Interpretação dos Contratos: Último Bastião da Interpretação Intencionalista?

Diz a dogmática tradicional dos contratos que a interpretação das cláusulas contratuais se deve fazer tendo mais em vista a intenção dos contratantes que a estrita expressão verbal de que se serviram. Isso faria da interpretação contratual (na verdade, da interpretação dos negócios jurídicos e das declarações de vontade em geral) o último campo do direito a manter um padrão “intencionalista” de interpretação. Essa me parece, contudo, uma idéia implausível, motivo por que a examinarei em conexão com os desenvolvimentos recentes da hermenêutica jurídica.

Durante muito tempo, interpretar normas foi sinônimo de buscar a intenção de seus criadores. Como se via a norma como ato de vontade, era natural que se visse a interpretação da norma como resgate da vontade que originalmente a gerara. Contudo, cedo os intérpretes se aperceberam das dificuldades e absurdos de procurar pela intenção real dos legisladores, porque esta era incerta, difusa, múltipla, contraditória, desqualificada, omissa, irrelevante, imoral ou até inexistente.

Foi nesse momento que a intenção real se substituiu pela intenção ficta: supunha-se, em lugar do legislador real e imperfeito, um “legislador racional”, quer dizer, um legislador ideal e perfeito (único, onisciente, oniabrangente, justo, econômico, preciso etc.) e se interpretavam as normas de acordo com a (mais provável) intenção desse legislador racional. Assim, havendo dúvida sobre o sentido da norma, procurava-se pelo sentido que o legislador racional teria em vista ao ter vertido a norma naqueles exatos termos e naquela exata estrutura.

Contudo, esse permanecia um método de “procura da intenção” só no nome, porque não se procurava mais por uma intenção real preexistente, mas, ao contrário, se construía a posteriori uma intenção ideal, o que é apenas outra maneira de dizer que, com o nome de “intenção do legislador”, se oferecia na verdade a “melhor interpretação do intérprete”, ou seja, a maneira mais racional de interpretar a norma no contexto geral do ordenamento e em vista de seus propósitos e de suas circunstâncias de aplicação. A interpretação permanecia “intencionalista” no nome, mas era “reconstrutivista” em essência.

Creio que, embora usando de outros termos, é isso que Dworkin quer dizer quando afirma, no capítulo “As leis” de O Império do Direito, que uma aplicação mais sistemática do método de Hermes (o juiz fictício que interpreta as normas de acordo com a intenção de seus criadores) acabaria conduzindo ao método de Hércules (o juiz fictício que interpreta as normas a partir do conjunto mais moralmente atraente de princípios capazes de explicar as decisões do passado e dar-lhes integridade). Ou seja, qualquer interpretação intencionalista que se queira viável e aceitável deve reconstruir a intenção do legislador a partir da atribuição a ele de certas razões razoáveis e relevantes – no caso de Dworkin, a partir de princípios dotados de forte apelo moral.

Essa idéia está em acordo também com o axioma da hermenêutica pós-wittgensteiniana de que não é a intenção que cria a ação, mas, ao contrário, é a ação que cria a intenção. Toda ação que se vincula a alguma prática regida por regras (um “jogo de linguagem”) ganha sentido à luz dessas regras, sendo atribuída ao agente a intenção que um conhecedor das regras provavelmente teria em mente ao fazer o que ele fez. Se, tendo querido ser irônico e inconveniente, uma pessoa que vai a um funeral diz “Meus pêsames!” à viúva, quando na verdade cometeu um equívoco, pois tinha planejado e querido dizer “Meus parabéns!”, a intenção desse agente ficará para sempre desconhecida, porque, sua frase, interpretada à luz das regras do jogo de linguagem dos funerais, onde quem diz “Meus pêsames!” quer expressar sua consternação pela morte de uma pessoa querida e sua solidariedade com a dor dos que lhe eram mais próximos, jamais poderá levar a supor a intenção de ter dito “Meus parabéns!”. Isso porque a intenção que se atribui ao agente não é aquela que estava em sua mente, mas sim aquela que é razoável supor à luz do que ele fez ou disse e das regras que regem a prática em que o agente interveio.

Ora, é essa última consideração que torna implausível a idéia de interpretar os contratos de acordo com a intenção (real) dos contratantes. Se, num contrato de compra-e-venda, os contratantes estipularam que, em caso de quebra unilateral do contrato, será paga, a título de cláusula penal, uma multa de R$5.000, quando na verdade teriam querido dizer R$50.000, seria absurdo supor que o intérprete seja obrigado a tomar “R$5.000” como significando “R$50.000”. Não porque não esteja dito “R$50.000” no contrato, nem porque se trata de valor substancialmente superior. E sim porque, no jogo de linguagem dos contratos, quem diz “R$5.000” quer dizer “R$5.000”, e não “R$50.000”, ou, o que é outra maneira de dizer a mesma coisa, a intenção que é razoável atribuir a quem, numa negociação contratual, registra uma cláusula daquele tipo é a de ter querido dizer exatamente aquilo que ela disse.

Se, contudo, a cláusula dissesse, ao final: “fixando como juízo de eleição as varas penais desse município de Belém (PA)”, seria diferente. É que, nas regras do jogo de linguagem dos contratos, não existe juízo de eleição em questões penais e, mais importante ainda, cláusulas penais, apesar do nome, são assuntos de competência do juízo cível. Sendo assim, agora se interpretará aquela cláusula como dizendo: “fixando como juízo de eleição as varas cíveis desse município de Belém (PA)”. Mas é importante notar que o que leva à mudança, nesse contexto, não é a “intenção” dos contratantes (a qual talvez fosse mesmo a de fixar as varas penais como juízo de solução da controvérsia), mas sim uma reconstrução (talvez bem pouco fiel) de sua intenção à luz das regras que regem a prática de contratos e de fixação da jurisdição competente para apreciar as lides oriundas desses contratos.

Concluindo: Nem mesmo nos negócios jurídicos e declarações de vontade a interpretação é “intencionalista”, ou pelo menos não no sentido de uma busca pela intenção real do autor da norma. O que se faz, nesses casos, é construir uma intenção ficta, à luz do texto e das regras que regem as práticas negociais e declarativas. Se ainda se quiser chamar uma interpretação assim de “intencionalista”, tudo bem, desde que se tenha em mente o tipo de “intenção” de que se está tratando.

Comentários

Menina Virgem disse…
Professor, li seu blog e gostaria de convidá-lo para para participar do espaço do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr: http://ghiraldelli.ning.com
Venha, vai gostar e somar forças.
Você vem?
Márcia, professora de filosofia
Unknown disse…
Ai, prof, vc é a pessoa mais inteligente que eu já conheci! Sinto muito orgulho por ter sido a sua aluna!
Anônimo disse…
Que isso, Aylane, assim você me deixa sem jeito... Também gostei muito de ter sido professor de vocês! Beijos
Unknown disse…
Professor só o senhor mesmo pra me salvar esse conteúdo que o senhor postou, vai me salvar....
muito obrigada!

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