Início da vida: uma questão biológica? (II)
Em qualquer domínio intelectual, há situações de discussão de teses que se desenvolvem num primeiro nível de profundidade, no qual basta para cada contendor levantar os argumentos em favor de sua tese, responder às críticas feitas contra ela e refutar os argumentos em favor da tese adversária, e há outras situações de discussão que precisam descer a um segundo nível de profundidade, no qual é preciso revelar motivos e condicionamentos inconscientes que, sem que os contendores se dêem conta, alteram sua percepção da plausibilidade ou falta de plausibilidade dos argumentos levantados. Pois bem, a adoção ou não do critério biológico para fins de determinação do início da proteção jurídica à vida humana, sobre o qual escevi recentemente uma postagem, é uma das situações de discussão em que não só o segundo nível de profundidade é necessário, mas também em que a permanência ingênua e irreflexiva apenas no primeiro nível pode comprometer de modo fatal a razoabilidade da discussão.
Costumo dizer que não há assunto pacífico e assunto polêmico, o que há são possibilidades contraditórias exploradas ou inexploradas. E o que torna certos assuntos temas tão constantes de debates apaixonados não é tanto que tenham mais possibilidades contraditórias que os assuntos ditos consensuais, mas sim que suas possibilidades contraditórias tenham sido mais intensa e amplamente exploradas que a destes últimos. Ambas as coisas, o que torna certos assuntos particularmente consensuais e o que torna certos outros particularmente polêmicos, podem e devem ser objeto de investigação e reflexão. Tal investigação e reflexão não podem, contudo, sob pena de frustrarem seus propósitos, cair na tentação da fórmula fácil, da explicação genérica e esquemática que simplifica e abarca todos os consensos e todas as polêmicas. Deve, isso sim, dedicar-se a cada consenso e a cada polêmica em particular, escavando-as atrás de suas motivações ocultas singulares, daquilo que age no caso pontual como elemento de acordo ou de controvérsia. É o que, de maneira modestíssima, tentarei fazer nesta postagem no que se refere aos motivos inconscientes para adoção do critério biológico para fins de determinação do início da proteção jurídica à vida humana. Vejamos alguns pontos a respeito.
1. É um fato que há algo de sublime e misterioso no fenômeno biológico da vida. Negar que esse caráter sublime e misterioso exerce um papel na argumentação em torno desse tema é permanecer por ingenuidade voluntária num nível excessivamente superficial de análise da questão. Mas é bom entender logo de saída que "sublime e misterioso" é uma qualidade que o fenômeno tem, não em si mesmo, mas aos olhos de quem o vê. Trata-se de uma descrição que se aplica mais ao modo como o objeto é apreendido pelo sujeito (e ao valor que o sujeito atribui ao que dele apreende) do que ao próprio objeto ou ao seu valor, digamos assim, "intrínseco". Aliás, escolhi de propósito a expressão "sublime e misterioso", porque se compõe de dois elementos cuja raiz estética e religiosa é praticamente indisfarçável. Sublime é o que é captado como sendo ao mesmo tempo grandioso e venerável, maior que nossa capacidade de apreendê-lo inteiramente e dotado da autoridade das coisas santas, que exigem respeito e submissão. Misterioso é o que não apenas é desconhecido, mas que se oferece ao mesmo tempo como impossível de ser deixado de lado e impossível de ser realmente conhecido, como simultaneamente indispensável e inviável para a cognição. Existem, tanto no sublime quanto no misterioso, dois elementos: o primeiro é a incapacidade de apreensão ou compreensão completa da coisa, e o segundo é a conversão dessa incapacidade do sujeito em valor do objeto, em motivo para votar veneração e submissão a ele.
2. Contudo, como nem toda impossibilidade de apreensão automaticamente torna sublime e misterioso o objeto (por exemplo, não veneramos o infrassom, nem os raios ultravioleta), o fato de que para certo objeto seja assim precisa de uma explicação satisfatória. Devemos em primeiro lugar examinar o processo histórico-cultural que tornou a vida um fenômeno sublime e misterioso. Do ponto de vista de uma antropologia filosófica, é impossível não levar em conta que o fascínio da vida está diretamente associado ao temor da morte. O fato de cada indivíduo desejar ardentemente estar vivo e permanecer vivo, por um tempo indefinidamente longo ou mesmo eterno, faz com que a morte apareça como o mal radical, hostil na interrupção que impõe à vida e temível na imprevisibilidade do momento certo de sua chegada, na irreversibilidade de seus efeitos e na inevitabilidade de sua ação. Quando a morte é conscientemente encarada como realidade hostil, imprevisível, irreversível e inevitável, a vida ganha por contraste a coloração brilhante de uma graça, de uma dádiva de que se deve fruir até o limite de sua finitude e precariedade, e exatamente por causa dessa finitude e dessa precariedade. Assim, por efeito reverso do temor à morte, se instaura uma veneração da vida. Já do ponto de vista de uma história cultural, é impossível não levar em conta o apelo erótico e a força persuasiva das metáforas religiosas. A insuflação no corpo de barro do hálito divino, que se converte em alma e sustenta, magicamente, o incessante funcionamento da máquina humana, é apenas a instância cristã de uma vasta rede de referências culturais, que, nas crenças religiosas dos mais diversos povos e épocas, vinculam a vida à alma e à divindade. Se, ao confrontar morte e vida, se instaura em favor da vida uma veneração por contraste, agora, ao remeter à divindade a origem, a natureza e o poder da vida, se instaura em seu favor uma veneração por associação. Projeta-se para a vida a veneração da divindade que se crê ser sua fonte última e da qual se considera a própria vida como uma das manifestações mais portentosas. Venerar a vida se torna uma instância da veneração pela divindade mesma (assim como, contrario sensu, desprezar ou ofender a uma é fazer o mesmo à outra).
