"Ética e Cidadania"

Convidado por uma amiga queridíssima, a Profa. Gisele Gato, para ministrar nesta terça-feira, 05/05/09, às 17:10h, uma palestra sobre esse tema para uma turma de Direito da Universidade da Amazônia (Unama), resolvi dedicar uma postagem do blog à questão, até para dar aos que não poderão assistir à referida palestra a chance de saberem das linhas básicas de seu conteúdo. Ei-las:

Uma palestra sobre ética e cidadania pode ser ministrada de muitas maneiras diferentes. Optarei por centrar minha exposição no tema da cidadania, falando do tema da ética conforme ele se apresente conexo ao tema da cidadania. Como, no entanto, uma palestra sobre cidadania também pode ser ministrada de muitas maneiras diferentes, optarei por uma abordagem histórica e conceitual sobre uma questão em particular, que é a questão da transição da cidadania ativa para a cidadania passiva, um processo que, como veremos, começa ainda na Grécia antiga e culmina nas modernas sociedades pós-industriais de massa. Se for bem sucedido na minha exposição, conseguirei mostrar que essa "passivização" da cidadania teve três momentos decisivos: o momento antigo da filosofia socrática, o momento medieval da religião cristã e o momento moderno da economia capitalista. Se for ainda mais bem sucedido, conseguirei mostrar também que, quanto mais se tornava passiva a cidadania, mais se enfraquecia a noção de política, até culminar nos atuais problemas da crise da representação e da morte da esfera pública. Por fim, se for realmente muito bem sucedido, conseguirei mostrar que nós, juristas, temos um papel na recuperação do sentido ativo da cidadania, mas que esse papel não pode ser executado nos moldes em que tem sido proposto nas atuais vertentes de ativismo judicial e judicialização da política. Para dar conta dos propósitos ousados que me propus aqui, invocarei a ajuda de dois mentores queridos: Hannah Arendt, especialmente sua exposição do declínio da cidadania e da esfera pública em "A condição humana", e Jürgen Habermas, mais especificamente sua exposição sobre a necessidade de uma democracia deliberativa e de uma política emancipatória em "Direito e democracia: entre facticidade e validade".

Nosso ponto de partida será um certo estado da pólis grega, por volta dos sécs. VI e V a.C., em que se entendia que a vida humana só se realizava plenamente na vida política. Naquele estado, acreditava-se que a vida dedicada apenas ao trabalho, à satisfação das necessidades de sobrevivência do corpo, e a vida dedicada apenas ao prazer, à satisfação do desejo de gozo e conforto do corpo, eram vidas indignas do ser humano, mais adequadas aos animais inferiores. Era apenas quando o homem conseguia colocar o bem da comunidade acima do bem individual, quando, em vez de ver-se condicionado pelo ambiente, reconstruía o próprio ambiente, reinventando suas próprias condições de vida, que ele era verdadeiramente um ser livre e autônomo. Era apenas quando discutia com seus pares em busca da lei justa, da solução acertada, da decisão virtuosa, que estava sendo verdadeiramente um ser racional e prudente. Todos queriam participar da vida política, ninguém queria ser excluído dela. Ninguém em sã consciência aceitaria a proposta de renunciar à sua participação na vida política para dedicar-se apenas a seus assuntos privados, ninguém acharia uma boa idéia que outras pessoas tomassem a decisão em seu lugar, mesmo que essas decisões preservassem seus bens particulares e favorecessem seus interesses privados. Esse estado consideraremos como sendo o auge da cidadania ativa, dessa disposição interna e conduta externa de participação na vida pública, de participação no planejamento, na decisão, na execução e na fiscalização de como se processam as atividades da pólis.

O que precisamos examinar é como esse estado desapareceu e foi progressivamente substituído por outro, em que se privilegia uma cidadania passiva, não virtuosa, não engajada, não participativa. Esse processo tem três momentos decisivos.

