Gênio Maligno e Teorias Conspiratórias
Quando, no percurso de suas famosas Meditações, Descartes pôs em dúvida a validade de juízos como "dois mais dois são quatro" e "o quadrado tem quatro lados" supondo que um gênio maligno pudesse estar exercendo um controle despercebido sobre sua mente, fazendo-o pensar a cada vez que dois mais dois eram quatro, quando na verdade não era assim, e que o quadrado tinha quatro lados, quando na verdade não tinha, fixou o modelo de dúvida hiperbólica e de suspeita generalizada que segue alimentando não apenas, no espaço das teorias filosóficas acadêmicas, os ceticismos epistemológicas de cérebros no tanque, mas também, no espaço das idéias comuns e da mídia de massa, as famosas "teorias conspiratórias". Como todos sabem, teoria conspiratória é toda "teoria" que, além de afirmar como verdade uma tese absolutamente desconhecida (como, por exemplo, a existência de toda uma civilização de seres intraterrestres, ou o casamento e os filhos de Jesus com Maria Madalena) ou considerada absurda (como, por exemplo, a "farsa" da chegada do homem à lua, que não teria passado de encenação em estúdio cinematográfico) tanto por especialistas no assunto como pelo senso comum, expõe uma explicação mais ou menos pormenorizada de todos os mecanismos ocultos e poderosos (censuras, subornos, ameaças, mortes, manipulação, mágica, hipnose, tecnologia etc.) de que certo grupo de pessoas têm lançado mal sistematicamente para ocultar ou ridicularizar aquela "verdade" perante o público, bem como de seus motivos escusos para fazê-lo. Assim, atribui-se a uma suposta "conspiração" o motivo de não se saber ou não se aceitar como verdadeira a tese que o teórico conspiratório decididamente afirma.
Um ponto em comum entre o argumento cartesiano do gênio maligno e as teorias conspiratórias de todos os gêneros é que ambos são autocontraditórios, no sentido de que destroem a base de evidência e de crença em que pretendem apoiar-se. Vejamos o caso do gênio maligno de Descartes: se ele existe e controla meu raciocínio, então, em primeiro lugar, dado o cuidado que tem de ocultar-se de mim, não é claro como ele permitiria que eu até mesmo cogitasse sua existência, uma vez que lhe seria bem fácil, controlando, como faz, cada passo de meu raciocínio, impedir-me de chegar sequer próximo de descobri-lo; em segundo lugar, dado que agora, sob a perspectiva da sua existência e do seu controle sobre minha mente, mesmo os juízos mais sólidos e incontestáveis ("dois mais dois são quatro", "o quadrado tem quatro lados") se tornam frágeis e duvidosos, não haveria como saber se o próprio argumento do gênio maligno faz sentido ou não, porque o juízo de que faz ou não faz sentido poderia estar sendo na verdade produzido por uma força exterior à minha razão e à minha vontade (em resumo, se acreditarmos no argumento do gênio maligno, duvidaremos de tudo, até mesmo de nossa crença no argumento do gênio maligno.
Pois bem, com as teorias conspiratórias, acontece algo semelhante: se existe uma "conspiração" que impede o público de saber a verdade, destruindo evidências e falsificando fontes, então, em primeiro lugar, não é claro como o teórico conspiratório veio a saber de uma verdade que a conspiração conseguiu esconder até mesmo dos mais bem preparados e bem informados especialistas no assunto; em segundo lugar, a crença na teoria conspiratória levaria a uma suspeita geral sobre a confiabilidade de qualquer evidência e de qualquer fonte, tornando, assim, impossível sustentar qualquer tese, inclusive a da conspiração. Afinal, tal tese seria sustentada com base em quê, se não fosse com base em evidências e fontes que eu devesse tomar como confiáveis, mas que se tornaram também suspeitas em vista do fato de que existem conspirações para me enganar? Quer dizer, ou a teoria conspiratória é aceita como matéria de fé (o que dispensa argumentos racionais para provar qualquer conspiração que seja), ou é aceita racionalmente, com base em evidências e fontes, exceto que, nesse último caso, precisará explicar por que ainda vale a pena confiar em evidências e fontes, uma vez que já demonstrou que evidências e fontes podem ser sistematicamente destruídas, ocultadas, alteradas, manipuladas e produzidas.
Nossa crença em evidências e fontes depende de um presusposto epistemológico que não pode ser provado, mas precisa ser aceito, sob pena de tornar inviável o mecanismo de crença: o pressuposto de que não é possível a fabricação indescobrível de uma evidência falsa, nem a ocultação indescobrível de uma evidência verdadeira. O que a tese da conspiração propõe é abrir mão desse pressuposto, é cogitar, ainda que por um instante, que exista, sim, uma manipulação tal das evidências e das fontes que possa enganar a todos, até mesmo aos especialistas mais bem preparados e mais bem informados, por um longo período de tempo. O problema é que, para provar isso, ela precisaria das mesmas evidências e fontes que acabou de tornar suspeitas. A tese é tal que, se se acredita nela, se destroem as bases para acreditar nela.
