment, nos termos da Constituição norte-americana) não deve ser interpretada em termos de tratamento igual, mas sim de tratamento como igual. Enquanto o tratamento igual significa que todos são tratados da mesma maneira independentemente de suas condições ou situações particulares, o tratamento como igual significa que todos são tratados com a mesma consideração, mas não necessariamente da mesma maneira. Ao contrário, quando as condições ou situações das pessoas são muito distintas, dar a elas o mesmo tratamento pode significar beneficiar a uma em detrimento da outra, o que viola a igualdade, porque não trata ambas com a mesma consideração. Tratá-las com a mesma consideração implica olhar para suas condições e situações particulares e ver se se justifica aplicar a elas o mesmo tratamento ou se uma delas precisaria de um tratamento mais benéfico que o que será dispensado à outra. A aplicação desse tratamento mais benéfico, e, portanto, desigual, atenderia a igualdade, porque faria com que ambos os lados fossem tratados com a mesma consideração.
No cerne das preocupações do novo liberalismo com a justiça estão três premissas: (1) a justiça deve se conciliar com a liberdade; (2) o que deve ser igual são as oportunidades, e não os resultados; e (3) tratamentos mais benéficos são justos quando servem para, desigualando o tratamento, igualar as oportunidades.
A QUESTÃO “PLURALISMO”
A necessidade de que grupos com formas distintas de vida e de pensamento convivam uns com os outros (pluralidade) é um desafio típico da modernidade. No passado, os grupos sociais eram muito mais homogêneos e o tema da convivência entre os diferentes praticamente não era abordado. Com o crescimento demográfico e a diversificação das formas de vida e pensamento, o problema da pluralidade se colocou de maneira incontornável na agenda da discussão política.
O liberalismo clássico já havia dado alguma atenção a esse assunto. Prova disso é a “Carta sobre a tolerância” (A Letter Concerning Toleration, de 1689), de John Locke. Segundo Locke, para que a convivência entre os diferentes se tornasse possível, eram necessárias três medidas: a adoção, por parte dos grupos envolvidos, de uma atitude de tolerância, quer dizer, de respeito pelo modo de vida e de pensamento do outro, mesmo nos casos em que se discorda fortemente deles; e a neutralidade e imparcialidade das regras e das instituições estatais: neutralidade no sentido de que o Estado não devia tomar partido em favor de nenhum dos grupos envolvidos e imparcialidade no sentido de que, em todas as suas ações e decisões, deveria tratar a todos os grupos com igual respeito e dando-lhes iguais oportunidades de vida e expressão. Essa estratégia do liberalismo para enfrentar o problema da pluralidade, apostando na liberdade de que cada grupo tenha sua própria forma de vida e de pensamento, desde que sem prejudicar às formas de vida e de pensamento dos demais grupos, se chama “pluralismo”.
No liberalismo moderno, contudo, o tema do pluralismo ganha ainda maior importância. As diferenças religiosas, antes concentradas no conflito entre católicos e protestantes, agora se tornam muito mais intensas, porque os ramos e sub-ramos se multiplicaram e porque agora os cristãos (católicos ou protestantes) precisam encontrar modos de convivência com povos não cristãos (judeus, mulçumanos, hindus, budistas etc., além de um número cada vez maior de ateus). Além disso, novas diferenças vêm à tona a partir dos movimentos de defesa dos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais etc. Instituições antes vistas como neutras (chefia do pai, feriados nacionais, uniformes escolares) e como imparciais (provas de seleção escolar, regimes de promoção profissional) agora são questionadas e passam por severa revisão. Sem dúvida alguma, o tema do pluralismo é um dos temas mais candentes do novo século e um dos que mais promete fazer as instituições políticas de agora passarem por sérias reformas no futuro próximo.
O NEOLIBERALISMO ECONÔMICO
Para concluir, um breve comentário sobre o neoliberalismo econômico. Essa doutrina econômica, que recupera as idéias de Smith e Ricardo sobre livre mercado e lhes dá uma nova versão, foi defendida sobretudo pelos economistas Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman. No cerne de suas idéias está uma forte crítica ao Estado de bem-estar e a crença de que a globalização caminha para a formação de um livre mercado em escala mundial, que não terá os mesmos problemas que o livre mercado enfrentou em escala nacional.
