Resposta do Yúdice
Yúdice Andrade, professor de Direito Penal e dono e alimentador do excelente blog Arbítrio do Yúdice, atendendo a um convite meu, propôs, nos comentários à postagem "Interpretação errada? Decisão errada?", que publiquei ontem, uma resposta digna de ser apreciada, motivo por que a converto em postagem deste blog, retribuindo, enfim, e com todo prazer, ao favor que o mesmo Yúdice já me fez antes. Eis a resposta:
"Caríssimo André, antes de mais nada, o texto não comete nenhuma impropriedade técnica. Muito pelo contrário. Está impecável, como de hábito.
Ao lê-lo, tive uma intensa sensação de familiaridade, porque a matéria tratada pertence ao mais patente da situação carcerária e judiciária brasileira. Com efeito, um HC como este que sugeres seria com toda a certeza ridicularizado no tribunal e, ainda, ganharia a grande mídia, onde bem sabemos que sofreria os mais violentos ataques.
Sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, posso ponderar o seguinte:
1. Pessoalmente, só consigo citar um caso em que houve a invocação das condições carcerárias como óbice à prisão, que foi o de Salvatore Cacciola, se bem que numa situação incomum, pois recorreu à ONU e não a uma corte pertencente à estrutura judiciária brasileira. Sei que há outros casos, mas não me ocorre como possa individualizá-los neste momento.
2. A questão que apresentas, a meu ver, é insolúvel. Não no plano jurídico ou filosófico, bem entendido. Mas no prático. Se um milagre acontecesse e hoje o Brasil fosse tomado por pessoas empenhadas, de boa fé, em resolver o problema carcerário, com os investimentos e medidas necessários, anos se passariam até que se pudesse colocar a coisa nos trilhos. E como isso não passa de uma hipótese fantasiosa para fins de argumentação, sabemos que tal dia não chegará.
3. Analisando desapaixonadamente, posso dizer que ambas as teses são corretas, em alguma medida. A do advogado é indesmentível sob a ótica constitucional. As prisões brasileiras não atendem às exigências da LEP e muito menos da Constituição. Isso é fato. Ponto. Contudo, não muda o fato de que não poderíamos inviabilizar o sistema persecutório, porque a contenção dos criminosos é uma das maiores necessidades de segurança pública e aqui também entram exigências constitucionais. Por outro lado, os famigerados argumentos de segurança, de força, de lei e ordem, neste caso teriam uma razão de ser, ou seja, os magistrados que julgassem o caso não poderiam decidir de forma a implodir o sistema penal, causando a libertação de todos os criminosos, após sucessivos HC impetrados por todo o país, valendo-se do mesmo argumento.
4. A solução do imbróglio é simples na teoria: se o sistema penitenciário sofresse as reformas indispensáveis - dentre as quais a física é apenas a mais visível, porém não a mais importante -, o argumento do advogado se esvaziaria e o dos desembargadores poderia ser menos dramático, havendo plenas razões para manter os presos dentro das celas brasileiras. Esta compatibilização, contudo, é puramente teórica, em nosso país.
5. Minha conclusão reforça o que disse antes: o caso é insolúvel. Para assegurar o mínimo de segurança e tranqüilidade social, a decisão do HC poderia ser pela denegação da ordem, mediante argumentos claramente formais: os requisitos legais legitimadores da prisão cautelar estão presentes. Simples assim. Se quisessem reconhecer a realidade, recomendariam os magistrados, a quem de direito, a tomada de medidas urgentes para minimizar (nunca passa disso) os graves problemas das carceragens. Talvez até deliberassem requerar, à presidência do tribunal, a expedição de um ofício ao governo do Estado, pedindo providências. Ao demandando o Ministério Público a estudar alguma medida judicial, considerando a existência de sofisticados remédios constitucionais contra omissões do poder público.
6. Seja como for, o cidadão seria sacrificado em prol da sociedade. Os direitos individuais restariam vulnerados, em nome do grupo. Seria uma conclusão estritamente utilitarista, fundada na necessidade. Mas além deste, duvido que tivesse qualquer outro argumento a lhe sustentar.
