Sobre os Transcendentais: Um Guia para os Perplexos

A invenção por Kant do conceito de "transcendental" na sua Crítica da Razão Pura responde à necessidade de encontrar uma solução para um dos problemas epistemológicos mais debatidos dos Sécs. XVII e XVIII: a polêmica entre empiristas e inatistas acerca de certas "idéias" que pareciam não vir da experiência. Vamos adotar aqui quatro exemplos: tempo, espaço, número e causa-e-efeito. Vejamos primeiramente qual era o problema que despertava a polêmica.

Falemos primeiro do tempo e do espaço. No que se refere ao tempo, todas as nossas percepções sensoriais já se apresentam desde sempre como uma sucessão de percepções, isto é, elas vêm dispostas na forma de percepções anteriores e posteriores, e é isso que nos permite perceber, por exemplo, o movimento e a mudança das coisas. Perceber o movimento de uma coisa é percebê-la primeiro no lugar X e depois no lugar Y. Perceber a mudança de uma coisa é percebê-la primeiro na forma X e depois na forma Y. Sendo assim, a "idéia de tempo" seria uma das noções fundamentais que informam nossa percepção do mundo. Já no que se refere ao espaço, todas as nossas percepções sensoriais se apresentam desde sempre como percepções de certas coisas em certos lugares, coisas que ocupam certa posição no espaço e que estão à certa distância e em certa direção umas em relação às outras. Novamente, portanto, a "idéia de espaço" também é uma das noções fundamentais que informam nossa percepção do mundo.

Falemos agora do número e do nexo de causa-e-efeito. No que se refere ao número, todas as nossas percepções sensoriais são percepções de certas coisas em certo número, isto é, de uma coisa, ou duas coisas, ou três coisas etc. Também temos percepção de que certa coisa tem agora o dobro do tamanho que tinha antes ou diminuiu para metade da velocidade que tinha antes. Seria simplesmente impossível imaginar uma percepção não numérica do mundo. Finalmente, no que se refere ao nexo de causa-e-efeito, trata-se da mais elementar de todas as conexões explicativas. Vemos uma bola de bilhar bater na outra, vemos essa outra mover-se na mesma direção em que se movia a primeira e disso já concluimos que o choque da primeira bola contra a segunda foi a causa que produziu aquele efeito e o movimento da segunda bola foi o efeito que decorreu daquela causa. É o que faz com que, se estivermos num local aberto (uma praça, uma praia etc.) e vermos uma bola rolando passar à nossa frente, imediatamente voltemos o olhar em direção ao lado de que a bola veio, à procura de uma pessoa ou de um conjunto de pessoas que a tenha colocado em movimento - a percepção do movimento da bola já é uma percepção dele "como efeito", que, portanto, haverá de ter uma "causa", que é o que procuramos ao olhar em volta. Boa parte de nossa compreensão básica sobre o mundo à nossa volta e sobre o seu funcionamento está informada pela noção de causa-e-efeito.

Pois bem, qual o problema com tais noções? O problema não está, certamente, em aceitar que elas existem, ou que elas desempenham um papel indispensável para nossa percepção e compreensão do mundo. O problema está, na verdade, em determinar qual a origem dessas idéias. Segundo os empiristas, trata-se de idéias que aprendemos da experiência, assim como aprendemos o que são rios, relâmpagos e bicicletas tendo a experiência de ver rios, relâmpagos e bicicletas. Alguém que nunca tivesse visto nenhuma dessas coisas não seria capaz de imaginá-las sozinho nem teria nenhuma dessas "idéias" em sua mente. Assim, idéias como as de tempo, de espaço, de número e de causa-e-efeito seriam idéias da experiência, adquiridas mediante a experiência de perceber coisas no tempo, no espaço, em certo número e em certos nexos de causa-e-efeito.

Essa tese empirista, contudo, não pode prosperar. Perceber o movimento, por exemplo, de um pêndulo, implica perceber que a haste se encontra primeiro num lugar e depois no outro, quer dizer, implica perceber que a haste se encontra em certo momento no tempo em certo lugar no espaço e em certo outro momento no tempo em certo outro lugar no espaço. Como teria sido possível perceber isso sem ter ainda as noções de tempo e espaço? As noções de tempo e espaço não podem ter sido aprendidas a partir das experiências sensoriais porque todas as experiências sensoriais já pressupõem as noções de tempo e de espaço, ou, o que é dizer a mesma coisa, para se ter uma experiência sensorial é preciso já ter as noções de tempo e espaço. O mesmo se aplicará, mutatis mutandi, às noções de número e de causa-e-efeito. Não é possível ter aprendido o que é o "três" ao ter visto três maçãs, três cadeiras e três livros, porque, para perceber que eram três maçãs, três cadeiras e três livros era preciso já ter a noção de número e já saber o que é o "três". Da mesma forma, para ter percebido que o choque da primeira bola de bilhar contra a segunda foi a causa do movimento da segunda era preciso já saber o que é causa e o que é efeito, como se o nexo "causa-e-efeito" fosse um esquema formal já disponível, mas vazio, em que certas percepções (o choque das bolas) se encaixam na lacuna "causa" e certas percepções (o movimento da segunda bola) se encaixam na lacuna "efeito".