A pauta do neoliberalismo é a seguinte: privatizações, menos impostos, menos barreiras comerciais, menos controles migratórios, mais tecnologia, menos investimentos em áreas sociais. Ou seja, de modo geral, o lema “mais mercado e menos Estado” continua presente, como em Smith e Ricardo. Porém, agora os neoliberais reconhecem uma importância estratégica do Estado: controlar a política fiscal, cambial e creditícia de modo a manter o equilíbrio da atividade econômica ao longo do tempo.
Criticam, contudo, o welfare state, porque consideram que ele é insustentável e nocivo. Insustentável porque seus serviços são financiados por uma malha de impostos cada vez mais altos, que morde uma parcela cada vez maior da riqueza circulante e impede o crescimento ao longo do tempo. Sem o crescimento, aumenta o número de pessoas necessitadas dos serviços do Estado, ao mesmo tempo em que diminui a riqueza total de onde o Estado pode retirar os recursos para atender à maior demanda de serviços. A solução é aumentar ainda mais os impostos, o que diminui ainda mais o crescimento e alimenta um ciclo vicioso que culmina em dívida pública e recessão econômica.
Nocivo porque, segundo os neoliberais, os indivíduos que se acostumam a ser atendidos pelos serviços do Estado, que eles chamam de “clientes” do Estado, cobram cada vez mais desses serviços e cada vez menos de si mesmos. Tornam-se menos autônomos e mais dependentes da caridade estatal, incapazes de conseguir por si mesmos o que o Estado lhe oferece. Não se tornam indivíduos independentes, com empregos estáveis e rendas suficientes, capazes de prover pelo próprio trabalho as necessidades suas e dos seus, e sim parasitas dos programas estatais, famintos de novos serviços e novas dádivas. Segundo os neoliberais, esses “caronas” dos programas de bem-estar são estimulados a permanecer e a reproduzir a sua miséria.
Um ponto importante sobre o neoliberalismo é que, ao contrário do que acontece na relação entre liberalismo econômico clássico e liberalismo político clássico, que convergem entre si para a conclusão por um Estado mínimo com máxima liberdade para o indivíduo, o liberalismo moderno e o neoliberalismo não apenas não convergem, como discordam frontalmente: enquanto a conclusão do liberalismo moderno é por um Estado do bem-estar, a conclusão do neoliberalismo é contra ele. Assim, do ponto de vista das idéias defendidas, e não da época em que são defendidas, o neoliberalismo não é de fato moderno, e sim clássico, porque insiste, embora com novos argumentos, nas idéias de liberdade máxima de mercado e de intervenção mínima do Estado.
Nascido da luta contra o Absolutismo monárquico europeu, o liberalismo se define como uma defesa da liberdade individual e da limitação do poder do Estado. Tal como o anarquismo, tem na máxima liberdade do indivíduo seu valor fundamental, mas, diferentemente do anarquismo, não atribui à racionalidade do indivíduo a capacidade de impor o autocontrole necessário para evitar que o exercício da liberdade de um ofenda a liberdade do outro. Por isso, acredita que o Estado é um mal necessário, que deve ser mantido dentro de limites bem fixados. A função do Estado seria garantir a liberdade dos indivíduos, protegendo-os uns dos outros. Qualquer ação do Estado que ultrapassasse esse objetivo seria invasiva da liberdade e, portanto, ilegítima.
Assim, sendo a liberdade o principal valor do liberalismo, convém começar por compreendê-la corretamente e distingui-la de outras concepções possíveis de liberdade.
LIBERDADE DOS ANTIGOS E LIBERDADE DOS MODERNOS
Foi Benjamin Constant (em seu célebre discurso “De la liberté des Anciens comparée à celle des Modernes”, 1819) quem pela primeira vez traçou uma diferença marcante entre as formas antiga e moderna de compreender a liberdade.
Primeiro se perguntem, cavalheiros, o que um inglês, um francês, um cidadão norte-americano entende hoje pela palavra “liberdade”. Para cada um deles é o direito de ser submetido apenas às leis, e de não ser preso, detido, condenado à morte ou maltratado de modo algum pela vontade arbitrária de um ou mais indivíduos. É o direito de todos de expressar sua opinião, escolher uma profissão e praticá-la, de usar e abusar de sua propriedade; de ir e vir sem permissão, e sem ter que revelar seus motivos ou intenções. É o direito de todos de associar-se com outros indivíduos, ou para discutir seus interesses, ou para professar a religião que eles e seus associados preferem, ou mesmo apenas para ocupar os seus dias e horas da maneira que é mais compatível com suas inclinações e caprichos. Finalmente, é o direito de todos de exercer alguma influência sobre a administração do governo, seja elegendo todos ou alguns de seus funcionários, ou por meio de representações, petições e demandas a que as autoridades estão mais ou menos obrigadas a prestar atenção. Agora comparem essa liberdade com a dos antigos.
