Contra Ronald Dworkin: A Integridade é mesmo Fundamental?
Como todos sabem, Dworkin, desde a publicação de "O Império do Direito", chamou de "Direito como integridade" a concepção de direito que defende, a única, segundo ele, capaz de associar a busca da alternativa mais correta de decisão com a manutenção de um padrão de "integridade" no direito. Por "integridade", Dworkin quer dizer a virtude do Direito pela qual ele decide sempre segundo os mesmos princípios, só fazendo distinções entre os casos quando tais distinções podem se justificar com base em argumentos de princípio, de modo que se pode esperar de um direito assim que ele decida semelhantemente os casos semelhantes. Dworkin considera que a integridade é um corolário do "igual tratamento" e, assim, é um dos pilares do Estado de direito, tal como a equidade ou o devido processo legal. Para manter a integridade, é preciso que as decisões de casos novos mantenham uma "coerência de princípio" com as outras decisões, seja na linha vertical (temporal) das decisões anteriores, seja na linha horizontal (temática) das decisões de casos de tipo semelhante em outras matérias ou ramos do direito. Nesta postagem, quero criticar uma consequência particular da tese de Dworkin sobre a integridade: a idéia de que uma boa resposta que não tenha ajuste institucional (quer dizer, coerência de princípio com as outras decisões, ou seja, que não mantém a integridade do direito) deve ser abandonada em favor de uma resposta não tão boa que tenha ajuste institucional.
Peguemos o caso, citado por Dworkin, da Sra. McLoughlin. Esta senhora havia sofrido um infarto ao saber da notícia do acidente de automóvel de seu marido e seus filhos e queria receber por isso uma indenização do motorista que provocara o acidente. Dworkin explica que Hércules (o seu juiz imaginário, que decide de acordo com o Direito como integridade) até poderia considerar que a resposta moralmente mais correta seria de que ela não tem direito a tal indenização, de que pessoas como o motorista em questão não deveriam ser responsabilizadas por efeitos indiretos e não previstos de sua conduta. No entanto, se Hércules sabe que, noutros casos, foram concedidas indenizações, por exemplo, a pessoas que, mesmo não tendo sido vítimas do acidente, estavam no local e viram seus entes queridos serem seriamente feridos ou morrerem e percebe que não é capaz de fixar uma distinção de princípio entre a situação em que tais efeitos se produzem sobre pessoas que estão na cena do acidente e a situação em que se produzem sobre pessoas que estão fora da cena do acidente, conclui que sua resposta "moralmente mais correta" não terá ajuste institucional ao direito já vigente, porque, se de fato as pessoas não devessem ser responsabilizadas por efeitos indiretos e não previstos de sua conduta, ficaria difícil justificar por que aquelas outras indenizações foram concedidas. Assim, Hércules optará por uma resposta "moralmente menos correta", a saber, que as pessoas devem ser responsabilizadas tanto pelos efeitos diretos e previstos de sua conduta como por efeitos que, embora indiretos e não previstos, derivaram, por um nexo de causalidade, dos diretos e previstos. Optará por essa resposta, em que pese, repito, tratar-se de uma resposta "moralmente menos correta", porque do contrário estaria pondo em risco a integridade do direito com uma decisão que entraria em conflito com os princípios que já inspiraram outras respostas no passado ou noutros temas.
Ora, invertamos a argumentação de Dworkin. Se a resposta moralmente mais correta seria de que as pessoas não devessem ser responsabilizadas por efeitos indiretos e não previstos de sua conduta e se não se pode fixar uma distinção de princípio entre a situação em que tais efeitos se produzem sobre pessoas que estão na cena do acidente e a situação em que se produzem sobre pessoas que estão fora da cena do acidente, conclui-se daí que as indenizações dadas noutros casos a pessoas que, mesmo não tendo sido vítimas do acidente, estavam no local e viram seus entes queridos serem seriamente feridos ou morrerem não se basearam na resposta moralmente mais correta. Foram, portanto, decisões moralmente menos corretas do que poderiam ter sido. Ora, ao perceber isso, Hércules está diante de um caso em que manter a integridade do direito e decidir da forma moralmente mais correta estão em conflito entre si. Não vejo uma boa razão para considerar que, em casos desse tipo, se deve dar sempre a precedência para a integridade em detrimento da correção.