Esse problema com a tese empirista era o que dava espaço para a tese de seus adversários, chamados genericamente de racionalistas, ou mais especificamente de inatistas. Tinham esse último nome porque acreditavam que essas idéias fundamentais de nossa percepção do mundo (como tempo, espaço, número e causa-e-efeito) eram diferentes de nossas percepções ordinárias de coisas externas (como rios, relâmpagos e bicicletas, e como maçãs, cadeiras e livros). Enquanto as ideías dessas coisas ordinárias eram, de fato, aprendidas da experiência, aquelas idéias fundamentais, que tornam possível a experiência, são inatas. Quer dizer, a mente do ser humano não seria de início uma tábula rasa (como propunham os empiristas), mas já teria nascido com certos conteúdos, com certas idéias básicas iniciais que tornam possível a apreensão de outras idéias mais ordinárias. Assim, aparentemente resolviam o problema das idéias fundamentais: elas são ideías inatas, nós já nascemos com elas e por isso elas já estão presentes desde nossas primeiras percepções, tornando, aliás, essas percepções possíveis.

A tese inatista, contudo, também tinha problemas. Supor que o ser humano já nasce com idéias como de tempo, de espaço, de número e de causa-e-efeito em sua mente seria supor que ele já sabe o que é tempo antes de perceber alguma coisa no tempo, já sabe o que é espaço antes de perceber alguma coisa no espaço, já sabe o que é número antes de perceber alguma coisa em certo número e já sabe o que é causa-e-efeito antes de perceber qualquer causa e qualquer efeito. Numa situação hipotética, um ser humano nascido e separado desde o início do mundo, posto numa circunstância em que não pode ter nenhum tipo de percepção saberia, ainda assim, o que é tempo, espaço, número e causa-e-efeito, o que parece bastante irrazoável. Alguns inatistas, para salvar-se dessa objeção, supuseram que as idéias inatas estavam na mente em forma de potência e eram apenas "despertadas", "atualizadas" na experiência sensorial concreta. Assim, quem jamais tivesse percebido uma única situação de causa-e-efeito não teria conhecimento da causa-e-efeito, não porque não seja uma idéia inata, mas porque seria uma idéia inata em potência, "adormecida", "imersa" na obscuridade da não-percepção, à espera da primeira percepção que a traga à tona. Uma série de teorias cada vez mais complexas e todas puramente especulativas tentavam dar razoabilidade à tese inatista, tentando explicar como ocorre essa passagem da potência ao ato, como e por que essas idéias estão em potência, como e por que são despertas pela percepção, como é possível que idéias que tornam possível a percepção sejam ao mesmo tempo despertadas pela percepção, como é possível, sem supor uma mente feita por Deus e idéias infundidas nela por Deus, que já nasçamos com idéias que, estranhamente, se adaptam perfeitamente ao mundo que ainda estamos por conhecer etc.

É no contexto dessa polêmica que Kant propõe a idéia dos "transcendentais". Os transcendentais são condições de possibilidade da experiência, quer dizer, são elementos presentes na experiência, indispensáveis para a experiência, mas que não advêm da experiência. Uma coisa A é uma condição de possibilidade para uma coisa B se, na ausência de A, B não pode ocorrer, ou, o que é o mesmo, se a presença de A é uma pressuposto necessário para a ocorrência de B. Os transcendentais seriam condições de possibilidade da experiência porque, sem eles, nenhuma experiência é possível e porque toda experiência já pressupõe necessariamente a sua presença.