Esta última consistia em exercer de modo coletivo, mas direto, várias partes da soberania completa; em deliberar, em praça pública, sobre a guerra e a paz; em formar alianças com governos estrangeiros; em votar leis, pronunciar julgamentos; em examinar as contas, os atos, a responsabilidade dos magistrados; em convocá-los a se apresentarem em frente à assembléia do povo, em acusá-los, condená-los ou absolvê-los. Mas, se isso era o que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam, como compatível com essa liberdade coletiva, a completa submissão do indivíduo à autoridade da comunidade. Não se encontra entre eles quase nenhum dos direitos que vimos há pouco fazendo parte da liberdade dos modernos. Todas as ações privadas eram submetidas a supervisão rigorosa. Nenhuma importância era dada à independência individual, nem em relação a opiniões, nem ao trabalho, nem, sobretudo, à religião. O direito de escolher sua própria filiação religiosa, um direito que consideramos entre os mais preciosos, teria parecido aos antigos um crime e um sacrilégio. Nos domínios que nos parecem os mais úteis, a autoridade do corpo social se interpunha e obstruía a vontade dos indivíduos (...).
Assim, segundo Constant, a liberdade dos antigos é uma liberdade de participação da vida pública na condição de cidadão, mas que não oferece nenhuma proteção ao indivíduo enquanto tal em relação à interferência, no exercício da sua vontade, dos outros indivíduos ou do corpo social como um todo. A liberdade dos modernos, ao contrário, implica exatamente nessa proteção, nessa não interferência do Estado nos assuntos individuais, no domínio pessoal, familiar, econômico e social, nessa garantia de que cada um pode viver da maneira como quiser, acreditar no que quiser, associar-se com quem quiser e fazer o que quiser, desde que não seja causa de ofensa ou prejuízo para os outros indivíduos. É essa liberdade, a liberdade dos modernos, a liberdade do indivíduo, perante os outros indivíduos e perante o Estado, para viver como quiser, que é o cerne do liberalismo.
LIBERALISMO CLÁSSICO E LIBERALISMO MODERNO
O liberalismo teve duas fases. A primeira fase, chamada de liberalismo clássico, se caracterizou por uma luta contra o Estado absolutista, em nome da limitação de seus excessivos poderes e da afirmação da liberdade individual. Nessa fase se incluem pensadores como John Locke, David Hume, Montesquieu, Benjamin Constant, Thomas Paine, Immanuel Kant, Jeremy Bentham etc., e economistas como Adam Smith e David Ricardo.
A segunda fase, chamada de liberalismo moderno, surge da percepção das crises e das injustiças produzidas pelos mecanismos livres do mercado e da necessidade de uma intervenção do Estado em alguns setores estratégicos da vida econômica e social a fim de assegurar, por um lado, o equilíbrio do mercado e, por outro, um acesso mais amplo e igualitário aos recursos sociais. Nessa fase se incluem pensadores como John Stuart Mill, T. H. Green, Isaiah Berlin, Karl Popper, John Rawls, Ronald Dworkin etc., e economistas como Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman.
LIBERALISMO ECONÔMICO E LIBERALISMO POLÍTICO
Tanto o liberalismo clássico como o liberalismo moderno tiveram uma vertente econômica e uma vertente política. É necessário distinguir bem claramente as duas vertentes.
O liberalismo econômico é uma doutrina econômica, cuja preocupação é encontrar a melhor estratégia para proporcionar ao mesmo tempo crescimento e estabilidade às economias. Por isso defende a liberdade não no sentido político (liberdade de ir e vir, de expressão, de associação, de religião, de voto etc.), mas sim num sentido puramente econômico (liberdade de produzir, de comprar, de vender e de consumir), e não por um motivo político (porque tal liberdade fosse um direito ou fosse justa), mas sim por um motivo puramente econômico (porque, segundo defende, tal liberdade, exercitada na maior medida possível, leva ao maior crescimento econômico possível).