Imagine-se um pai que tem duas filhas, uma de 20 e a outra de 16 anos. A primeira filha, quando tinha 16 anos, lhe pedia para ir a shows de música e festas com os amigos e o pai nunca deixava, com medo da violência e das más influências sobre ela. Julgava, à época, que estivesse tomando a decisão correta. Hoje, contudo, observa que, daquele modo, privou sua filha mais velha de várias experiências importantes da juventude, tornou-a menos madura e bem preparada para a vida e produziu nela uma série de frustrações e carências sociais e, por isso, se sente culpado e arrependido de ter agido daquela forma. Agora, com a filha mais nova estando na idade de 16 anos, está decidido a agir de outra forma. Vai permitir que a filha vá aos shows de música e as festas que quiser, desde que informe aonde e com quem vai e que volte na hora que lhe for assinalada. Considera agora que essa é a atitude mais correta. Ao que parece, segundo a teoria de Dworkin, se esse pai fosse Hércules ou decidisse tal como Hércules, ele não poderia ter essa mudança de postura. Ele estaria obrigado a, para manter sua integridade como pai, abandonar a resposta moralmente mais correta de permitir que a filha vá aos shows de música e as festas que quiser, desde que informe aonde e com quem vai e que volte na hora que lhe for assinalada, simplesmente porque tal resposta não teria "ajuste institucional" com sua postura anterior com a filha mais velha, não manteria uma "coerência de princípio" com suas decisões do passado. (O exemplo não é inteiramente justo com Dworkin, porque, no exemplo do caso Brown, que mudou a interpretação, até então dominante, de que a segregação racial era compatível com a igualdade de tratamento, Dworkin reconhece a possibilidade legítima de que o judiciário tenha uma mudança de atitude semelhante à que seria intenção do pai de meu exemplo. Contudo, não é claro para mim porque tal raciocínio não se aplicaria ao caso McLoughlin.)
Imaginemos, agora, que não se trata de um pai com duas filhas de idades distintas, mas sim de um pai com uma só filha, tomando decisões em situações distintas. A filha tem 16 anos e pretende viajar, durante o próximo fim de semana, para outra cidade, um balneário próximo, na companhia de alguns amigos. O pai permitiu que ela fosse a essa viagem, porque conhece os amigos em questão e acha que são pessoas responsáveis e confiáveis. Digamos que, na quarta-feira, dois dias antes da viagem, a filha aparece com o pedido para ir a uma festa, na companhia dos mesmos amigos da viagem, mas a que irão vários outros jovens da mesma escola que eles, muitos dos quais são pessoas que o pai acha que são violentas e delinquentes. O pai, dessa vez, não permite que a filha vá. A filha argumenta que, se o pai permitiu que ela viajasse com aqueles amigos, teria que permitir também que ela fosse à festa com os mesmos amigos. O pai lhe diz que a situação agora é diferente porque a esta festa estarão presentes pessoas violentas e delinquentes. A filha (que deve ser uma jurista precoce que leu "O Império do Direito") lhe pergunta se ele acha que, durante o final de semana, eles não irão a nenhuma festa, ao que o pai responde que acha que irão, e a filha, então, prossegue, perguntando se ele acha que, nestas festas, noutra cidade, não haverá nenhuma pessoa que seja violenta e delinquente, ao que o pai responde que acha que haverá. A filha, então, ao estilo maiêutico de Sócrates, lhe diz: "Pai, então, você está se contradizendo, porque, se você me permite viajar para outra cidade, com esses amigos, sabendo que vou a festas em que haverá pessoas violentas e delinquentes, por que me impede de, na minha cidade e com os mesmos amigos, ir a uma festa em que haverá pessoas violentas e delinquentes?". O pai, então, cede ao argumento da filha, mas não do modo como ela esperava, e decreta: "É verdade, então você não vai nem à festa nem à viagem". A filha, apercebendo-se do revés de sua argumentação dworkiniana e revoltada com a decisão do pai, se tranca emburrada no quarto e fica sem nada do que queria. É interessante notar que, do ponto de vista de Dworkin, o pai teve a decisão certa.
Estou usando esses exemplos de pais e de filhas porque são suficientemente familiares para serem compreendidos sem dificuldade e suficientemente não institucionais para mostrarem como, em situações cotidianas em que, em tese, as decisões também deveriam manter certa "integridade", a ruptura da integridade é um caso comum, que não se choca com nossas intuições mais básicas sobre justiça e igualdade de tratamento. Aplicadas ao caso da Sra. McLoughlin, levariam à conclusão de que, em casos em que a integridade obrigaria a sacrificar a resposta moralmente mais correta, talvez seja moralmente mais correto sacrificar a integridade. Isso tornaria a integridade um princípio stricto sensu como outro qualquer (semelhante à legalidade, à igualdade etc.), que, como tal, poderia e deveria ser objeto de uma ponderação em vista das circunstâncias do caso concreto, incluindo, nesse caso, a circunstância do tamanho do sacrifício moral que seria necessário para manter a integridade com outras decisões do mesmo ordenamento jurídico. A integridade, afinal, só é considerada uma virtude importante porque consideramos injusto que as boas decisões tomadas em certos casos não se estendam para outros, mas não consideramos que as más decisões também devam ser estendidas da mesma maneira.