1. O primeiro desses momentos ocorre ainda na Antiguidade e está relacionado com a ascensão da filosofia socrática. De certa maneira, o julgamento de Sócrates, em que o filósofo é condenado à morte apenas por estar submetendo a um juízo racional e crítico as crenças e valores de sua época, decreta uma espécie de divórcio entre a atividade política e a busca da verdade. Aquele evento marca o imaginário da época como declaração inequívoca de que as coisas da pólis e as coisas do espírito tomam caminhos distintos. Não é à toa que os dois continuadores mais eminentes do pensamento socrático, Platão e Aristóteles, falarão ambos da superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa, isto é, da superioridade da vida consagrada à contemplação das verdades eternas, vida que exige o ócio, a suspensão das preocupações e tarefas cotidianas e ordinárias para direcionar-se exclusivamente à busca da beleza, da verdade, do ser. Se Platão e Aristóteles já eram capazes de dizer isso em plena Atenas livre, a mesma posição só tendia a se aprofundar ainda mais nas filosofias helenísticas (o cinismo, o epicurismo, o estoicismo, o neoplatonismo), que, elaboradas no período alexandrino, posterior, portanto, à dissolução da pólis e sua absorção num Império gigantesco e centralizador, não apenas pregavam que o verdadeiro filósofo (isto é, o buscador da verdade) é um puro contemplador, desligado das coisas práticas e das atividades políticas, mas que a verdadeira filosofia, sendo pura contemplação, não tinha espaço para a política, resolvendo-se, no máximo, numa ética do indivíduo, numa ética sobre o modo correto de conduzir os assuntos da vida privada de cada qual. Assim, ao final da Antiguidade grega, os círculos filosóficos, que contavam com um número restrito de adeptos, já tinham elaborado a noção de que o espaço político é espaço de aparência e interesse, e não de verdade e virtude, de modo que é indigno do verdadeiro filósofo, o qual deve dedicar-se apenas à vida contemplativa, contando, no aspecto ativo, no máximo com uma ética da vida individual.

2. O segundo momento de declínio da cidadania ativa ocorre na Idade Média e está relacionado com a ascensão da religião cristã. Podemos dizer que o que ocorre nesse momento é que o pensamento filosófico restrito das escolas helenísticas é cristianizado e universalizado. Digo que foi cristianizado porque, sendo o cristianismo uma religião de salvação pessoal, a noção de vida contemplativa lhe cai com uma luva, permitindo a reelaboração da filosofia socrática nos seguintes termos: o homem é formado de corpo e alma, um corpo mundano e mortal e uma alma divina e imortal; as preocupações cotidianas do trabalho e da política dizem respeito ao corpo, enquanto as preocupações religiosas com a fé e a salvação dizem respeito à alma; quanto mais um indivíduo se dedica aos assuntos do corpo, mais se descura da sua alma, mais trabalha pelo seu conforto mundano passageiro e menos trabalha por sua salvação espiritual eterna. Como o próprio paraíso dos eleitos é concebido como um local de pura contemplação de Deus, a vida contemplativa é uma vida que só se alcança plenamente no outro mundo, sendo tarefa de quem ainda está nesse mundo construir as condições de sua salvação futura. Digo que o pensamento filosófico restrito das escolas helenísticas foi universalizado porque o cristianismo fez do ideal de vida contemplativa, não mais o ideal de uma elite intelectual de filósofos que se punha acima do vulgo iludido, mas sim o ideal cotidiano de cada um dos milhares de fiéis da Igreja Católica. De filosofia que contestava o senso comum, a valorização da vida contemplativa se convertia no próprio senso comum. Nessa versão religiosa, salvífica, a rejeição pela participação em assuntos políticos se tornou a mentalidade dominante do povo, o que, aliás, era especialmente adequado às necessidades do velho feudalismo.