O liberalismo político é uma doutrina política, cuja meta é assegurar os direitos dos indivíduos e limitar o poder do Estado. Sua preocupação está em determinar a exata medida da extensão do Estado, de forma que não exista Estado de menos que leve ao caos, nem Estado de mais que leve à opressão. A questão econômica é uma das questões de que se ocupa, mas não é nem a única nem a principal.
Uma forma de resumir a diferença entre os dois é dizer que o liberalismo econômico é uma doutrina da liberdade do mercado contra as interferências indevidas e prejudiciais do Estado e o liberalismo político é uma doutrina da liberdade do individuo contra as interferências injustas e opressoras do Estado.
LIBERALISMO ECONÔMICO CLÁSSICO: ADAM SMITH
A teoria econômica de Adam Smith pode ser considerada a versão mais influente do liberalismo clássico econômico. Smith, em sua obra “A riqueza das nações” (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, de 1776), defendeu que o mercado era um mecanismo auto-regulado, que funcionava segundo duas leis básicas, a lei de oferta e procura, pela qual há sempre uma tendência de equilíbrio entre o volume de oferta e o volume de demanda, mediado pela variação dos preços (ou seja, se a oferta é maior que a procura, o preço cai, aumentando a procura; se a procura é maior que a oferta, o preço sobe, diminuindo da procura), e a lei de concorrência (quanto maior a concorrência, maior a possibilidade de que só sobrevivam os negócios que produzirem mais e melhor com o menor preço).
Essa doutrina se opunha ao mercantilismo (a doutrina econômica abraçada pela maioria dos Estados absolutistas), que pensava que subsidiar os produtos nacionais e sobretaxar os produtos estrangeiros era a melhor estratégia para ter vantagem na balança comercial e acumular riquezas. Segundo Smith, o ideal era exatamente o contrário: não subsidiar os produtos nacionais e abrir a livre concorrência deles entre si e deles com os produtos estrangeiros era a melhor forma de forçar a todos a produzirem mais e melhor com menores preços. A mão visível do Estado devia ser substituída pela “mão invisível” do mercado, que era ao mesmo tempo mais eficiente, porque forçava à otimização da produção e do consumo, e mais justa, porque recompensava quem tinha maior talento e esforço (que vendia, sobrevivia e enriquecia) e punia quem tinha menor esforço e talento (que não vendia, empobrecia e fechava).
LIBERALISMO POLÍTICO CLÁSSICO: JOHN LOCKE
No seu “Segundo tratado sobre o governo” (a segunda parte de Two treatises of government, de 1689), Locke defende a tese do surgimento do Estado a partir de um contrato social entre os indivíduos. Contudo, o estado de natureza em que os indivíduos viviam antes não era um estado de guerra de todos contra todos, como imaginara Hobbes, e o contrato que agora celebravam não implicava uma renúncia a todos os seus direitos em favor do soberano, como no Estado Leviatã. Ao contrário, os indivíduos criavam o Estado apenas para administrar a coerção, e a aplicação direta da coerção uns sobre os outros era o único direito a que esses indivíduos renunciavam em favor do Estado. Dessa forma, mantinham todos os outros direitos naturais, incluindo todas as liberdades individuais, que funcionavam como limite da ação do Estado, no sentido de que este só podia usar a coerção para proteger a liberdade de um contra o exercício abusivo da liberdade de outro, e nunca para violar ou suprimir arbitrariamente a liberdade desses indivíduos.
Assim, o Estado estava impedido de fazer o que a lei não o autorizasse e de aprovar leis que restringissem as liberdades individuais, estabelecendo controles, taxas ou punições invasivas e indevidas. O Estado era, então, um Estado mínimo ou Estado vigia noturno, guardião das liberdades e aplicador da coerção.
VIRADA DO LIBERALISMO
No final do Séc. XIX o cenário político e econômico havia se transformado completamente. As Revoluções Burguesas, inspiradas pelo liberalismo clássico, haviam derrubado os reis absolutistas, limitado o poder do Estado mediante constituições, dividido o poder político entre órgãos legislativos, executivos e judiciários, implantado o império das leis e entregado o poder de fazê-las nas mãos de representantes eleitos pelo voto direto. Haviam também eliminado as políticas mercantilistas, mantendo apenas casos isolados de subsídios e baixas taxas alfandegárias, promovendo os valores do livre mercado. As principais metas do liberalismo clássico haviam sido alcançadas, o liberalismo surgia triunfante como a grande ideologia política da era moderna.