Estas são idéias que escrevi aos borbotões, para atender mais rapidamente ao teu convite. Mas é certo que precisamos refletir melhor e nem sei se respondi aos teus questionamentos. Vou fazer um link lá para o Arbítrio e, com um pouco de sorte, aqui e lá, quem sabe alguém aparece para nos ajudar a organizar as idéias.
Um abraço e parabéns".
Farei algumas considerações na forma de comentários a essa postagem.
"Caríssimo André, antes de mais nada, o texto não comete nenhuma impropriedade técnica. Muito pelo contrário. Está impecável, como de hábito.
Ao lê-lo, tive uma intensa sensação de familiaridade, porque a matéria tratada pertence ao mais patente da situação carcerária e judiciária brasileira. Com efeito, um HC como este que sugeres seria com toda a certeza ridicularizado no tribunal e, ainda, ganharia a grande mídia, onde bem sabemos que sofreria os mais violentos ataques.
Sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, posso ponderar o seguinte:
1. Pessoalmente, só consigo citar um caso em que houve a invocação das condições carcerárias como óbice à prisão, que foi o de Salvatore Cacciola, se bem que numa situação incomum, pois recorreu à ONU e não a uma corte pertencente à estrutura judiciária brasileira. Sei que há outros casos, mas não me ocorre como possa individualizá-los neste momento.
2. A questão que apresentas, a meu ver, é insolúvel. Não no plano jurídico ou filosófico, bem entendido. Mas no prático. Se um milagre acontecesse e hoje o Brasil fosse tomado por pessoas empenhadas, de boa fé, em resolver o problema carcerário, com os investimentos e medidas necessários, anos se passariam até que se pudesse colocar a coisa nos trilhos. E como isso não passa de uma hipótese fantasiosa para fins de argumentação, sabemos que tal dia não chegará.
3. Analisando desapaixonadamente, posso dizer que ambas as teses são corretas, em alguma medida. A do advogado é indesmentível sob a ótica constitucional. As prisões brasileiras não atendem às exigências da LEP e muito menos da Constituição. Isso é fato. Ponto. Contudo, não muda o fato de que não poderíamos inviabilizar o sistema persecutório, porque a contenção dos criminosos é uma das maiores necessidades de segurança pública e aqui também entram exigências constitucionais. Por outro lado, os famigerados argumentos de segurança, de força, de lei e ordem, neste caso teriam uma razão de ser, ou seja, os magistrados que julgassem o caso não poderiam decidir de forma a implodir o sistema penal, causando a libertação de todos os criminosos, após sucessivos HC impetrados por todo o país, valendo-se do mesmo argumento.
4. A solução do imbróglio é simples na teoria: se o sistema penitenciário sofresse as reformas indispensáveis - dentre as quais a física é apenas a mais visível, porém não a mais importante -, o argumento do advogado se esvaziaria e o dos desembargadores poderia ser menos dramático, havendo plenas razões para manter os presos dentro das celas brasileiras. Esta compatibilização, contudo, é puramente teórica, em nosso país.
5. Minha conclusão reforça o que disse antes: o caso é insolúvel. Para assegurar o mínimo de segurança e tranqüilidade social, a decisão do HC poderia ser pela denegação da ordem, mediante argumentos claramente formais: os requisitos legais legitimadores da prisão cautelar estão presentes. Simples assim. Se quisessem reconhecer a realidade, recomendariam os magistrados, a quem de direito, a tomada de medidas urgentes para minimizar (nunca passa disso) os graves problemas das carceragens. Talvez até deliberassem requerar, à presidência do tribunal, a expedição de um ofício ao governo do Estado, pedindo providências. Ao demandando o Ministério Público a estudar alguma medida judicial, considerando a existência de sofisticados remédios constitucionais contra omissões do poder público.
6. Seja como for, o cidadão seria sacrificado em prol da sociedade. Os direitos individuais restariam vulnerados, em nome do grupo. Seria uma conclusão estritamente utilitarista, fundada na necessidade. Mas além deste, duvido que tivesse qualquer outro argumento a lhe sustentar.
Estas são idéias que escrevi aos borbotões, para atender mais rapidamente ao teu convite. Mas é certo que precisamos refletir melhor e nem sei se respondi aos teus questionamentos. Vou fazer um link lá para o Arbítrio e, com um pouco de sorte, aqui e lá, quem sabe alguém aparece para nos ajudar a organizar as idéias.