3. O terceiro e último momento de substituição da cidadania ativa pela cidadania passiva ocorre na Modernidade e está relacionado com a ascensão da economia capitalista. A partir do Séc. XII, ocorrem dois fenômenos: um renascimento das cidades e um renascimento do comércio. O renascimento das cidades trazia consigo a oportunidade de retomada da cidadania ativa. Livres da submissão aos senhores feudais, os cidadãos das novas cidades tinham que governar a si mesmos, o que deu origem a várias experiências políticas, especialmente nas cidades italianas do Renascimento, que lembravam os melhores momentos da antiga pólis grega. Contudo, o outro fenômeno, o renascimento do comércio, criou uma nova classe social, os burgueses, que tinham na expansão de seus negócios e de seus lucros seu principal interesse na vida. Isso não apenas contaminava a política das cidades, que assistiam a golpes seguidos de golpes pelo domínio do poder, criando um contexto de guerra interna, como lançava essas cidades em constante conflito umas contra as outras, rivalizando em hegemonia comercial, criando um contexto de guerra externa. Tudo isso tornou impossível a continuidade daquelas experiências políticas de cidadania ativa e preparou o advento do Absolutismo como forma de governo capaz de pôr fim aos conflitos e instaurar a segurança e a estabilidade de que a economia burguesa precisava para conduzir e expandir seus negócios. Inverte-se, assim, radicalmente, a ordem de prioridade da antiga política grega: o indivíduo é entendido como alguém que se dedica ao trabalho e ao prazer, e não à política, que é assunto do príncipe, do Rei, do Estado, e não de cada um. Na verdade, ele precisa ser liberado das coisas políticas, não para dedicar-se à contemplação da verdade, como na filosofia socrática; não para dedicar-se à salvação de sua alma, como na religião cristã; mas para dedicar-se à sobrevivência e ao prazer - exatamente aqueles aspectos inferiores que a antiga política grega considerava indignos do homem enquanto tal.

Não é à toa que, mesmo quando o Estado absolutista for derrubado pelas Revoluções Burguesas (exatamente por haver deixado de ser instrumento de preservação do interesse burguês pela segurança e haver se tornado instrumento de ameaça do interesse burguês pela liberdade), os modelos de Estado que se seguirão a ele - a saber, o Estado Liberal do Séc. XIX e o Estado Social do Séc. XX - perpetuarão a idéia de que a política é assunto do Estado, e não dos cidadãos, ou seja, perpetuarão a manutenção da cidadania passiva. A cidadania passiva do súdito, que é simplesmente ignorado e excluído das decisões políticas, será apenas substituída pela cidadania passiva do contribuinte-eleitor, que será "cidadão" apenas no sentido muito débil de que paga seus tributos e elege representantes que, daí por diante, governam por ele, sem tomar-lhe consulta, sem prestar-lhe contas, sem convocá-lo para coisa alguma. De governante, o cidadão se tornará apenas pagador-votador.

Quando hoje se fala de "crise da representação", de "morte da esfera pública", estamos apenas nos dando conta de um processo que remonta a todo esse histórico. Por "crise da representação" queremos dizer que não existe mais confiança do eleitor em que o representante que ele elege de fato o represente, mas isso não acontece porque o representante se afastou do eleitor, e sim porque o eleitor começou a dar-se conta de uma distância que sempre foi grande e que sempre existiu. Por "morte da esfera pública" queremos dizer que o público reconhece que aquela comunidade de indivíduos engajados na discussão do bem comum e na participação política praticamente deixou de existir, mas isso não acontece porque a esfera pública tenha sido enfraquecida, e sim porque nos temos dado conta de que faz tempo que ela não existe, de que há tempos nos tornamos uma comunidade de trabalhadores, consumidores, pagadores e votadores, mas não de cidadãos, não de verdadeiros governantes de nós mesmos.