Contudo, foi justamente nesse momento, em que se podia considerar o liberalismo mais consolidado, que os problemas com o Estado mínimo e o livre mercado começaram a se tornar evidentes. A urbanização, a industrialização e a superexploração do trabalho haviam criado um enorme contingente de pessoas nas cidades, submetido a péssimas condições de emprego, de educação, de saúde, de saneamento, de transporte etc. Essa enorme massa de pobres e despossuídos era resultante ora do desemprego, que crescia no mesmo ritmo das migrações e da mecanização do trabalho, ora dos próprios empregos, que exigiam cada vez mais em horas de trabalho e em esforço e produtividade e garantiam e remuneravam cada vez menos os trabalhadores envolvidos. Isso gerou um grande número de questões sociais que o Estado era chamado a resolver, mas que não poderia resolver sem deixar de ser um Estado mínimo.
Paralelamente, o próprio mercado começou a dar mostras de que, deixado por si mesmo, não mantinha aquele equilíbrio inabalável que os economistas clássicos haviam predito. Em vez de livre concorrência, o que se via cada vez mais era a formação de monopólios (quer dizer, de setores da economia dominados por poucas ou mesmo por apenas uma empresa), em que a vontade de um ou de poucos ditava o ritmo da produção, dos preços, da circulação e do consumo. A produção crescia, mas os preços, em vez de caírem, subiam, e a maioria da população, desempregada ou sub-remunerada, era incapaz de consumir na mesma proporção. Tudo isso criou o cenário de ausência de concorrência e de excedente de produção que culminaria com a com a Quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.
Dessa forma, seja para responder às novas questões sociais produzidas pela industrialização, seja para impedir que o mercado sofresse de tempos em tempos crises de concorrência e de superprodução, tornou-se necessário um novo modelo de Estado. Esse novo Estado não seria mínimo, e sim interventor, agindo sobre setores estratégicos da economia (política fiscal, cambial, financeira, controle da balança comercial, incentivo à produção, à circulação e ao consumo, financiamento e gestão da indústria de minérios, combustíveis, transportes, comunicações, etc.) e da sociedade (com políticas de educação, de saúde, de saneamento, de emprego, de previdência, de assistência social etc.). Esse novo Estado era ao mesmo tempo um incentivador e mediador da atividade econômica e um prestador de serviços e garantidor de direitos a população. Esse novo Estado, batizado de welfare state, ou Estado do bem-estar, trouxe consigo a necessidade de repensar o liberalismo, não só para rever as apostas no Estado mínimo e no livre mercado, mas também para impedir que os novos poderes do Estado levassem aos mesmos excessos de controle e opressão do Estado absolutista.
ASSIMILAÇÃO DA CRÍTICA SOCIALISTA
Outro fator que contribuiu para a transição do liberalismo de sua forma clássica para a forma moderna foi a assimilação das críticas que o socialismo fazia ao liberalismo clássico.
Devido à bipolarização política da Guerra Fria entre um bloco capitalista de um lado e um bloco socialista do outro, o liberalismo e o socialismo, identificados respectivamente como as ideologias oficiais dos dois blocos, desenvolveram uma forte oposição entre si. As críticas que resultaram dessa oposição acabaram contribuindo para reformas de ambos os lados, de modo que as versões revisionistas do socialismo assimilaram as críticas que o liberalismo fazia ao regime totalitário soviético, ao mesmo tempo em que o novo liberalismo assimilou algumas críticas do socialismo aos regimes ocidentais.
A principal das críticas socialistas ao liberalismo clássico que foi assimilada pelo liberalismo moderno foi a denúncia da excessiva conivência da ideologia liberal com as injustiças sociais produzidas pelo mercado. Segundo os socialistas, o liberalismo (entendido como liberalismo clássico, pois o liberalismo moderno ainda não existia), ao entregar as relações sociais ao mercado, submetia-as todas exclusivamente à lógica do lucro e fechava os olhos para as profundas desigualdades e explorações a que o mercado dava causa ao longo do tempo. Para aos socialistas, sob o argumento de livrar o individuo da opressão do Estado, o liberalismo o entregava à opressão do mercado, tornando-o não livre, mas escravo dos grandes interesses econômicos.