Um abraço e parabéns".
Farei algumas considerações na forma de comentários a essa postagem.
Comentários
Mesmo não tendo o conhecimento (e nem a habilidade) para tratar do tema com o mínimo de consideração que ele merece, resolvi dar uma "fuçada" rápida no site do STF para saber se já houve algum julgado a respeito da questão levantada.
Em 2004, o Supremo Tribunal julgou o HC 83809, indeferindo a pretensão da impetrante - pasmem, a Promotoria de Justiça de Recife-PE.
Vale a pena conferir o inteiro teor dos votos em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=HC%2083809&base=baseAcordaos
Abraços,
Arthur Laércio Homci
Caríssimo Arthur, não te subestimes. Nós te conhecemos.
Quanto ao precedente do STF que mencionas, já precisei investigar o pensamento daquela corte sobre prisão domiciliar e encontrei alguns julgados. Todos do mesmo teor, idênticos ao que citaste. Ou seja, trata-se de uma decisão meramente formal: se a situação do réu/apenado está de acordo com os requisitos da LEP, podemos conceder. Se não, ele que se lasque.
Nenhum desses julgados enfrenta o tema em seu mérito, em sua natureza e finalidades, para que pudéssemos chegar a uma conclusão que supere a lei e suas limitações.
Abraços.
Volpi Pessoa
diariodephilosofia.blogspot.com
Comento sua resposta.
1. Em primeiro lugar, quero deixar claro que, na minha opinião, a decisão que, verificando a satisfação dos requisitos da prisão preventiva, mantém a decisão do juízo monocrático é mesmo a mais acertada e razoável. Trata-se, sem dúvida, de uma decisão trágica, porque prender viola direitos fundamentais e soltar viola outros tantos, em proporção talvez maior ainda. Por isso mesmo, não considero que o arrazoado de nosso advogado hipotético seja errado, nem consideraria absurda a decisão do tribunal que cedesse à sua requisição. Portanto, estou naquela posição em que defendo que A, mas acho que não-A também é uma decisão respeitável.
2. O caso ilustra bem uma divergência entre dois tipos de teorias morais: as teorias consequencialistas e as teorias deontológicas. Para uma teoria consequencialista, uma decisão não é boa nem má em si mesma, mas apenas pode ser avaliada como boa ou má em vista das consequências que provoca. São as consequências que são boas ou más em si mesmas, enquanto as decisões só são boas na medida em que provocam consequências boas, e más na medida em que provocam consequências más. O utilitarismo é o exemplo paradigmático de uma teoria consequencialista. Já as teorias deontológicas consideram que as ações podem, sim, ser boas ou más em si mesmas, independentemente das consequências que provocam. Geralmente aplicam algum tipo de teste para avaliar a correção moral das ações em si, como o teste de reciprocidade (conhecido também como regra de ouro: "fazer a outrem apenas o que se gostaria que consigo se fizesse") ou o teste de universalização (perguntar-se se se gostaria de viver num mundo em que todos agissem daquela maneira). O kantismo é um exemplo paradigmático de teoria deontológica. Quando se considera que, mesmo violando os direitos do preso, se deve manter a prisão em nome da segurança pública, pode-se fazer essa afirmação com caráter consequencialista ou deontológico.
3. Vamos imaginar que abraçamos o consequencialismo e vamos tentar justificar por meio dele a decisão de manter o sujeito preso, mesmo que seja em condições carcerárias que violam sua dignidade. Diríamos que, em nome do interesse da sociedade em ter segurança, se deve sacrificar o direito do indivíduo de ser mantido em condições dignas. Bom, se a justificativa dessa decisão for mesmo consequencialista, então tal decisão só seria correta se produzisse consequências melhores a decisão contrária. Precisaríamos, então, considerar se a sociedade como um todo ganharia mais com o sacrifício da dignidade em nome da segurança ou com o sacrifício da segurança em nome da dignidade. Mais ainda: se a sociedade como um todo ganha mais com a manutenção da força e da solidez dos direitos fundamentais, mesmo contra interesses majoritários, ou se ganha mais com a flexibilização desses direitos toda vez que o interesse majoritário assim quiser ou exigir. Essa última alternativa poderia facilmente se converter na encosta escorregadia que nos levaria à censura, à tortura e ao terrorismo policial, motivo por que não seria assim tão claro nem tão evidente que o interesse social por segurança devesse mesmo prevalecer sobre o direito individual ao tratamento digno.