Até aí tudo bem. Mas de onde eles vêm? Segundo Kant, os transcendentais são estruturas de percepção e de compreensão da realidade que pertencem à razão, e não ao mundo. Não é o mundo que é temporal, espacial, numérico e causal, por exemplo, mas é a nossa percepção racionalizada do mundo que o representa (quer dizer, o mostra para nós) como temporal, espacial, numérico e causal. Kant traça uma distinção entre a coisa-em-si ou a coisa tal como ela é (o noumenon) e a coisa tal como aparece para nós (o phenomenon), de forma que é o prenomenon que é temporal, espacial, numérico e causal, pois ele já foi estruturado pela razão para mostrar-se dessa maneira. Fazendo uma comparação bem grosseira: A sequência de imagens que aparece na tela do computador enquanto vemos, por exemplo, um vídeo, é na verdade a conversão para a forma de imagens de uma série de informações na forma de números, de tal forma que uma série numérica X faz aparecer uma bola, enquanto uma série numérica Y faz aparecer uma chama etc. Poderíamos dizer que a série de números no programa são o noumenon (aquilo que é) e a série de imagens na tela são o phenomenon (aquilo que aparece para nós). Faz sentido dizer que a bola apareceu espacialmente acima da chama, mas nem por isso se vai acreditar que a série númerica que faz aparecer a bola estava também espacialmente acima da série numérica que faz aparecer a chama. Faz sentido dizer que a bola apareceu espácio-temporalmente rolando da esquerda para a direita, mas não faz sentido pensar que a série numérica que faz aparecer a bola estava rolando da esquerda para a direita, e sim que estava associada a alguma outra série numérica que fez aparecer a bola rolando da esquerda para a direita.

Isso resolve dois problemas do inatismo: (1) Como seria possível que um ser humano que nunca tivesse tido percepção sensorial alguma tivesse, no entanto, conhecimento do que é tempo, espaço, número e causa-e-efeito? Segundo Kant, de fato não é possível. O que ocorre é que, ao contrário das idéias inatas, que eram idéias do intelecto que correspondiam a características e determinações dos objetos externos, os transcendentais são formas de apreensão e compreensão impostas pela razão e que só atuam no momento em que se percebe alguma coisa, só podendo ser percebidas como partes do phenomenon, mas não em si mesmas. (2) Como seria possível que as idéias inatas do intelecto fossem coincidentemente tão bem ajustadas aos futuros dados da percepção? Novamente, essa idéia do perfeito "ajuste" é produto do engano de supor que coisas como tempo, espaço, número e causa-e-efeito estão presentes no intelecto e no mundo, quando, na verdade, eles estão presentes apenas no phenomenon, isto é, no mundo-tal-como-aparece-para-nós, mas não (ou pelo menos não necessariamente) no noumenon, quer dizer, não no mundo-tal-como-ele-é. Assim, não há ajuste algum, o que existe é um precondicionamento de que o phenomenon se estruture dessa forma.

Resumindo: Os transcendentais seriam certas determinações da razão que atuam como condições de possibilidade da experiência, sem advir, contudo, da experiência. São percebidos em todos os phenomena (pl. de phenomenon), não porque estejam presentes nos noumena (pl. de noumenon), e sim porque são uma parte necessária de como a razão estrutura os noumena em forma de phenomena para serem percebidos por nós. Dessa forma, os transcendentais estariam presentes em todas as experiências, não porque advêm dos objetos percebidos, mas porque são impostos pela razão percipiente.

Comentários

Caro Professor André,


Tenho 2 dúvidas:

1. Os transcendentais, para Kant, são condições do sujeito cognoscente, isto é, inerentes ao mesmo, por isso, pode-se considerá-los "inatos", ou nada tem relação com inatismo?

2. Por que a "norma fundamental" de H. Kelsen é dita como transcendental?

PS: Parabéns Professor André pelo post, foi esclarecedor pra mim sobre muita coisa.
Gostaria também que o senhor postasse sobre a norma fundamental de H. Kelsen e a filosofia de Kant, pois este é um assunto ainda muito obscuro pra mim.

Muito obrigado pela postagem!
Abraços

Ricardo Evandro Martins.
Anônimo disse…
Caro Ricardo, respondendo-lhe:

1. Não tem relação com o inatismo. Não se trata de condições inerentes ao homem enquanto tal, mas sim inerentes à razão e, por conseguinte, ao homem enquanto ser racional. Não é que a mente humana organize o mundo assim; é que a razão (do homem ou de qualquer outro ser racional) organiza o mundo assim. No inatismo, existem idéias correspondentes a coisas no mundo que são possuídas antes mesmo de qualquer contato com o mundo; no transcendentalismo, existem formas relativas à forma de apreender e compreender o mundo que decorrem do modo de estruturação da razão do sujeito cognoscente.

2. A norma fundamental de Kelsen só seria transcendental porque, como a idéia de direito já implica a idéia de obrigatoriedade do direito vigente, é preciso assumir que está pressuposta no sistema jurídico uma norma que manda obedecer ao direito vigente, conferindo-lhe, assim, sua obrigatoridade. A norma fundamental seria, para Kelsen, uma condição de possibilidade do ordenamento jurídico como ordenamento obrigatório.

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