Todas as propostas de "fortalecimento da cidadania" que se baseiem em dar mais direitos, mais bens, mais serviços, mais oportunidades aos indivíduos, mas não em convocá-los a serem protagonistas da vida política, são simplesmente mentirosas, são simples continuações do sabotamento da esfera pública, são simples continuações da cidadania passiva, uma cidadania passiva talvez mais abastecida de bens da vida privada, mas igualmente raquítica na sua vida pública. Isso inclui, é claro, os ideais de "ativismo judicial" e de "judicialização da política". Quando os promotores públicos, os procuradores da república, os juízes, os desembargadores, os ministros dos tribunais superiores etc. acreditam que devem tomar para si a tarefa de serem defensores da sociedade, obrigando o legislativo e o executivo a cumprirem suas obrigações legais e constitucionais, não estão "fortalecendo a cidadania", mas apenas a mantendo fraca, a impedindo de existir, de vir à tona, de manifestar-se. Órgãos judiciários reivindicando coisas para a sociedade não é a imagem certa do que é uma cidadania forte. Indivíduos que se autocompreendam como governantes, como responsáveis pela condução e pela fiscalização de todos os assuntos da vida política, como seres humanos que devem pôr-se numa perspectiva metaindividual e metaeconômica, como cidadãos solidariamente irmanados da tarefa de constuir o próprio destino: isto, sim - por utópico que pareça, não tem problema -, seria um verdadeiro fortalecimento da cidadania.

Comentários

Yúdice Andrade disse…
Parabéns pelo excelente passeio sobre tema da maior relevância, imprescindível para quem se interessa por ele e, como muito bem disseste, precisa entender as suas linhas gerais.
Muito bom poder aprender com toda essa leveza.
Anônimo disse…
Nossa, acho que foi dos comentários mais rápidos a uma postagem minha que já recebi até agora, praticamente logo depois de ter feito a publicação, rsrs.

Obrigado pelo elogio, Yúdice, fico feliz de continuar contando com suas visitas ao meu blog.
Eduardo disse…
Caro André,

Maravilhosa a sua exposição retrospectiva. Não tenha dúvida que me acrescentou um tanto mais de informações valiosas.

Não concordo totalmente com seu último parágrafo, mas precisarei de mais tempo para me fazer claro. Em breve voltarei a postar.

Grande abraço.

Eduardo.
Sou professora de Sociologia no Ensino Médio da rede pública. Estou procurando informações mais "concretas" quanto à Cidadania, conectando com Ética e Relações Interpessoais. Para o resumo tão esperado pelos alunos, não alcancei meu objetivo, mas para a aula expositiva... muito bom! Gostei da exposição, e sobretudo da contextualização. Afinal, Cidadania é um exercício. Sds.
marta disse…
O estado a cidadania e o mundo moderno foi explorado em seu artigo nas entrelinhas sem nenhum esforço. Parabéns
Unknown disse…
Professor André Coelho, que texto fantástico! Comecei a acompanhar seu blog mais recentemente, todas essas inquietações são brilhantes. Mais especificamente, cheguei a essa postagem quando estava efetuando uma pesquisa sobre cidadania, e seu texto traduz exatamente o que procuro. Pretendo pesquisar, a nível de mestrado em filosofia, o tema cidadania. Tenho em mente o objetivo de demostrar o desenvolvimento histórico e filosófico da concepção sobre o que significa cidadania e as dificuldades de se efetivar a cidadania ativa. Tentarei utilizar como paradigma de possível solução os estudos de Habermas. Bom, essa pesquisa ainda está completamente crua, tenho apenas ideias do que pretendo fazer e, nesse momento, estou produzindo o projeto de pesquisa. Indago da sua disponibilidade para me indicar leituras a guiarem essa jornada, me ajudaria absurdamente. Por fim, parabéns novamente pelo texto e firmo aqui meu compromisso de continuar a leitura de seu blog. Forte abraço e votos de contínuo sucesso.

Chagas Neto
(chagasmneto@gmail.com)

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