Análise Argumentativa (1)
Eis o primeiro trecho que submeterei a uma análise argumentativa:
Graças ao pensamento inovador de Lotze, Brentano e Nietzsche, na segunda metade do Séc. XIX, foi possível compreender que o bem e o mal não se encontram confinados nos objetos ou ações exteriores à nossa personalidade, mas resultam sempre de uma avaliação, isto é, da estima ou preferência que os bens da vida têm na consciência de cada indivíduo. Tal não significa, porém, operar nessa matéria uma revolução de 180º, ou seja, transferir o mundo dos valores, inteiramente, da realidade objetiva para a consciência subjetiva. O que a axiologia revelou foi uma inter-relação sujeito-objeto, no sentido de que cada um de nós aprecia algo, porque o objeto dessa apreciação tem objetivamente um valor.
Em contraposição, se o homem não cria valores do nada, não é menos verdade que a avaliação individual dos bens da vida varia enormemente. Ora, isso exige, como condição da convivência humana harmoniosa, o consenso social sobre a força ética de uma tábua hierárquica de valores. Os bens ou ações humanas não se organizam, apenas, numa oposição primária de valores e contravalores. Existe também, necessariamente, em toda sociedade organizada, uma hierarquia a ser considerada, dentro de cada série positiva ou negativa: há sempre bens ou ações humanas que, objetivamente, valem mais que outros, ou que representam contravalores mais acentuados que outros, como obstáculo ao desenvolvimento da personalidade humana.
(COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 25-6)
São dois parágrafos do capítulo de retrospectiva histórica sobre a noção de direitos humanos. Vejamos a estrutura básica, a análise argumentativa e a crítica argumentativa de ambos os parágrafos:
1º Parágrafo:
- A axiologia revelou que o valor não reside no objeto, mas na estima que se dedica a ele.
- Isso não significa transferir o mundo dos valores da realidade objetiva (os objetos) para a consciência subjetiva (os sujeitos).
- Significa, sim, que o objeto tem valor porque o sujeito dedica certa estima a ele, e tal sujeito dedica estima a ele porque ele tem algum valor.
Análise do 1º Parágrafo:
Este parágrafo gira em torno da oposição objetivo/subjetivo e lança mão da estratégia do "ponto médio entre extremos": nega-se um extremo, mas diz-se que nem por isso se precisa cair no outro extremo, uma vez que existe uma posição intermediária, muito mais razoável, em que se pode ficar. Sua forma básica é: Não A, mas nem por isso C, porque na verdade B. No caso: A valoração não é inteiramente objetiva (quer dizer, inteiramente dependente apenas do valor do objeto), mas também não é inteiramente subjetiva (quer dizer, inteiramente dependente apenas da estima do sujeito), e sim produto de uma interrelação entre o valor do objeto e a estima do sujeito. A estratégia "ponto médio entre extremos" é geralmente usada por quem não quer tomar partido definitivo numa polêmica, ou por quem não quer ser confundido com algum dos lados que depois criticará ou, ainda, por quem quer parecer um argumentador razoável e sensato, em vez de radical e apaixonado. Tal estratégia geralmente transmite ao auditório a impressão de que o argumentador é confiável, porque examina ambos os lados de cada discussão e toma o que há de melhor em cada um deles. No caso em exame, Comparato não quer se alinhar nem com uma concepção objetivista de bem e mal, que o comprometeria com teses éticas transistóricas, metafísicas e naturalistas, nem com uma concepção subjetivista de bem e mal, que o comprometeria com um contextualismo e um relativismo éticos que não lhe permitiriam falar, mais tarde, na mesma obra, de direitos humanos universais.
Crítica ao 1º Parágrafo:
Tenho diversas críticas filosóficas às teses defendidas por Comparato nesse paragrafo, mas vou me limitar a fazer críticas à sua estratégia argumentativa, sem entrar em questões substantivas sobre a plausibilidade das posições expostas. Se Comparato queria usar a estratégia "ponto médio entre extremos" para evitar o objetivismo e o subjetivismo ético, deveria ter introduzido algum terceiro termo (além de objeto e sujeito) em que pudesse apoiar a conclusão final. Alternativas possíveis teriam sido: a tradição, a história, a cultura etc. (algo que, por apoiar-se no intersubjetivo, foge ao objetivismo e ao subjetivismo, o que talvez forneça uma pista sobre o motivo da estratégia adotada no parágrafo seguinte). Uma vez que não o fez, sua estratégia "ponto médio entre extremos" fica incompleta: se só existem dois termos da relação, o sujeito de um lado e o objeto do outro, a valoração só será produto de uma interrelação no sentido fraco de que precisa ser valoração a partir da estima de um sujeito sobre o valor de um objeto. Mas isso não resolve o problema de saber se esse "valor do objeto" é um valor que ele tem em si mesmo ou é um valor atribuído pelo sujeito. De acordo com a primeira frase do parágrafo, trata-se da segunda alternativa: o valor do objeto é, na verdade, um valor atribuído a ele pelo sujeito. Se é assim, não adianta dizer, na última frase, que o sujeito só dedica estima ao objeto porque esse objeto tem valor, pois tal valor, que o objeto tem, é atribuído pelo sujeito e, portanto, produto de sua estima, e não de uma interrelação entre os dois. Se o objeto em si mesmo é despido de valor e se o que cria esse valor é a estima do sujeito, não existe interrelação alguma nesse processo: trata-se, na verdade, de subjetivismo, sem possível escapatória. O erro, como fica claro, foi não ter fornecido um terceiro termo de fuga à dicotomia sujeito-objeto, erro, aliás, que está entre os mais comuns para quem usa a estratégia "ponto médio entre extremos": supor uma hipotética complementaridade entre posições contrapostas inconciliáveis, em vez de fornecer uma saída real para a dicotomia com que se lida.
2º Parágrafo:
- A avaliação individual varia muito.
- Para um convivência harmoniosa, é necessário um consenso sobre uma hierarquia de valores.
- Não existem apenas valores, de um lado, e contravalores, de outro.
- Existem valores que são, objetivamente, maiores que outros e contravalores que são, objetivamente, maiores que outros.
Análise do 2º Parágrafo:
Esse parágrafo usa, dessa vez, duas estratégias argumentativas. A primeira, que é a estratégia "acordo que salva do conflito", gira em torno da dicotomia indivíduo/sociedade e mostra que os indivíduos têm valorações muito distintas sobre os objetos e que, para uma "convivência humana harmoniosa", precisam alcançar um "consenso" em torno de uma "tábua hierárquica de valores". A segunda, que é a estratégia "hierarquia que soluciona conflitos", gira em torno da dicotomia qualidade/quantidade e tenta mostrar que, além da distinção qualitativa entre valores de um lado e contravalores do outro, existe também a distinção quantitativa (nesse caso, de grau, interpretada, por alguma razão, como distinção de nível hierárquico) entre valores e contravalores maiores ou menores que outros. Ambas as estratégias se combinam para formar a estratégia argumentativa maior, que afirma: a única maneira de escapar do conflito valorativo interindividual radical é um consenso social sobre uma hirarquia de valores. (Essa tese, é claro, é preparatória para depois afirmar que os direitos humanos forneceriam tal "tábua hierárquica de valores" que, mediante o consenso social, cria uma "convivência humana harmoniosa", mesmo entre indivíduos com valorações bastante distintas sobre os objetos em geral.)