3. Por fim, e mais ou menos por extensão dos motivos considerados até aqui, existe o endosso intelectual posterior ao caráter sublime e misterioso da vida. A filosofia e a ciência também deram sua contribuição na conversão da vida biológica em fenômeno dotado de caracteres especialíssimos. O primeiro passo para isso é o destacamento dos fenômenos biológicos do meio da multidão dos fenômenos físicos. A justificativa de que os fenômenos biológicos têm uma "lógica particular", não "redutível" à lógica dos demais fenômenos físicos, está longe de ser suficiente, porque o mesmo se aplica, para dar apenas dois de muitos exemplos possíveis, aos fenômenos ópticos e aos fenômenos quânticos, que, no entanto, não são considerados como domínios diferentes e apartados do físico. Aliás, boa parte das classificações disciplinares sofrem uma influência muito maior de fatores psicoculturais do que usualmente se imagina. No caso presente, junto com a consideração da "biologia" como uma "logia" independente, um reino com soberania disciplinar própria e onde as leis gerais do domínio físico só agem se devidamente ratificadas pela assembléia nacional como compatíveis com as leis supremas da teleologia biológica, existe também a crença de que, não importa quanto se avance no conhecimento dos "fenômenos da vida", jamais se será capaz de explicá-los inteiramente ou de recriá-los artificialmente. Essa previsão negativa, de uma incapacidade e insuficiência eterna do conhecimento filosófico, científico e técnico perante as coisas biológicas, é menos uma previsão racional que a expressão de um desejo bastante irracional, nesse caso o desejo de que exista para sempre algo inalcansável e inapreensível, algo que esteja além de nossa mais elevada capacidade de compreensão e de fabricação, algo "sublime e misterioso" que mantenha o conhecimento sempre compatível com a veneração, que não peça a renúncia da idolatria como preço a pagar pela ciência.
Penso que qualquer discussão sobre a adoção ou não do critério biológico para fins de determinação do início da proteção jurídica à vida humana deve necessariamente considerar o peso (tanto no sentido de influência que têm, quanto no sentido de relevância que deveriam ter) desses motivos inconscientes na adesão ou rejeição dos argumentos propostos.
Costumo dizer que não há assunto pacífico e assunto polêmico, o que há são possibilidades contraditórias exploradas ou inexploradas. E o que torna certos assuntos temas tão constantes de debates apaixonados não é tanto que tenham mais possibilidades contraditórias que os assuntos ditos consensuais, mas sim que suas possibilidades contraditórias tenham sido mais intensa e amplamente exploradas que a destes últimos. Ambas as coisas, o que torna certos assuntos particularmente consensuais e o que torna certos outros particularmente polêmicos, podem e devem ser objeto de investigação e reflexão. Tal investigação e reflexão não podem, contudo, sob pena de frustrarem seus propósitos, cair na tentação da fórmula fácil, da explicação genérica e esquemática que simplifica e abarca todos os consensos e todas as polêmicas. Deve, isso sim, dedicar-se a cada consenso e a cada polêmica em particular, escavando-as atrás de suas motivações ocultas singulares, daquilo que age no caso pontual como elemento de acordo ou de controvérsia. É o que, de maneira modestíssima, tentarei fazer nesta postagem no que se refere aos motivos inconscientes para adoção do critério biológico para fins de determinação do início da proteção jurídica à vida humana. Vejamos alguns pontos a respeito.