4. Agora vamos considerar que vamos defender a mesma decisão a partir de uma abordagem deontológica. Diríamos, agora, que não se trata de conflito entre um direito (do indivíduo, a tratamento digno) e um interesse (da sociedade, por segurança), e sim entre um direito (do indivíduo, a tratamento digno) e outro direito (da sociedade, a segurança). Kant diria que, nesse caso, dois imperativos morais igualmente corretos (tratar o indivíduo com dignidade e manter a sociedade em segurança) estão em oposição e necessitam de uma conciliação prática. Ora, embora os administrativistas gostem muito do argumento segundo o qual o público sempre prevalece sobre o privado, não há nenhum argumento convincente que venha em socorro dessa regra de prevalência, pelo menos não na forma absoluta e universal com que geralmente é formulada. Pelo contrário, há diversas situações em que o direito individual basta para impedir uma violação que, se perpetrada, atenderia a um direito de toda a sociedade. Sendo assim, se se quiser defender que o direito de toda a sociedade a segurança prevalece sobre o direito do indivíduo a um tratamento digno, precisa-se empregar mais do que o lugar-comum do coletivo que prevalece sobre o individual.
5. A coisa se complica mais ainda quando se busca esse argumento. Porque é bastante claro que, se cumprida a ordem de prisão, a dignidade do preso estaria sendo desrespeitada, enquanto não é tão claro que, se não cumprida, a segurança social estaria sendo posta em risco. Dizendo de outra forma: o direito (do indivíduo) a tratamento digno requer, especificamente, que ele não seja metido numa cela suja, superlotada, exposto à doença e à violência; por outro lado, o direito (da sociedade) a segurança requer, genericamente, que os criminosos sejam presos, mas não requer, especificamente, que aquele criminoso, aquele em especial, seja preso. Isso porque, enquanto é inegável a ameaça que representaria para a segurança pública uma situação em que todos os criminosos estivessem soltos, não é igualmente inegável a ameaça que resultaria de aquele criminoso, aquele em especial, estar solto. O direito do indivíduo lhe confere um inegável direito de não ser preso, enquanto que o direito da sociedade não lhe confere um inegável direito de prendê-lo. A violação da dignidade do indivíduo caso ele fosse mantido preso seria certa; a violação da segurança pública caso ele fosse solto é apenas possível.
Há, na verdade, outras questões ainda mais intrincadas para serem abordadas quanto ao assunto, mas, como espero que o Yúdice e os demais visitantes do blog deem ("deem" mesmo, agora ortograficamente reformado) continuidade à discussão, reservo os outros elementos para comentários posteriores.
Dirão todos: há exposição, sim, tanto que o crime já foi cometido. Ou seja, justifica-se o perigo (que é um conceito definido quanto ao futuro) por meio de um fato passado. É um argumento incorreto, que se retroalimenta, mas ele seria utilizado porque as pessoas se movem por um ideal poderosíssimo: a vingança.
No fundo, o criminoso precisa ser preso, precisa ser punido a todo custo porque ele já praticou o mal. A punição aplacará a fúria da sociedade. Vingança, portanto, sentimento negado e escamoteado pelas pessoas (não todas, claro) e que se tenta esconder, inclusive, sob o conceito de "justiça".
Em suma, essa parte do raciocínio tem toda a propensão de ser odiada pelo cidadão comum.
Confesso que não era frequentador deste blog, entretanto ao me deparar com uma post no blog do Arbítrio do Yúdice, o qual me instigou com assuntos como teorias consequencialistas e deontológicas, senti-me na obrigação de visitar este blog.
Sou fã da Filosofia,principalmente quando aplica ao Direito e li todos os comentários deste post o que me fez gostar ainda mais do assunto.
Foram verdadeiras aulas, agradeço-lhes por reativarem meu cérebro em plena férias hehe.
Com relação ao tema, realmente é intrigante. Já havia me perguntado sobre a possibilidade de se soltar um preso sob o agasalho costitucional de dignidade.