Quando os problemas sociais advindos da industrialização se tornaram gravíssimos, era praticamente impossível negar uma parcela de razão àquela crítica socialista. Por isso, o novo liberalismo, quando surgiu, já fazia sua essa crítica socialista, acusando o liberalismo clássico de ter alimentado uma crença ingênua nos resultados justos do mercado e de não ter previsto que as leis de oferta e procura e de concorrência, sozinhas, são cegas para as necessidades dos seres humanos e só produzem eficiência na medida em que sacrificam justiça e igualdade.
LIBERDADE POSITIVA E NEGATIVA
Numa passagem famosa de suas “Palestras sobre os princípios da obrigação política” (Lectures on the Principles of Political Obligation, de 1883), T. H. Green traçou uma distinção entre liberdade entendida em sentido negativo e liberdade entendida em sentido positivo, que estava destinada a exercer grande influência na formulação das idéias do novo liberalismo.
Segundo Green, a liberdade dos modernos, da maneira como Constant a havia descrito, tinha um sentido negativo, quer dizer, era entendida apenas a partir de negações: o indivíduo não ser preso, não ser impedido, não sofrer controle, não sofrer intervenção. Green diz que, em sentido negativo, portanto, a liberdade pode ser entendida como uma não interferência do Estado nos assuntos e nos direitos do indivíduo. Seria essa não interferência que Constant teria advogado.
Entretanto, ainda segundo Green, essa concepção negativa, da liberdade como não interferência, era só uma parte da concepção completa de liberdade. Green defendia que a liberdade consistia, na verdade, no exercício da vontade e que tal exercício tem dois requisitos: um negativo, que consiste em não sofrer interferência, e um positivo, que consiste na posse dos meios necessários para a realização da vontade. Se se quer fazer algo, mas não se tem o meio com que fazê-lo, não se é de fato livre para fazê-lo. A não interferência precisa ser complementada pela posse dos meios para, aí sim, se traduzir verdadeiramente em liberdade.
Ora, aplique-se o raciocínio de Green para a enorme massa de despossuídos que a industrialização havia gerado. As constituições nacionais asseguravam àqueles indivíduos uma série de direitos do ponto de vista formal, no papel. Mas o fato de que estavam totalmente alijados dos meios necessários para exercê-los faziam com que tais direitos formais não se traduzissem em direitos concretos, ou seja, em liberdades completas. Seria preciso que aquelas pessoas tivessem os meios necessários para acessar emprego, educação, saneamento, saúde, segurança, previdência etc. para que, aí sim, se pudesse dizer que tinham direitos assegurados, que eram de fato livres.
Essa noção fazia bastante diferença para o tipo de Estado que era necessário para assegurar a liberdade. Se a liberdade fosse vista apenas em sentido negativo, ou seja, apenas como não interferência, então o Estado necessário para assegurá-la seria um Estado que não interferisse, que se omitisse o máximo possível, que se mantivesse em limites muito estreitos de ação. Esse Estado era justamente o Estado mínimo do liberalismo clássico. Mas se a liberdade fosse vista também em sentido positivo, ou seja, também como posse dos meios para o exercício da vontade, então o Estado capaz de assegurar a liberdade seria um Estado que proporcionasse aos indivíduos acesso de fato aos meios necessários para o exercício de seus direitos. Esse Estado já não poderia ser mínimo, porque a sua completa omissão não ajudaria em nada para esse acesso aos meios. Seria preciso que fosse um Estado que conduzisse políticas sociais capazes de oferecer serviços essenciais e garantir a realização concreta dos direitos previstos pelas constituições nacionais. Daí que a distinção traçada por Green tenha sido usada para mostrar que o welfare state não era uma ameaça à liberdade, e sim um modelo de Estado capaz de realizar essa liberdade numa dimensão também positiva, além da negativa.