1. É um fato que há algo de sublime e misterioso no fenômeno biológico da vida. Negar que esse caráter sublime e misterioso exerce um papel na argumentação em torno desse tema é permanecer por ingenuidade voluntária num nível excessivamente superficial de análise da questão. Mas é bom entender logo de saída que "sublime e misterioso" é uma qualidade que o fenômeno tem, não em si mesmo, mas aos olhos de quem o vê. Trata-se de uma descrição que se aplica mais ao modo como o objeto é apreendido pelo sujeito (e ao valor que o sujeito atribui ao que dele apreende) do que ao próprio objeto ou ao seu valor, digamos assim, "intrínseco". Aliás, escolhi de propósito a expressão "sublime e misterioso", porque se compõe de dois elementos cuja raiz estética e religiosa é praticamente indisfarçável. Sublime é o que é captado como sendo ao mesmo tempo grandioso e venerável, maior que nossa capacidade de apreendê-lo inteiramente e dotado da autoridade das coisas santas, que exigem respeito e submissão. Misterioso é o que não apenas é desconhecido, mas que se oferece ao mesmo tempo como impossível de ser deixado de lado e impossível de ser realmente conhecido, como simultaneamente indispensável e inviável para a cognição. Existem, tanto no sublime quanto no misterioso, dois elementos: o primeiro é a incapacidade de apreensão ou compreensão completa da coisa, e o segundo é a conversão dessa incapacidade do sujeito em valor do objeto, em motivo para votar veneração e submissão a ele.
2. Contudo, como nem toda impossibilidade de apreensão automaticamente torna sublime e misterioso o objeto (por exemplo, não veneramos o infrassom, nem os raios ultravioleta), o fato de que para certo objeto seja assim precisa de uma explicação satisfatória. Devemos em primeiro lugar examinar o processo histórico-cultural que tornou a vida um fenômeno sublime e misterioso. Do ponto de vista de uma antropologia filosófica, é impossível não levar em conta que o fascínio da vida está diretamente associado ao temor da morte. O fato de cada indivíduo desejar ardentemente estar vivo e permanecer vivo, por um tempo indefinidamente longo ou mesmo eterno, faz com que a morte apareça como o mal radical, hostil na interrupção que impõe à vida e temível na imprevisibilidade do momento certo de sua chegada, na irreversibilidade de seus efeitos e na inevitabilidade de sua ação. Quando a morte é conscientemente encarada como realidade hostil, imprevisível, irreversível e inevitável, a vida ganha por contraste a coloração brilhante de uma graça, de uma dádiva de que se deve fruir até o limite de sua finitude e precariedade, e exatamente por causa dessa finitude e dessa precariedade. Assim, por efeito reverso do temor à morte, se instaura uma veneração da vida. Já do ponto de vista de uma história cultural, é impossível não levar em conta o apelo erótico e a força persuasiva das metáforas religiosas. A insuflação no corpo de barro do hálito divino, que se converte em alma e sustenta, magicamente, o incessante funcionamento da máquina humana, é apenas a instância cristã de uma vasta rede de referências culturais, que, nas crenças religiosas dos mais diversos povos e épocas, vinculam a vida à alma e à divindade. Se, ao confrontar morte e vida, se instaura em favor da vida uma veneração por contraste, agora, ao remeter à divindade a origem, a natureza e o poder da vida, se instaura em seu favor uma veneração por associação. Projeta-se para a vida a veneração da divindade que se crê ser sua fonte última e da qual se considera a própria vida como uma das manifestações mais portentosas. Venerar a vida se torna uma instância da veneração pela divindade mesma (assim como, contrario sensu, desprezar ou ofender a uma é fazer o mesmo à outra).
3. Por fim, e mais ou menos por extensão dos motivos considerados até aqui, existe o endosso intelectual posterior ao caráter sublime e misterioso da vida. A filosofia e a ciência também deram sua contribuição na conversão da vida biológica em fenômeno dotado de caracteres especialíssimos. O primeiro passo para isso é o destacamento dos fenômenos biológicos do meio da multidão dos fenômenos físicos. A justificativa de que os fenômenos biológicos têm uma "lógica particular", não "redutível" à lógica dos demais fenômenos físicos, está longe de ser suficiente, porque o mesmo se aplica, para dar apenas dois de muitos exemplos possíveis, aos fenômenos ópticos e aos fenômenos quânticos, que, no entanto, não são considerados como domínios diferentes e apartados do físico. Aliás, boa parte das classificações disciplinares sofrem uma influência muito maior de fatores psicoculturais do que usualmente se imagina. No caso presente, junto com a consideração da "biologia" como uma "logia" independente, um reino com soberania disciplinar própria e onde as leis gerais do domínio físico só agem se devidamente ratificadas pela assembléia nacional como compatíveis com as leis supremas da teleologia biológica, existe também a crença de que, não importa quanto se avance no conhecimento dos "fenômenos da vida", jamais se será capaz de explicá-los inteiramente ou de recriá-los artificialmente. Essa previsão negativa, de uma incapacidade e insuficiência eterna do conhecimento filosófico, científico e técnico perante as coisas biológicas, é menos uma previsão racional que a expressão de um desejo bastante irracional, nesse caso o desejo de que exista para sempre algo inalcansável e inapreensível, algo que esteja além de nossa mais elevada capacidade de compreensão e de fabricação, algo "sublime e misterioso" que mantenha o conhecimento sempre compatível com a veneração, que não peça a renúncia da idolatria como preço a pagar pela ciência.
