Democracia deliberativa em sociedades com déficit de mobilização da esfera pública

É sabido que a teoria política de Habermas preconiza um tipo de democracia deliberativa em que a esfera pública – aquele espaço social de formação da opinião e da vontade em que cada um intervém e contribui na condição de cidadão – desempenha um papel central na tomada de decisões políticas e na sua legitimação procedimental. Disso resulta um desafio que tal teoria lança às sociedades latino-americanas, em que a esfera pública é tradicionalmente descrita como inexistente, incompleta, distorcida ou adormecida. Supondo que seja verdadeira a tese habermasiana de que decisões políticas só podem ser legítimas se foram produto de uma deliberação democrática por parte da esfera pública e supondo, também, que as referidas descrições desfavoráveis e pessimistas das esferas públicas das sociedades latino-americanas sejam verdadeiras, ficaria no ar a pergunta sobre como seria possível dar legitimidade procedimental a decisões políticas em contextos de profunda desmobilização e apatia política.

Duas soluções parecem mais promissoras. A primeira é apelar à noção de aprendizado democrático e defender que a abertura de espaços e formas de participação política têm o condão de fazer com que se desenvolva ou se desperte uma esfera pública até então inexistente ou adormecida. A circularidade de que essa fórmula, no entanto, parece não conseguir escapar está em mostrar como seria possível a conquista de mais poder à esfera pública antes mesmo que ela exista ou seja forte o bastante para reivindicar esse poder para si. A segunda solução é recuperar a figura rousseauniana do legislador virtuoso e defender que certos grupos (trabalhadores, estudantes, intelectuais, movimentos sociais etc.) devem assumir uma posição de liderança e protagonismo na reivindicação de novos espaços e formas de participação política para a população em geral e na conscientização desta população em relação à relevância de uma participação ativa e qualificada. Esta alternativa apresenta o inconveniente de aparentemente não conseguir justificar a legitimidade do protagonismo desses grupos e não mostrar nem que tais grupos são portadores das virtudes cívicas necessárias nem que se pode apostar seriamente no exercício constante e eficaz dessas virtudes por parte deles.

Comentários

Manifesto disse…
Ao ler o Post, fui imediatamente remetido a uma passagem do livro do Habermas, "O futuro da natureza humana", no qual o autor assim descreve a sociedade hodierna:
"Obviamente, nossas sociedades estão marcadas por uma violência manifesta e estrutural. Elas estão impregnadas com o micropoder de repressões silenciosas e são deturpadas pela opressão despótica, pela privação dos direitos políticos, pela destituição dos poderes sociais e pela exploração econômica"
É evidente que esse cenário é muito mais frágil e a situação é muito mais complexa quando se fala de America Latina, devido a uma série de circunstancias políticas e históricas, que desembocam em conseqüências sociais e culturais. Presenciamos uma democracia incipiente e um povo miserável. Para ser mais preciso, um país como o Brasil, que tem a rede globo, Paulo Coelho, Jader Barbalho e para uma semana no ano para esquecer suas mazelas ao som de frevo. Ah, mobilização na esfera social,isso pode esperar, um dia de sol não!
Unknown disse…
O senhor encontra argumentos mais fortes a favor de uma ou outra dessas vias? O próprio Habermas chega a comentar a aplicação de sua teoria, não só em países com tal défict mas no próprio contexto continental?
Anônimo disse…
Caro Manifesto, obrigado por sua participação e contribuição ao debate da postagem. De fato, no Brasil a coisa é muito complicada, mas eu procuro não dar uma conotação moralizante (atribuindo ao povo brasileiro o rótulo de desengajado, desinteressado, preguiçoso, boa-vida etc.) a um problema que na verdade tem a ver com as estruturas socio-histórico-políticas deficientes e hostis ao desenvolvimento de uma cultura democrática livre e duradoura no país. Condordo, no entanto, com as críticas que você fez. Sempre digo que nossos políticos não são tão ruins quanto mereceríamos que eles fossem, dada nossa falta de mobilização de cidadania.

Ricardo, não tenho nenhuma resposta melhor, não. Quanto ao Habermas, embore ele ache que, no mundo desenvolvido, personagens como os intelectuais, os órgãos de imprensa independentes e os movimentos sociais desempenham o papel de "agitar" a esfera pública, ele não acha que vai tudo às mil maravilhas com essa esfera pública, visto que os riscos de "colonização do mundo da vida", seja pelo mercado, seja pelo Estado, e sempre por meio da ideologia e da coerção, estão sempre presentes.
Leandro Aragão disse…
Meu caro: seu blog é excelente. E você escreve tão claro, mas tão claro, que juro pra você que não vi (ou li) até hoje quem tenha vertido os complicadíssimos temas filosóficos em palavras tão simples como você. Pra melhorar, sua capacidade de argumentação é uma das melhores que eu já vi e li; está no mesmíssimo alto nível de sua clareza. Olha, seus posts sobre filosofia do direito já merecem ser compilados e virar um bom livro aplicado em toda a graduação e pós-graduação no país. E bem que você já poderia começar a pensar em escrever um livro de filosofia do direito. Precisamos de gente intelectualmente honesta como você para falar de filosofia do direito, argumentação, filosofia moral e filosofia política. Parabéns! Leandro Aragão
Anônimo disse…
Leandro, obrigado por essa enchurrada de elogios, que não é assim tão merecida, mas é bem vinda. Não sei sobre sua fluência em língua inglesa, mas, se procura por clareza e profundidade de exposição conjugadas, encontrará numerosos exemplos na literatura anglo-saxã sobre filosofia. Pode começar pelo Blackwell Companion to Philosophy (vertido ao português como "Compêndio de Filosofia", da Editora Loyola), que também lhe indicará um itinerário interessante de outros autores a explorar. Indico também o volume "Elementos de Filosofia Moral", de James Rachels (Ed. Gradiva), e "O Básico da Filosofia", de Nigel Warburton (Ed. Gradiva). Desculpe se você já conhecer os livros citados ou se já estiver num momento da sua formação filosófica pessoal que ultrapasse largamente o nível das obras recomendadas.
Leandro Aragão disse…
Meu caro: não precisa pedir desculpas, não. Apesar de conhecer alguns dos livros que você citou (menos o livro do Nigel Warburton), a menção que você fez deles é relevante. Muito relevante. Olha, ser claro é uma virtude. Infelizmente, muitos acham que a escrita obscura (cheia de lugares comuns e abundante em advérbios e adjetivos) é prova de conhecimento; principalmente no "meio" jurídico. Pra mim, a clareza é uma prova cabal de que houve esforço de compreensão, poder de sistematização, capacidade de sintetização e, sobretudo, trabalho intelectual de criação. O grande John Searle que o diga... E estamos esperando uma publicação de um livro seu sobre filosofia. No aguardo. Abraços!
Claro, Simone. Vamos nos falando. Se quiser, me adicione nas redes sociais. O link para minha página está no meu perfil no Blog.

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo