Teorias intuitivas e contraintuitivas

A fertilidade de uma teoria é inversamente proporcional à sua plausibilidade. Isso porque a plausibilidade de uma teoria nada mais é que a medida em que ela se ajusta ao senso comum (do tempo e lugar em que ela está sendo avaliada) e, portanto, a medida em que ela nada acrescenta àquilo que já se sabe ou já se pensa sobre certo assunto. Em epistemologia, é comum chamar a teoria plausível de "intuitiva".

Uma teoria "intuitiva" sobre o ciúme, por exemplo, é que, quando amamos muito certa coisa, temos medo de perdê-la, entregando-nos a fantasias sobre ameaças de que tal coisa seja tomada de nós, que nos despertam antecipadamente sentimentos de medo, de raiva e de perda. Essa teoria é "intuitiva" porque não desafia nosso senso comum sobre o ciúme (nossa "folk psychology" sobre o ciúme), sendo, pelo contrário, apenas a sua explicitação conceitual.

Duas teorias "intuitivas" sobre o aumento da criminalidade são a de que se trata de uma consequência do sentimento de impunidade e a de que se trata de uma consequência das pressões da vida moderna cumuladas com as carências da ignorância, da miséria e da falta de oportunidades. Ambas são teorias "intuitivas" porque são meras formulações dos posicionamentos já presentes no senso comum acerca dos eventos criminais (nossa "folk sociology" sobre o crime).

Ora, mas a função de uma teoria não é ser uma formulação mais clara ou mais sofisticada de nosso senso comum, mas sim o seu desmentido. O motivo por que se precisa de teorias é que nosso senso comum não dá conta dos fenômenos, quer dizer, por mais que tendamos a interpretar os fenômenos em termos das crenças de nosso senso comum e por mais que tentemos forçá-los dentro dessas crenças, eles as refutam cotidianamente com um enorme número de casos que não se encaixam nessas crenças e que se tornam absurdos ou inexplicáveis à luz delas.

Lembro ainda hoje das expressões de perplexidade de pessoas que viram o filme sobre a vida de Cazuza e que ficaram confusas diante da revelação de que é possível que alguém tenha um comportamento absolutamente desviante mesmo tendo tido uma criação bem informada num lar cercado de atenção e carinho. Ou da surpresa que causa saber que os países com maiores índices de suicídios são aqueles com maiores índices de renda per capita e de desenvolvimento humano, o que desmente as idéias do senso comum sobre a felicidade.

Ora, são exatamente essas perplexidades do senso comum diante de um mundo que não se ajusta às suas crenças que criam a necessidade de teorias. Por isso mesmo, teorias muito plausíveis não nos ajudam quase nada, porque não desafiam nosso senso comum e não têm potencial de fornecer uma explicação mais bem sucedida que a dele para os fenômenos de que se ocupa.

Teorias que têm alto potencial de fertilidade explicativa são as que assumem altos riscos de refutabilidade, ou seja, são as teorias implausíveis, aquelas a que a epistemologia chama de "contraintuitivas". Uma teoria "contraintuitiva" corre muito risco de ser falsa, mas, se for verdadeira, presta uma real contribuição ao nosso conhecimento.

Uma coisa curiosa sobre isso é que, vendo por essa perspectiva, uma teoria implausível (contraintuitiva) é melhor do que uma teoria plausível (intuitiva), o que é em si mesma uma afirmação contraintuitiva. Mais curioso ainda é que a teoria pior (intuitiva) tem mais chances que a teoria melhor (contraintuitiva) de ser bem acolhida pela comunidade científica e não científica, dada a maior plausibilidade da primeira.

É por isso que têm pouco valor nossa reação e discussão cotidiana sobre notícias como "cientistas afirmam que...". Uma vez que não submetemos a referida tese àquele que é o seu verdadeiro teste de verdade, que é o teste empírico, só poderemos examiná-la à luz de sua plausibilidade (que nada tem a ver com verdade, apenas com não surpresa, com não desacordo com nosso senso comum), deplorando, assim, teorias contraintuitivas que poderiam prestar uma real contribuição científica e dando calorosa acolhida às teorias intuitivas que reafirmem aquilo que, em nosso senso comum, já pensávamos.

Comentários

Débora Aymoré disse…
André, gostei muito desta sua postagem. Estudante que sou de filosofia da ciência, consigo reconhecer a importância de entender e discutir melhor o tema das teorias. Em que pese a sua postagem tratar de teorias intuitivas e contraintuitivas amplamente - com exemplos do senso comum e da ciência -, gostaria de um comentário seu sobre o papel da tradição, especialmente quanto as teorias ditas científicas. Será que elas não têm um papel que vai além do conservadorismo? Será que o contraintuitivo ocasiona sempre uma mudança positiva? Como avaliar as questões da relação entre a tradição e a inovação?