Critica ao 2º Parágrafo:
Minhas críticas filosóficas a esse segundo parágrafo seriam ainda maiores que minhas críticas ao primeiro. Mas, novamente, me restringirei às críticas argumentativas. O recurso abrupto à necessidade de uma "convivência humana harmoniosa" esconde passos argumentativos que não foram explicitados, mas ficaram pressupostos, e que são mais fortes justamente porque ficaram pressupostos: o passo argumentativo de igualar "diferença" a "conflito" e o passo argumentativo de supor que apenas com a eliminação ou mitigação da diferença é que é possível uma "convivência humana harmoniosa". Ambas as crenças são comuns ao senso comum, normalmente informado por concepções homogeneizantes, uniformizadoras e intolerantes (uma herança de um passado tribal, pré-liberal e pré-democrático). Tal recurso manipulativo, que apela a uma crença difundida, embora geralmente inconfessa e ocultada do senso comum, convém à conversa de botequim, ao discurso de reunião de condomínio, ao comício político, mas não à discussão filosófica. Nesta última, é preciso mostrar, em vez de pressupor, porque a diferença resulta necessariamente em conflito e por que, para superar o conflito, é preciso necessariamente uma renúncia à diferença, coisa que o trecho citado não faz (e teria extrema dificuldade de fazer sem comprometer as premissas liberais e democráticas com que quererá mostrar-se comprometido depois). Outra crítica é à noção de um consenso sobre uma "tábua hierárquica de valores". Uma vez que os indivíduos têm, como o autor diz, valorações que variam enormemente, não é claro que consenso seria possível entre eles, nem como tal consenso poderia ser alcançado. Sem uma explicação adicional sobre isso, fica a impressão de que, para além de toda variação valorativa, existem certos objetos que são valores ou contravalores para todos os indivíduos, o que, mantida a dicotomia estrita sujeito/objeto do primeiro parágrafo, parece sugerir que existem, afinal de contas, objetos cujo valor independe da estima dos sujeitos, ou que, pelos menos, conquistam a estima de todos os indivíduos, da mesma forma e no mesmo grau, necessariamente. Uma última crítica se dirige à passagem, novamente abrupta, da idéia de gradação para a idéia de hierarquia. Nem toda gradação resulta em hierarquia. Todos temos, por exemplo, nossas comidas favoritas (o que indica a gradação de gostar mais de certas comidas que de outras), mas isso não quer dizer que possamos fixar uma hierarquia de comidas (tal que a comida X será sempre preferida à comida Y, em qualquer escolha entre elas), pois nossas preferências são geralmente flutuantes, contextuais, relativas a fatores adicionais e difíceis de determinar com antecedência e precisão. Não há razão para pensar que nossas preferências por "bens da vida" como vida, liberdade, propriedade, respeito, igualdade, segurança etc. tenham mais exatidão e fixidez do que a referida preferência por comidas, sendo, de algum modo, estáticas e acontextuais o suficiente para serem formuladas em formato hierárquico. Tal associação precipitada entre gradação e hierarquia esconde, na verdade, outro propósito: ajustar o dado psicológico e social cotidiano de nossas preferências gradativas ao formato técnico-jurídico da hierarquia, capaz de resolver possíveis conflitos entre valores numa forma supostamente objetiva e supostamente legítima para todos os sujeitos.
Espero que tenham gostado dessa primeira análise argumentativa. Pretendo publicar outras em breve. Gostaria muito de ler os comentários de todos os que lerem essa postagem. Abraços a todos!
Graças ao pensamento inovador de Lotze, Brentano e Nietzsche, na segunda metade do Séc. XIX, foi possível compreender que o bem e o mal não se encontram confinados nos objetos ou ações exteriores à nossa personalidade, mas resultam sempre de uma avaliação, isto é, da estima ou preferência que os bens da vida têm na consciência de cada indivíduo. Tal não significa, porém, operar nessa matéria uma revolução de 180º, ou seja, transferir o mundo dos valores, inteiramente, da realidade objetiva para a consciência subjetiva. O que a axiologia revelou foi uma inter-relação sujeito-objeto, no sentido de que cada um de nós aprecia algo, porque o objeto dessa apreciação tem objetivamente um valor.
Em contraposição, se o homem não cria valores do nada, não é menos verdade que a avaliação individual dos bens da vida varia enormemente. Ora, isso exige, como condição da convivência humana harmoniosa, o consenso social sobre a força ética de uma tábua hierárquica de valores. Os bens ou ações humanas não se organizam, apenas, numa oposição primária de valores e contravalores. Existe também, necessariamente, em toda sociedade organizada, uma hierarquia a ser considerada, dentro de cada série positiva ou negativa: há sempre bens ou ações humanas que, objetivamente, valem mais que outros, ou que representam contravalores mais acentuados que outros, como obstáculo ao desenvolvimento da personalidade humana.
(COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 25-6)
São dois parágrafos do capítulo de retrospectiva histórica sobre a noção de direitos humanos. Vejamos a estrutura básica, a análise argumentativa e a crítica argumentativa de ambos os parágrafos:
1º Parágrafo:
- A axiologia revelou que o valor não reside no objeto, mas na estima que se dedica a ele.
- Isso não significa transferir o mundo dos valores da realidade objetiva (os objetos) para a consciência subjetiva (os sujeitos).
- Significa, sim, que o objeto tem valor porque o sujeito dedica certa estima a ele, e tal sujeito dedica estima a ele porque ele tem algum valor.