A QUESTÃO “JUSTIÇA”
Talvez a obra mais importante do novo liberalismo seja “Uma teoria da justiça” (A theory of justice, de 1971), de John Rawls. Nessa obra, Rawls defende que, se uma sociedade fosse convidada a escolher os princípios de justiça segundo os quais gostaria de viver, essa sociedade provavelmente escolheria os seguintes dois princípios:
1 - “Cada pessoa terá direito igual ao esquema mais amplo de liberdades iguais básicas, compatível com um esquema semelhante de liberdades para os outros”. (Princípio da máxima liberdade igual)
2 – As desigualdades sociais e econômicas devem ser ajustadas de modo que (a) sejam as mais benéficas possíveis para os membros menos favorecidos da sociedade e (b) cargos e posições sejam abertos a todos sob condições de justa igualdade de oportunidades. (Princípio da diferença compensatória)
O primeiro princípio de Rawls, na medida em que prima pela máxima liberdade para todos, seria compatível com o liberalismo clássico. Contudo, no segundo princípio já se percebe a preocupação típica do liberalismo moderno: conciliar o velho ideal de liberdade com o novo ideal de justiça social (entendida como igualdade). O primeiro distancia Rawls do socialismo: a preocupação com a igualdade não deve ser tal que implique abrir mão do máximo de liberdade, o que significa que nenhum Estado totalitário será admitido. Mas o segundo princípio o distancia do liberalismo clássico: o Estado não só deve atuar para promover uma justa igualdade de oportunidades como também, ali onde tal igualdade não exista, pode conceder tratamento diferenciado e mais benéfico para os menos favorecidos.
Na mesma direção vai “A virtude soberana” (Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality, de 2000), obra em que Ronald Dworkin convida o liberalismo a uma nova visão sobre a igualdade. Dworkin argumenta que a igualdade (equal treatment, nos termos da Constituição norte-americana) não deve ser interpretada em termos de tratamento igual, mas sim de tratamento como igual. Enquanto o tratamento igual significa que todos são tratados da mesma maneira independentemente de suas condições ou situações particulares, o tratamento como igual significa que todos são tratados com a mesma consideração, mas não necessariamente da mesma maneira. Ao contrário, quando as condições ou situações das pessoas são muito distintas, dar a elas o mesmo tratamento pode significar beneficiar a uma em detrimento da outra, o que viola a igualdade, porque não trata ambas com a mesma consideração. Tratá-las com a mesma consideração implica olhar para suas condições e situações particulares e ver se se justifica aplicar a elas o mesmo tratamento ou se uma delas precisaria de um tratamento mais benéfico que o que será dispensado à outra. A aplicação desse tratamento mais benéfico, e, portanto, desigual, atenderia a igualdade, porque faria com que ambos os lados fossem tratados com a mesma consideração.
No cerne das preocupações do novo liberalismo com a justiça estão três premissas: (1) a justiça deve se conciliar com a liberdade; (2) o que deve ser igual são as oportunidades, e não os resultados; e (3) tratamentos mais benéficos são justos quando servem para, desigualando o tratamento, igualar as oportunidades.
A QUESTÃO “PLURALISMO”
A necessidade de que grupos com formas distintas de vida e de pensamento convivam uns com os outros (pluralidade) é um desafio típico da modernidade. No passado, os grupos sociais eram muito mais homogêneos e o tema da convivência entre os diferentes praticamente não era abordado. Com o crescimento demográfico e a diversificação das formas de vida e pensamento, o problema da pluralidade se colocou de maneira incontornável na agenda da discussão política.
O liberalismo clássico já havia dado alguma atenção a esse assunto. Prova disso é a “Carta sobre a tolerância” (A Letter Concerning Toleration, de 1689), de John Locke. Segundo Locke, para que a convivência entre os diferentes se tornasse possível, eram necessárias três medidas: a adoção, por parte dos grupos envolvidos, de uma atitude de tolerância, quer dizer, de respeito pelo modo de vida e de pensamento do outro, mesmo nos casos em que se discorda fortemente deles; e a neutralidade e imparcialidade das regras e das instituições estatais: neutralidade no sentido de que o Estado não devia tomar partido em favor de nenhum dos grupos envolvidos e imparcialidade no sentido de que, em todas as suas ações e decisões, deveria tratar a todos os grupos com igual respeito e dando-lhes iguais oportunidades de vida e expressão. Essa estratégia do liberalismo para enfrentar o problema da pluralidade, apostando na liberdade de que cada grupo tenha sua própria forma de vida e de pensamento, desde que sem prejudicar às formas de vida e de pensamento dos demais grupos, se chama “pluralismo”.