Peguemos o caso, citado por Dworkin, da Sra. McLoughlin. Esta senhora havia sofrido um infarto ao saber da notícia do acidente de automóvel de seu marido e seus filhos e queria receber por isso uma indenização do motorista que provocara o acidente. Dworkin explica que Hércules (o seu juiz imaginário, que decide de acordo com o Direito como integridade) até poderia considerar que a resposta moralmente mais correta seria de que ela não tem direito a tal indenização, de que pessoas como o motorista em questão não deveriam ser responsabilizadas por efeitos indiretos e não previstos de sua conduta. No entanto, se Hércules sabe que, noutros casos, foram concedidas indenizações, por exemplo, a pessoas que, mesmo não tendo sido vítimas do acidente, estavam no local e viram seus entes queridos serem seriamente feridos ou morrerem e percebe que não é capaz de fixar uma distinção de princípio entre a situação em que tais efeitos se produzem sobre pessoas que estão na cena do acidente e a situação em que se produzem sobre pessoas que estão fora da cena do acidente, conclui que sua resposta "moralmente mais correta" não terá ajuste institucional ao direito já vigente, porque, se de fato as pessoas não devessem ser responsabilizadas por efeitos indiretos e não previstos de sua conduta, ficaria difícil justificar por que aquelas outras indenizações foram concedidas. Assim, Hércules optará por uma resposta "moralmente menos correta", a saber, que as pessoas devem ser responsabilizadas tanto pelos efeitos diretos e previstos de sua conduta como por efeitos que, embora indiretos e não previstos, derivaram, por um nexo de causalidade, dos diretos e previstos. Optará por essa resposta, em que pese, repito, tratar-se de uma resposta "moralmente menos correta", porque do contrário estaria pondo em risco a integridade do direito com uma decisão que entraria em conflito com os princípios que já inspiraram outras respostas no passado ou noutros temas.
Ora, invertamos a argumentação de Dworkin. Se a resposta moralmente mais correta seria de que as pessoas não devessem ser responsabilizadas por efeitos indiretos e não previstos de sua conduta e se não se pode fixar uma distinção de princípio entre a situação em que tais efeitos se produzem sobre pessoas que estão na cena do acidente e a situação em que se produzem sobre pessoas que estão fora da cena do acidente, conclui-se daí que as indenizações dadas noutros casos a pessoas que, mesmo não tendo sido vítimas do acidente, estavam no local e viram seus entes queridos serem seriamente feridos ou morrerem não se basearam na resposta moralmente mais correta. Foram, portanto, decisões moralmente menos corretas do que poderiam ter sido. Ora, ao perceber isso, Hércules está diante de um caso em que manter a integridade do direito e decidir da forma moralmente mais correta estão em conflito entre si. Não vejo uma boa razão para considerar que, em casos desse tipo, se deve dar sempre a precedência para a integridade em detrimento da correção.
Imagine-se um pai que tem duas filhas, uma de 20 e a outra de 16 anos. A primeira filha, quando tinha 16 anos, lhe pedia para ir a shows de música e festas com os amigos e o pai nunca deixava, com medo da violência e das más influências sobre ela. Julgava, à época, que estivesse tomando a decisão correta. Hoje, contudo, observa que, daquele modo, privou sua filha mais velha de várias experiências importantes da juventude, tornou-a menos madura e bem preparada para a vida e produziu nela uma série de frustrações e carências sociais e, por isso, se sente culpado e arrependido de ter agido daquela forma. Agora, com a filha mais nova estando na idade de 16 anos, está decidido a agir de outra forma. Vai permitir que a filha vá aos shows de música e as festas que quiser, desde que informe aonde e com quem vai e que volte na hora que lhe for assinalada. Considera agora que essa é a atitude mais correta. Ao que parece, segundo a teoria de Dworkin, se esse pai fosse Hércules ou decidisse tal como Hércules, ele não poderia ter essa mudança de postura. Ele estaria obrigado a, para manter sua integridade como pai, abandonar a resposta moralmente mais correta de permitir que a filha vá aos shows de música e as festas que quiser, desde que informe aonde e com quem vai e que volte na hora que lhe for assinalada, simplesmente porque tal resposta não teria "ajuste institucional" com sua postura anterior com a filha mais velha, não manteria uma "coerência de princípio" com suas decisões do passado. (O exemplo não é inteiramente justo com Dworkin, porque, no exemplo do caso Brown, que mudou a interpretação, até então dominante, de que a segregação racial era compatível com a igualdade de tratamento, Dworkin reconhece a possibilidade legítima de que o judiciário tenha uma mudança de atitude semelhante à que seria intenção do pai de meu exemplo. Contudo, não é claro para mim porque tal raciocínio não se aplicaria ao caso McLoughlin.)