Entretanto não imaginei os magistrados pensando de tal forma e já me pus a refletir qual seriam suas justificativas. A única que pensei foi justamente o argumento de que estão presentes os requisitos para a manutenção da prisão preventiva em especial a garantia da ordem pública.
Sou um crítico das prisões preventivas, principalmente por se tratarem de aspectos estritamente subjetivos, como ordem pública, ordem econômica, indícios fortes de autoria e aplicação da lei penal.
A questão que o Yúdice levantou foi perfeita. Quando se comete o crime, a pessoa paga pelo crime pelo resto de sua vida, através do estigma social que provoca. Aliás tal efeito é sentido até mesmo quando alguém tão somente responde por um crime e nem culpado o é, afinal é costume julgar as pessoas antes mesmo de serem culpadas.
Enfim, não escrevi nada além do que os senhores, com brilhantez, já haviam escrito.
André, acabas de ganhar mais um visitante no seu blog. Já havia o observado seus comentários anteriormente no blog do Yúdice.
Abraços.
Embora seja uma distinção óbvia, é bom assim mesmo distinguir entre "vingança" e "desejo de vingança".
Temos "vingança" quando A, ou alguém ligado a A, causa sofrimento, dano ou prejuízo a B, ou a alguém ligado a B, com a intenção de retribuir outro sofrimento, dano ou prejuízo que B, ou alguém ligado a B, causou a A, ou a alguém ligado a A, no passado.
Uma componente subjetiva usual (mas não obrigatória) da situação é a intenção de que B e outras pessoas, sejam estranhos, sejam as ligadas a A ou a B, interpretem aquele segundo ato como retribuição do primeiro e se sintam intimidadas por ele e desestimuladas de fazer, no futuro, um ato como o primeiro, para evitar que sofram, em retribuição, um ato como o segundo.
(interrupção para almoçar, depois completo, se possível, hoje)
A vingança, da forma que expliquei, quer dizer que A faz um mal a B no presente em retribuição a um mal que B fez a A no passado.
Suas contrapartidas emocionais são o ressentimento e o desejo de vingança. Ressentimento é o nome genérico de um conjunto de sentimentos dolorosos (mágoa, rancor, raiva etc.) associados a uma experiência negativa. O processo normalmente se desenvolve na sequência sofrimento-ressentimento-responsabilização. Essa última é a fase em que o ressentimento se volta para alguém ou alguma coisa específica, a quem se culpa pelo sofrimento. Nesse momento, tem-se a sensação de indignação diante do fato (que é interpretado como uma "injustiça", embora não necessariamente o seja) de que se esteja sofrendo tanto e a pessoa responsável por esse sofrimento não esteja sofrendo nada, ou não esteja sofrendo na mesma proporção. Acredita-se, então, que, se esta pessoa fosse submetida ao mesmo sofrimento ou à mesma proporção de sofrimento, haveria um alívio do sofrimento próprio, porque se substituiria a sensação de indignação acima referida por uma sensação de reparação (que é interpretada como "justiça", embora não necessariamente o seja). A reparação atuaria como em substituto emocional (em sentido psicanalítico): o prazer (impossível, inalcançável) de ter a coisa perdida de volta ou de retornar ao estado anterior à lesão seria experimentado substitutivamente no prazer (possível, alcançável) de saber que o responsável pelo seu sofrimento experimenta um sofrimento semelhante, senão maior. Além disso, se a reparação for produzida pela própria pessoa lesada, então há ainda outro prazer substitutivo envolvido: a sensação de impotência, que se experimentou ao não poder evitar que a lesão original ocorresse, é substituída por uma sensação de potência, ou mesmo se superpotência, sobre o responsável por aquela lesão, por alcançar êxito no plano de impor a ele aquele sofrimento. É dessa maneira que o ressentimento normalmente toma a forma de desejo de vingança.
Por que essa explicação toda? É que o fato de a sociedade civilizada ter se desfeito da vingança como forma de reestabelecimento de vínculos sociais rompidos não quer dizer que os indivíduos dessa mesma sociedade, que são herdeiros de ancestrais vingativos, tenham se desfeito de seu desejo de vingança, o que causa exatamente o problema sobre o qual queremos discutir: a relação entre punição e vingança.
Abraço.