No liberalismo moderno, contudo, o tema do pluralismo ganha ainda maior importância. As diferenças religiosas, antes concentradas no conflito entre católicos e protestantes, agora se tornam muito mais intensas, porque os ramos e sub-ramos se multiplicaram e porque agora os cristãos (católicos ou protestantes) precisam encontrar modos de convivência com povos não cristãos (judeus, mulçumanos, hindus, budistas etc., além de um número cada vez maior de ateus). Além disso, novas diferenças vêm à tona a partir dos movimentos de defesa dos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais etc. Instituições antes vistas como neutras (chefia do pai, feriados nacionais, uniformes escolares) e como imparciais (provas de seleção escolar, regimes de promoção profissional) agora são questionadas e passam por severa revisão. Sem dúvida alguma, o tema do pluralismo é um dos temas mais candentes do novo século e um dos que mais promete fazer as instituições políticas de agora passarem por sérias reformas no futuro próximo.
O NEOLIBERALISMO ECONÔMICO
Para concluir, um breve comentário sobre o neoliberalismo econômico. Essa doutrina econômica, que recupera as idéias de Smith e Ricardo sobre livre mercado e lhes dá uma nova versão, foi defendida sobretudo pelos economistas Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman. No cerne de suas idéias está uma forte crítica ao Estado de bem-estar e a crença de que a globalização caminha para a formação de um livre mercado em escala mundial, que não terá os mesmos problemas que o livre mercado enfrentou em escala nacional.
A pauta do neoliberalismo é a seguinte: privatizações, menos impostos, menos barreiras comerciais, menos controles migratórios, mais tecnologia, menos investimentos em áreas sociais. Ou seja, de modo geral, o lema “mais mercado e menos Estado” continua presente, como em Smith e Ricardo. Porém, agora os neoliberais reconhecem uma importância estratégica do Estado: controlar a política fiscal, cambial e creditícia de modo a manter o equilíbrio da atividade econômica ao longo do tempo.
Criticam, contudo, o welfare state, porque consideram que ele é insustentável e nocivo. Insustentável porque seus serviços são financiados por uma malha de impostos cada vez mais altos, que morde uma parcela cada vez maior da riqueza circulante e impede o crescimento ao longo do tempo. Sem o crescimento, aumenta o número de pessoas necessitadas dos serviços do Estado, ao mesmo tempo em que diminui a riqueza total de onde o Estado pode retirar os recursos para atender à maior demanda de serviços. A solução é aumentar ainda mais os impostos, o que diminui ainda mais o crescimento e alimenta um ciclo vicioso que culmina em dívida pública e recessão econômica.
Nocivo porque, segundo os neoliberais, os indivíduos que se acostumam a ser atendidos pelos serviços do Estado, que eles chamam de “clientes” do Estado, cobram cada vez mais desses serviços e cada vez menos de si mesmos. Tornam-se menos autônomos e mais dependentes da caridade estatal, incapazes de conseguir por si mesmos o que o Estado lhe oferece. Não se tornam indivíduos independentes, com empregos estáveis e rendas suficientes, capazes de prover pelo próprio trabalho as necessidades suas e dos seus, e sim parasitas dos programas estatais, famintos de novos serviços e novas dádivas. Segundo os neoliberais, esses “caronas” dos programas de bem-estar são estimulados a permanecer e a reproduzir a sua miséria.
Um ponto importante sobre o neoliberalismo é que, ao contrário do que acontece na relação entre liberalismo econômico clássico e liberalismo político clássico, que convergem entre si para a conclusão por um Estado mínimo com máxima liberdade para o indivíduo, o liberalismo moderno e o neoliberalismo não apenas não convergem, como discordam frontalmente: enquanto a conclusão do liberalismo moderno é por um Estado do bem-estar, a conclusão do neoliberalismo é contra ele. Assim, do ponto de vista das idéias defendidas, e não da época em que são defendidas, o neoliberalismo não é de fato moderno, e sim clássico, porque insiste, embora com novos argumentos, nas idéias de liberdade máxima de mercado e de intervenção mínima do Estado.
Comentários
Muito bem escrito, de caráter confiável e conciso com seus própositos: esclarecer a história do liberalismo através de seu nascimento, graves deslizos e ressurreição sob novos olhares.
Me esclareceu muito, thx!
É disso que precisamos, informações verídicas e lúcidas, sem tentar manipular ideologicamente o leitor pra qualquer lado que seja.
Novamente, parabéns.