Um ponto em comum entre o argumento cartesiano do gênio maligno e as teorias conspiratórias de todos os gêneros é que ambos são autocontraditórios, no sentido de que destroem a base de evidência e de crença em que pretendem apoiar-se. Vejamos o caso do gênio maligno de Descartes: se ele existe e controla meu raciocínio, então, em primeiro lugar, dado o cuidado que tem de ocultar-se de mim, não é claro como ele permitiria que eu até mesmo cogitasse sua existência, uma vez que lhe seria bem fácil, controlando, como faz, cada passo de meu raciocínio, impedir-me de chegar sequer próximo de descobri-lo; em segundo lugar, dado que agora, sob a perspectiva da sua existência e do seu controle sobre minha mente, mesmo os juízos mais sólidos e incontestáveis ("dois mais dois são quatro", "o quadrado tem quatro lados") se tornam frágeis e duvidosos, não haveria como saber se o próprio argumento do gênio maligno faz sentido ou não, porque o juízo de que faz ou não faz sentido poderia estar sendo na verdade produzido por uma força exterior à minha razão e à minha vontade (em resumo, se acreditarmos no argumento do gênio maligno, duvidaremos de tudo, até mesmo de nossa crença no argumento do gênio maligno.
Pois bem, com as teorias conspiratórias, acontece algo semelhante: se existe uma "conspiração" que impede o público de saber a verdade, destruindo evidências e falsificando fontes, então, em primeiro lugar, não é claro como o teórico conspiratório veio a saber de uma verdade que a conspiração conseguiu esconder até mesmo dos mais bem preparados e bem informados especialistas no assunto; em segundo lugar, a crença na teoria conspiratória levaria a uma suspeita geral sobre a confiabilidade de qualquer evidência e de qualquer fonte, tornando, assim, impossível sustentar qualquer tese, inclusive a da conspiração. Afinal, tal tese seria sustentada com base em quê, se não fosse com base em evidências e fontes que eu devesse tomar como confiáveis, mas que se tornaram também suspeitas em vista do fato de que existem conspirações para me enganar? Quer dizer, ou a teoria conspiratória é aceita como matéria de fé (o que dispensa argumentos racionais para provar qualquer conspiração que seja), ou é aceita racionalmente, com base em evidências e fontes, exceto que, nesse último caso, precisará explicar por que ainda vale a pena confiar em evidências e fontes, uma vez que já demonstrou que evidências e fontes podem ser sistematicamente destruídas, ocultadas, alteradas, manipuladas e produzidas.
Nossa crença em evidências e fontes depende de um presusposto epistemológico que não pode ser provado, mas precisa ser aceito, sob pena de tornar inviável o mecanismo de crença: o pressuposto de que não é possível a fabricação indescobrível de uma evidência falsa, nem a ocultação indescobrível de uma evidência verdadeira. O que a tese da conspiração propõe é abrir mão desse pressuposto, é cogitar, ainda que por um instante, que exista, sim, uma manipulação tal das evidências e das fontes que possa enganar a todos, até mesmo aos especialistas mais bem preparados e mais bem informados, por um longo período de tempo. O problema é que, para provar isso, ela precisaria das mesmas evidências e fontes que acabou de tornar suspeitas. A tese é tal que, se se acredita nela, se destroem as bases para acreditar nela.
Comentários
Parabéns pelo texto!
Aproveito para deixar a seguinte dúvida.
Não entendi bem qual razão o fez concatenar tais temas. Vejo, de um lado, uma teoria criada por um pensador ávido em buscar um novo método das ciências de maneira a tornar o conhecimento racional; de outro, uma construção midiática que serve a atender os reclames de audiência.
Sinceramente, não consigo ver grande importância em tais teorias da conspiração, haja vista que, em sua “grande maioria”, não passam de idéias bem entrelaçadas – o que não significa que estão livres de contradições ou pontos obscuros –, mas carentes de veracidade. E digo isto na medida em que lhes falta um fator básico: existência de um número expressivo de pessoas defendendo as tais “verdades”. Neste ponto, poder-se-ia argumentar que as teorias conspiratórias são o que são justamente por isso, quer dizer, por poucas pessoas acreditarem nelas. Contudo, não se trata apenas de uma crença pouco difundida. Até mesmo seus poucos “defensores”, a mim, aparecem como “falsos defensores”. Não existe um verdadeiro ativismo para se fazer encampar este ou aquele ponto de vista. No fim das contas, essas teorias conspiratórias parecem mais um subterfúgio utilizado por pessoas que querem atenção (umas das necessidades mais básicas do ser humano), principalmente quando estamos a falar de pessoas que tangenciaram o fato versado, mas, por algum motivo, foram colocadas à margem do processo derradeiro.
Quanto às idéias de Descartes, acredito que a concepção do gênio maligno esteja ligada à sua formação escolástica e humanista, nada mais que isso.
O que acha?
Abraço.
Eduardo.
Deve andar bastante ocupado. No aguardo de novos posts, aproveito para sugerir-lhe a continuação de "Ser e Tempo", de Heidegger. Seu texto parcial foi bastante esclarecedor, mas deixou o gosto de "quero mais". É a minha sugestão apenas.
Agradeço desde já a atenção.
Eduardo.
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