Abraço e parabéns pelo blog.
Anônimo disse…
Débora, obrigado por seu comentário aqui e pela referência que gentilmente fez ao meu blog no seu. Vou tentar, na medida do possível, responder à sua questão.

Foi Gadamer quem resgatou o termo "tradição" do ostracismo a que o pensamento iluminista o havia relegado, mostrando que não se trata de um amontoado de crenças irracionais que cada geração recebe da anterior e perpetua irrefletidamente, mas sim o acervo de nossas maiores conquistas e melhores respostas disponíveis até o momento, que cada geração recebe e reinterpreta à luz de sua nova situação e perspectiva. Desde então, a questão em torno do papel da tradição e da possibilidade de reelaborá-la criticamente se tornou central na interpretação de qualquer prática humana, tendo sido objeto do acalorado debate entre Gadamer e Habermas na década de 70. Contudo, no que se refere à filosofia e à história da ciência, devemos ir com calma antes de assinalar a mesma relevância à "tradição". Isso porque, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com as artes, em que a idéia de dar continuidade à tradição, mas de modo original, tem um lugar central na própria definição do domínio em questão, na ciência está em jogo a questão da explicação de certos fenômenos concretos e do sucesso empírico em sobreviver a testes experimentais. Uma teoria científica que desse continuidade à "tradição" (entendendo-a aqui como o paradigma dominante, o complexo de teorias atualmente aceitas) de modo bastante fiel e ao mesmo tempo bastante original não seria, apenas por isso, uma boa teoria científica, pelo menos não da mesma maneira que uma teoria literária que tivesse o mesmo êxito seria uma boa teoria literária. Isso porque o compromisso da ciência com o elemento empírico e experimental faz com que teorias heterodoxas (que se desviam das linhas fixadas pela tradição) possam ser mais interessantes que as ortodoxas (que seguem as linhas fixadas pela tradição) na medida em que consigam sucesso explicativo e preditivo maior. É nesse ponto que Popper está certo em falar da importância de teorias novas, de teorias que desafiem as teorias vigentes, que proponham modos absolutamente novos de ver as mesmas coisas, ou que apontem outras coisas como aquelas que seriam dignas de ver. Porque, como o compromisso da ciência está mais ligado ao êxito explicativo e preditivo que à continuidade com a tradição, a ortodoxia científica é menos valiosa que outras ortodoxias, por exemplo, em literatura, em artes, em história, em ética ou em política. Não se abordei o ponto que você queria que fosse abordado, mas, de qualquer maneira, pode dar continuidade a essa conversa.
Débora Aymoré disse…
Imagina, não foi nada, queria falar sobre o texto de Ibsen e a sua postagem ofereceu um caminho de apresentação interessante.

Com relação ao tema que estamos debatendo, achei muito interessante a informação de que Gadamer resgatou o termo "tradição", não sabia disso. Quando puder, fale mais a respeito.

De qualquer modo, entendi a sua observação de que as teorias heterodoxas tem um papel relevante para a ciência, mas não entendi a diferença que você estabeleceu com a teoria literária, ética, política etc.

Bom, além desse pedido por mais esclarecimentos, preciso fazer um comentário sobre as teorias científicas que tem me inquietado muito. Para que seja feita uma classificação das teorias em ortodoxas ou heterodoxas, é necessário um certo conjunto de critérios, que, pela sua explicação, me parece que seriam o êxito explicativo e preditivo.

Embora eu concorde que estes dois critérios são relevantes para a ciência, tenho algumas reservas quanto a sua aplicação, pois, aparentemente, é uma questão de lógica verificar em que teorias cada um destes critérios está mais ou menos presente (e, como você falou do Popper isto aumenta as minhas suspeitas de que você esteja entendendo como uma questão lógica), mas, a própria comparação entre teorias pode implicar perspectivas diferentes sobre tais critérios.

Enfim, como você entende que este processo de aplicação dos critérios ocorreria faticamente? Cada cientista em sua pesquisa avaliaria dentre as propostas teóricas a que tem mais êxito explicativo e preditivo? E no caso de haver discordância no entendimento e na aplicação dos critérios, como solucioná-lo?

Desculpa, acho que falei demais.

Abraço.
Anônimo disse…
lo que yo queria, gracias
Ana Caroline disse…
Acho que é uma das poucas postagens que me prendeu do início ao fim, inclusive nos comentários, que muito contribuíram para entendimento do assunto. Achei o texto perfeitamente compreensível e queria lhe parabenizar e agradecer pelo conteúdo.

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