Imaginemos, agora, que não se trata de um pai com duas filhas de idades distintas, mas sim de um pai com uma só filha, tomando decisões em situações distintas. A filha tem 16 anos e pretende viajar, durante o próximo fim de semana, para outra cidade, um balneário próximo, na companhia de alguns amigos. O pai permitiu que ela fosse a essa viagem, porque conhece os amigos em questão e acha que são pessoas responsáveis e confiáveis. Digamos que, na quarta-feira, dois dias antes da viagem, a filha aparece com o pedido para ir a uma festa, na companhia dos mesmos amigos da viagem, mas a que irão vários outros jovens da mesma escola que eles, muitos dos quais são pessoas que o pai acha que são violentas e delinquentes. O pai, dessa vez, não permite que a filha vá. A filha argumenta que, se o pai permitiu que ela viajasse com aqueles amigos, teria que permitir também que ela fosse à festa com os mesmos amigos. O pai lhe diz que a situação agora é diferente porque a esta festa estarão presentes pessoas violentas e delinquentes. A filha (que deve ser uma jurista precoce que leu "O Império do Direito") lhe pergunta se ele acha que, durante o final de semana, eles não irão a nenhuma festa, ao que o pai responde que acha que irão, e a filha, então, prossegue, perguntando se ele acha que, nestas festas, noutra cidade, não haverá nenhuma pessoa que seja violenta e delinquente, ao que o pai responde que acha que haverá. A filha, então, ao estilo maiêutico de Sócrates, lhe diz: "Pai, então, você está se contradizendo, porque, se você me permite viajar para outra cidade, com esses amigos, sabendo que vou a festas em que haverá pessoas violentas e delinquentes, por que me impede de, na minha cidade e com os mesmos amigos, ir a uma festa em que haverá pessoas violentas e delinquentes?". O pai, então, cede ao argumento da filha, mas não do modo como ela esperava, e decreta: "É verdade, então você não vai nem à festa nem à viagem". A filha, apercebendo-se do revés de sua argumentação dworkiniana e revoltada com a decisão do pai, se tranca emburrada no quarto e fica sem nada do que queria. É interessante notar que, do ponto de vista de Dworkin, o pai teve a decisão certa.
Estou usando esses exemplos de pais e de filhas porque são suficientemente familiares para serem compreendidos sem dificuldade e suficientemente não institucionais para mostrarem como, em situações cotidianas em que, em tese, as decisões também deveriam manter certa "integridade", a ruptura da integridade é um caso comum, que não se choca com nossas intuições mais básicas sobre justiça e igualdade de tratamento. Aplicadas ao caso da Sra. McLoughlin, levariam à conclusão de que, em casos em que a integridade obrigaria a sacrificar a resposta moralmente mais correta, talvez seja moralmente mais correto sacrificar a integridade. Isso tornaria a integridade um princípio stricto sensu como outro qualquer (semelhante à legalidade, à igualdade etc.), que, como tal, poderia e deveria ser objeto de uma ponderação em vista das circunstâncias do caso concreto, incluindo, nesse caso, a circunstância do tamanho do sacrifício moral que seria necessário para manter a integridade com outras decisões do mesmo ordenamento jurídico. A integridade, afinal, só é considerada uma virtude importante porque consideramos injusto que as boas decisões tomadas em certos casos não se estendam para outros, mas não consideramos que as más decisões também devam ser estendidas da mesma maneira.
Comentários
Flávia D'Amato
Mas essa sua historia do pai diante das duas filhas (a mais velha e a mais nova) apenas seria relevante se Dworkinn aplicasse uma coerência de resultados. Mas ele não está.
Ele aplica uma coerência de princípios. Uma coerência com base na qual ele consegue inclusive criticar as decisões do passado e usar seus erros como lições para não errar novamente e para decidir melhor o caso presente, com a filha mais nova (COELHO, 2014, em um fórum sobre a Copa no Brasil, no Facebook - You know what I mean ;))).