Análise do 1º Parágrafo:
Este parágrafo gira em torno da oposição objetivo/subjetivo e lança mão da estratégia do "ponto médio entre extremos": nega-se um extremo, mas diz-se que nem por isso se precisa cair no outro extremo, uma vez que existe uma posição intermediária, muito mais razoável, em que se pode ficar. Sua forma básica é: Não A, mas nem por isso C, porque na verdade B. No caso: A valoração não é inteiramente objetiva (quer dizer, inteiramente dependente apenas do valor do objeto), mas também não é inteiramente subjetiva (quer dizer, inteiramente dependente apenas da estima do sujeito), e sim produto de uma interrelação entre o valor do objeto e a estima do sujeito. A estratégia "ponto médio entre extremos" é geralmente usada por quem não quer tomar partido definitivo numa polêmica, ou por quem não quer ser confundido com algum dos lados que depois criticará ou, ainda, por quem quer parecer um argumentador razoável e sensato, em vez de radical e apaixonado. Tal estratégia geralmente transmite ao auditório a impressão de que o argumentador é confiável, porque examina ambos os lados de cada discussão e toma o que há de melhor em cada um deles. No caso em exame, Comparato não quer se alinhar nem com uma concepção objetivista de bem e mal, que o comprometeria com teses éticas transistóricas, metafísicas e naturalistas, nem com uma concepção subjetivista de bem e mal, que o comprometeria com um contextualismo e um relativismo éticos que não lhe permitiriam falar, mais tarde, na mesma obra, de direitos humanos universais.
Crítica ao 1º Parágrafo:
Tenho diversas críticas filosóficas às teses defendidas por Comparato nesse paragrafo, mas vou me limitar a fazer críticas à sua estratégia argumentativa, sem entrar em questões substantivas sobre a plausibilidade das posições expostas. Se Comparato queria usar a estratégia "ponto médio entre extremos" para evitar o objetivismo e o subjetivismo ético, deveria ter introduzido algum terceiro termo (além de objeto e sujeito) em que pudesse apoiar a conclusão final. Alternativas possíveis teriam sido: a tradição, a história, a cultura etc. (algo que, por apoiar-se no intersubjetivo, foge ao objetivismo e ao subjetivismo, o que talvez forneça uma pista sobre o motivo da estratégia adotada no parágrafo seguinte). Uma vez que não o fez, sua estratégia "ponto médio entre extremos" fica incompleta: se só existem dois termos da relação, o sujeito de um lado e o objeto do outro, a valoração só será produto de uma interrelação no sentido fraco de que precisa ser valoração a partir da estima de um sujeito sobre o valor de um objeto. Mas isso não resolve o problema de saber se esse "valor do objeto" é um valor que ele tem em si mesmo ou é um valor atribuído pelo sujeito. De acordo com a primeira frase do parágrafo, trata-se da segunda alternativa: o valor do objeto é, na verdade, um valor atribuído a ele pelo sujeito. Se é assim, não adianta dizer, na última frase, que o sujeito só dedica estima ao objeto porque esse objeto tem valor, pois tal valor, que o objeto tem, é atribuído pelo sujeito e, portanto, produto de sua estima, e não de uma interrelação entre os dois. Se o objeto em si mesmo é despido de valor e se o que cria esse valor é a estima do sujeito, não existe interrelação alguma nesse processo: trata-se, na verdade, de subjetivismo, sem possível escapatória. O erro, como fica claro, foi não ter fornecido um terceiro termo de fuga à dicotomia sujeito-objeto, erro, aliás, que está entre os mais comuns para quem usa a estratégia "ponto médio entre extremos": supor uma hipotética complementaridade entre posições contrapostas inconciliáveis, em vez de fornecer uma saída real para a dicotomia com que se lida.
2º Parágrafo:
- A avaliação individual varia muito.
- Para um convivência harmoniosa, é necessário um consenso sobre uma hierarquia de valores.
- Não existem apenas valores, de um lado, e contravalores, de outro.
- Existem valores que são, objetivamente, maiores que outros e contravalores que são, objetivamente, maiores que outros.
