Interpretação errada? Decisão errada?
Suponha que, em sede de habeas corpus, um advogado argumente que seu cliente, embora se encaixe nos requisitos para decretação da prisão preventiva (digamos que seja um indiciado em crime doloso punido com reclusão – Art. 313, I, final, CPP –, cuja investigação já alcançou prova da existência do crime e indício suficiente de autoria – Art. 312, CPP –, que tentou evadir-se para o exterior do país), deve ser liberado porque o estabelecimento prisional em que se pretende metê-lo não cumpre com as condições elencadas pela Lei de Execuções Penais (LEP, Lei 7.210/84, particularmente o exercício dos direitos do Art. 41 e as características da unidade celular do Art. 88, caput e parágrafo único, a e b, previstos, originalmente, ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado, mas aplicados, no caso em tela, ao preso provisório, por analogia e segundo o argumento a fortiori). Suponha que esse advogado foi ingênuo, leviano ou corajoso o bastante para não usar um único argumento de descaracterização dos requisitos da prisão preventiva, tendo apostado todas as fichas única e exclusivamente no argumento de que não se pode manter alguém preso, muito menos preventivamente, em estabelecimento que não cumpra com os requisitos da LEP, pois isso atentaria contra a dignidade de pessoa, fundamento da República Federativa do Brasil (de acordo com a CF/88, Art. 1º, III). Ora, é muito provável, dirá qualquer jurista minimamente experimentado nessas causas, que ele tenha o seu pedido não apenas negado, como abertamente atacado e ridicularizado pelo tribunal a que venha a recorrer. Os desembargadores dirão que, ao acolher-se tal argumento, se deveria libertar todos os presos, provisórios e condenados, cujas condições de emprisionamento não fossem dignas, o que certamente atentaria contra a segurança pública e a ordem social, agravando ainda mais o já bastante grave problema da impunidade. Diriam também que é mesmo terrível a situação da estrutura carcerária no Brasil e que é papel do Poder Executivo promover políticas públicas, com a finalidade de aumentar o número de estabelecimentos prisionais e de unidades celulares e de melhorar as condições materiais e morais a que os presos estão submetidos. Porém, dirão eles, tal situação, por lamentável que seja, não pode ensejar a "aventura e o desvario quixotesco" de relaxar a prisão de todos os que estão ou seriam metidos naquela situação. Um desembargador um pouco mais ilustrado e sofisticado (de um tipo infelizmente raro) poderia sugerir que, nesse caso, haveria que fazer uma ponderação de princípios entre segurança pública e dignidade da pessoa, fazendo, em seguida, uma fundamentação que mostrasse o intrincado cálculo no fim do qual a dignidade sairia perdendo ou seria mitigada. Tudo isso é mesmo muito provável e esperável. Porém, o que quero saber é: 1. Esse argumento prova que a interpretação daqueles dispositivos feita pelo advogado estava errada? 2. Esse argumento prova que uma decisão do tribunal no sentido exatamente oposto, acolhendo os argumentos do impetrante, estaria errada?
Comentários
Ao lê-lo, tive uma intensa sensação de familiaridade, porque a matéria tratada pertence ao mais patente da situação carcerária e judiciária brasileira. Com efeito, um HC como este que sugeres seria com toda a certeza ridicularizado no tribunal e, ainda, ganharia a grande mídia, onde bem sabemos que sofreria os mais violentos ataques.
Sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, posso ponderar o seguinte:
1. Pessoalmente, só consigo citar um caso em que houve a invocação das condições carcerárias como óbice à prisão, que foi o de Salvatore Cacciola, se bem que numa situação incomum, pois recorreu à ONU e não a uma corte pertencente à estrutura judiciária brasileira. Sei que há outros casos, mas não me ocorre como possa individualizá-los neste momento.
2. A questão que apresentas, a meu ver, é insolúvel. Não no plano jurídico ou filosófico, bem entendido. Mas no prático. Se um milagre acontecesse e hoje o Brasil fosse tomado por pessoas empenhadas, de boa fé, em resolver o problema carcerário, com os investimentos e medidas necessários, anos se passariam até que se pudesse colocar a coisa nos trilhos. E como isso não passa de uma hipótese fantasiosa para fins de argumentação, sabemos que tal dia não chegará.
3. Analisando desapaixonadamente, posso dizer que ambas as teses são corretas, em alguma medida. A do advogado é indesmentível sob a ótica constitucional. As prisões brasileiras não atendem às exigências da LEP e muito menos da Constituição. Isso é fato. Ponto. Contudo, não muda o fato de que não poderíamos inviabilizar o sistema persecutório, porque a contenção dos criminosos é uma das maiores necessidades de segurança pública e aqui também entram exigências constitucionais. Por outro lado, os famigerados argumentos de segurança, de força, de lei e ordem, neste caso teriam uma razão de ser, ou seja, os magistrados que julgassem o caso não poderiam decidir de forma a implodir o sistema penal, causando a libertação de todos os criminosos, após sucessivos HC impetrados por todo o país, valendo-se do mesmo argumento.
4. A solução do imbróglio é simples na teoria: se o sistema penitenciário sofresse as reformas indispensáveis - dentre as quais a física é apenas a mais visível, porém não a mais importante -, o argumento do advogado se esvaziaria e o dos desembargadores poderia ser menos dramático, havendo plenas razões para manter os presos dentro das celas brasileiras. Esta compatibilização, contudo, é puramente teórica, em nosso país.
5. Minha conclusão reforça o que disse antes: o caso é insolúvel. Para assegurar o mínimo de segurança e tranqüilidade social, a decisão do HC poderia ser pela denegação da ordem, mediante argumentos claramente formais: os requisitos legais legitimadores da prisão cautelar estão presentes. Simples assim. Se quisessem reconhecer a realidade, recomendariam os magistrados, a quem de direito, a tomada de medidas urgentes para minimizar (nunca passa disso) os graves problemas das carceragens. Talvez até deliberassem requerar, à presidência do tribunal, a expedição de um ofício ao governo do Estado, pedindo providências. Ao demandando o Ministério Público a estudar alguma medida judicial, considerando a existência de sofisticados remédios constitucionais contra omissões do poder público.
6. Seja como for, o cidadão seria sacrificado em prol da sociedade. Os direitos individuais restariam vulnerados, em nome do grupo. Seria uma conclusão estritamente utilitarista, fundada na necessidade. Mas além deste, duvido que tivesse qualquer outro argumento a lhe sustentar.
Estas são idéias que escrevi aos borbotões, para atender mais rapidamente ao teu convite. Mas é certo que precisamos refletir melhor e nem sei se respondi aos teus questionamentos. Vou fazer um link lá para o Arbítrio e, com um pouco de sorte, aqui e lá, quem sabe alguém aparece para nos ajudar a organizar as idéias.
Um abraço e parabéns.
Abraço!