Penso que qualquer discussão sobre a adoção ou não do critério biológico para fins de determinação do início da proteção jurídica à vida humana deve necessariamente considerar o peso (tanto no sentido de influência que têm, quanto no sentido de relevância que deveriam ter) desses motivos inconscientes na adesão ou rejeição dos argumentos propostos.
Comentários
Como bem comentei contigo, não deixei de prestigiar seu blog, mas, quanto a postar comentários, não só o tempo tem me faltado como pouco tenho divergido de suas idéias expostas, razão que leva a contentar-me com a leitura apenas.
Por outro lado, como sei que o blogueiro precisa de um "feedback" de seu público, seja para animá-lo, seja para instigar a discussão, ou outro motivo... Vou tentar acrescentar alguma informação a este tema que gostei bastante.
Pois bem, a princípio, concordo com sua exposição do sublime e do misterioso da vida, e sua fundamentação (me parece ser o caso de não utilizar "justificação", naquele sentido que você já expôs no blog, afinal estamos falando de dogmas da Igreja, correto?) religiosa. Eu seria apenas um pouco mais moderado nesse discurso, pois vejo a religião como uma manifestação cultural do homem, apesar de ter um mecanismo próprio de funcionamento. Em suas palavras, a mim, fica evidente um tom crítico em face do discurso religioso, que se justifica mesmo pela história, principalmente, da Igreja Católica. Contudo, acho interessante lembrar que as doutrinas religiosas, para muitas pessoas, servem como parâmetro que norteia a vida individual de cada um, como estimuladora da compaixão e da solidariedade, para citar algumas das virtudes que não pregadas, e por aí vai. Logo, parece-me que a controvérsia que se evidencia quanto ao discurso religioso concentra-se mais no aparato central que detém o poder de direção em cada religião, este sim, merecedor de várias críticas ao longo dos séculos.
Mesmo assim, como disse no início do parágrafo anterior, grosso modo, concordo contigo que o discurso religioso tem servido muito como antolhos, de maneira a limitar e desestimular a reflexão mais profunda.
Quanto ao discurso biológico, volto a concordar uma vez mais contigo. Adotar uma postura que defende a impossibilidade de explicação suficiente em torno dos fenômenos da vida parece significar a opção por uma postura um tanto irracional, quer dizer, fundamentada, como você destacou, em um "desejo bastante irracional". É o caso sim de reconhecermos as limitações atuais da ciência, seja no que toca aos contornos conferidos pela epistemologia, seja no que se refere à uma fundamentação filosófica. Não sobeja lembrar que, mesmo o conhecimento em áreas como a Física, não mais é encarado como um dado definitivo. As verdades que construímos estão aí para ser superadas. São válidas até que outras as invalide.
Outro ponto que destaco, quanto à essa postura que idealiza uma suposta impossibilidade de explicação suficiente dos fenômenos da vida, é um exemplo que me vem à cabeça. Sobre a origem do mundo, todos conhecem a famosa teoria do "big bang" (não é o caso de fazer nenhuma síntese aqui). Sempre que penso nela, vem-me logo a seguinte pergunta: Ok, mas e antes da explosão do tal átomo, o que existia? Não há professor de colegial que "ouse" arriscar algumas palavras. Já explico porque me lembrei desse exemplo. Ocorre que ele bem demonstra a limitação, momentânea, da Ciência que nós, homens, inventamos e reinventamos. Até mesmo os conceitos de "espaço" e "tempo" que o homem criou (e já recriou), infelizmente, apesar de possuir enorme utilidade para a vida, não deixa de oferecer suas limitações na visualização do "algo mais". Não à toa, novas teorias procuraram ultrapassar essa visão de passado, presente e futuro, ou espaço tridimensional (ver, por exemplo, a teoria "espaço-tempo" de Einsten e a tais 10 ou 11 dimensões das quais fala Stephen Hawking). Trata-se de um invólucro da Ciência que, mesmo muito útil, possui limitações e pode (ou precisa) ser superado para que novas explicações possam emergir. Digo tudo isso, para reforçar a visão exposta na postagem de que o discurso religioso não pode servir de limitação única ao tema. Mesmo o discurso biológico precisa ser ponderado, sob pena de reduzirmos o alcance das respostas que procuramos.
Era isso.
Abraço, André.