Análise do 2º Parágrafo:
Esse parágrafo usa, dessa vez, duas estratégias argumentativas. A primeira, que é a estratégia "acordo que salva do conflito", gira em torno da dicotomia indivíduo/sociedade e mostra que os indivíduos têm valorações muito distintas sobre os objetos e que, para uma "convivência humana harmoniosa", precisam alcançar um "consenso" em torno de uma "tábua hierárquica de valores". A segunda, que é a estratégia "hierarquia que soluciona conflitos", gira em torno da dicotomia qualidade/quantidade e tenta mostrar que, além da distinção qualitativa entre valores de um lado e contravalores do outro, existe também a distinção quantitativa (nesse caso, de grau, interpretada, por alguma razão, como distinção de nível hierárquico) entre valores e contravalores maiores ou menores que outros. Ambas as estratégias se combinam para formar a estratégia argumentativa maior, que afirma: a única maneira de escapar do conflito valorativo interindividual radical é um consenso social sobre uma hirarquia de valores. (Essa tese, é claro, é preparatória para depois afirmar que os direitos humanos forneceriam tal "tábua hierárquica de valores" que, mediante o consenso social, cria uma "convivência humana harmoniosa", mesmo entre indivíduos com valorações bastante distintas sobre os objetos em geral.)
Critica ao 2º Parágrafo:
Minhas críticas filosóficas a esse segundo parágrafo seriam ainda maiores que minhas críticas ao primeiro. Mas, novamente, me restringirei às críticas argumentativas. O recurso abrupto à necessidade de uma "convivência humana harmoniosa" esconde passos argumentativos que não foram explicitados, mas ficaram pressupostos, e que são mais fortes justamente porque ficaram pressupostos: o passo argumentativo de igualar "diferença" a "conflito" e o passo argumentativo de supor que apenas com a eliminação ou mitigação da diferença é que é possível uma "convivência humana harmoniosa". Ambas as crenças são comuns ao senso comum, normalmente informado por concepções homogeneizantes, uniformizadoras e intolerantes (uma herança de um passado tribal, pré-liberal e pré-democrático). Tal recurso manipulativo, que apela a uma crença difundida, embora geralmente inconfessa e ocultada do senso comum, convém à conversa de botequim, ao discurso de reunião de condomínio, ao comício político, mas não à discussão filosófica. Nesta última, é preciso mostrar, em vez de pressupor, porque a diferença resulta necessariamente em conflito e por que, para superar o conflito, é preciso necessariamente uma renúncia à diferença, coisa que o trecho citado não faz (e teria extrema dificuldade de fazer sem comprometer as premissas liberais e democráticas com que quererá mostrar-se comprometido depois). Outra crítica é à noção de um consenso sobre uma "tábua hierárquica de valores". Uma vez que os indivíduos têm, como o autor diz, valorações que variam enormemente, não é claro que consenso seria possível entre eles, nem como tal consenso poderia ser alcançado. Sem uma explicação adicional sobre isso, fica a impressão de que, para além de toda variação valorativa, existem certos objetos que são valores ou contravalores para todos os indivíduos, o que, mantida a dicotomia estrita sujeito/objeto do primeiro parágrafo, parece sugerir que existem, afinal de contas, objetos cujo valor independe da estima dos sujeitos, ou que, pelos menos, conquistam a estima de todos os indivíduos, da mesma forma e no mesmo grau, necessariamente. Uma última crítica se dirige à passagem, novamente abrupta, da idéia de gradação para a idéia de hierarquia. Nem toda gradação resulta em hierarquia. Todos temos, por exemplo, nossas comidas favoritas (o que indica a gradação de gostar mais de certas comidas que de outras), mas isso não quer dizer que possamos fixar uma hierarquia de comidas (tal que a comida X será sempre preferida à comida Y, em qualquer escolha entre elas), pois nossas preferências são geralmente flutuantes, contextuais, relativas a fatores adicionais e difíceis de determinar com antecedência e precisão. Não há razão para pensar que nossas preferências por "bens da vida" como vida, liberdade, propriedade, respeito, igualdade, segurança etc. tenham mais exatidão e fixidez do que a referida preferência por comidas, sendo, de algum modo, estáticas e acontextuais o suficiente para serem formuladas em formato hierárquico. Tal associação precipitada entre gradação e hierarquia esconde, na verdade, outro propósito: ajustar o dado psicológico e social cotidiano de nossas preferências gradativas ao formato técnico-jurídico da hierarquia, capaz de resolver possíveis conflitos entre valores numa forma supostamente objetiva e supostamente legítima para todos os sujeitos.
Espero que tenham gostado dessa primeira análise argumentativa. Pretendo publicar outras em breve. Gostaria muito de ler os comentários de todos os que lerem essa postagem. Abraços a todos!
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