Narrativa e Realidade (III) - Ainda sobre o Aforismo 2 e o Caráter Literário da Realidade
O meu Aforismo 2 (leia no início da postagem de baixo por que estou adotando, meio a sério, meio por troça, essa forma de referência) enuncia que:
Na postagem anterior, concentrei-me em mostrar o que entendo por uma narrativa e por que acredito que a forma narrativa está presente em todos os tipos de discurso, mesmo os que parecem não narrativos, como a poesia e o argumento. Contudo, isso, mesmo que fosse verdade, pareceria autorizar apenas que eu dissesse que o discurso é estruturado narrativamente; contudo, eu digo que a "realidade" é estruturada narrativamente. A essa tese chamo "realismo narrativo", e ela se apóia numa tese anterior, a que chamo "realismo discursivo".
"Realismo discursivo": Qualquer coisa que exista fora do discurso não merece o nome de realidade. A realidade é uma construção do discurso. Isso porque uma "realidade" é um conjunto coerente e estruturado de fatos, capaz de servir como mapa de localização e critério de validação de qualquer proposição sobre o mundo. Aquilo que o mundo objetivo das sensações e o mundo subjetivo dos estados afetivos nos oferecem, exatamente porque carecem da validade e da sistematicidade que só discurso é capaz de criar, ainda não é a "realidade". Chamo-a "pré-realidade", e chamo de "pre-reais" as sensações e afetos ainda não validados e estruturados discursivamente.
"Realismo narrativo": Uma vez que toda "realidade" é criada pelo discurso e todo discurso tem, explícita ou implícitamente, forma narrativa, então toda realidade é narrativa. Caberia falar, nesse caso, mais especificamente de "realidades". A realidade criada por J. R. R. Tolkien em "O Senhor dos Anéis" é distinta da nossa realidade cotidianamente compartilhada, mas a diferença não está em que a primeira é criada pelo discurso, enquanto a segunda não é, e sim que a primeira é criada pelo discurso com um propósito ligado à imaginação (algo assim como: "toda vez que quiseres imaginar o que aconteceu, o que poderia ter acontecido ou o que deveria ter acontecido em 'O Senhor dos Anéis', deves pressupor como reais tais e tais determinações, por exemplo, que os hobbits não ultrapassam um metro de altura e gostam da calma de sua vida rotineira e que Endor originalmente era dividido em dois grandes subcontinentes etc."), enquanto a segunda é criada pelo discurso com um propósito ligado à ação (algo assim como: "toda vez que quiseres agir no mundo, deves pressupor como reais tais e tais determinações, por exemplo, que os corpos pesados caem e que, quando dotados de muito poder, os homens geralmente se tornam vaidosos e arrogantes etc."). A ficção não é o contrário da realidade, mas sim um tipo de realidade.
É claro que, nessa última explicação, também está contida a polêmica tese segundo a qual a teoria (o conhecimento das coisas que são) é auxiliar da prática, no sentido de que é conhecimento voltado para a ação. A ação em questão, é claro, não precisa ser a ação econômica ou a política. Uma teoria astronômica pode servir para a ação de observar as estrelas ou para a ação de calcular o dia da passagem de um cometa. O que não existe, a meu ver, é uma teoria "em si", que não é concebida com vista a nenhuma ação futura ou possível. Isso é simplesmente impensável. Se não sei para que ação minha teoria se presta, não sei que tipo de teoria construir. O que torna uma teoria uma boa teoria é servir bem a certa prática. Essa minha tese do primado da prática sobre a teoria, da necessária orientação do conhecimento para a ação, chamo de "pragmatismo epistemológico". Como disso se deriva a ideia de que nossa realidade cotidiana compartilhada não é "a" realidade, mas apenas "uma" realidade que se volta para a ação no mundo, o "pragmatismo epistemológico" produz um "pragmatismo ontológico". Saber qual é a realidade depende de responder à questão: "Realidade para qual propósito?". Deixando ambos os conceitos mais claros:
"Pragmatismo epistemológico": Tal como eu o uso, o termo designa a concepção segundo a qual existe uma primado da prática sobre a teoria e todo conhecimento é orientado para a ação.
"Pragmatismo ontológico": Tal como eu o uso, o termo designa a concepção segundo a qual a realidade, construída pelo discurso, serve sempre a algum propósito que se tem em vista, de modo que distintos propósitos inspiram distintas realidades.
Observação: Essa postagem me fez perceber que minha concepção narrativista da realidade é, na verdade, uma modalidade de concepção pragmatista. Daqui também extraio o palpite de que o meu pragmatismo pode ser a chave, que na postagem anterior eu dissera que seria necessária, para justificar a prioridade da narrativa sobre as outras formas de discurso: É que simplesmente a narrativa é a forma de discurso que contempla a ação em sua forma mais desenvolvida. Se todo discurso se volta para a ação, então todo discurso já contém em si uma narrativa em potencial. Acredito que essa seja uma sugestão bastante promissora.
"A realidade tal como a percebemos é toda estruturada literariamente. Não podemos fazer outra coisa que não contar histórias sobre o que é (o fato), o que pode ser (a ficção) e o que deve ser (o ideal)."
Na postagem anterior, concentrei-me em mostrar o que entendo por uma narrativa e por que acredito que a forma narrativa está presente em todos os tipos de discurso, mesmo os que parecem não narrativos, como a poesia e o argumento. Contudo, isso, mesmo que fosse verdade, pareceria autorizar apenas que eu dissesse que o discurso é estruturado narrativamente; contudo, eu digo que a "realidade" é estruturada narrativamente. A essa tese chamo "realismo narrativo", e ela se apóia numa tese anterior, a que chamo "realismo discursivo".
"Realismo discursivo": Qualquer coisa que exista fora do discurso não merece o nome de realidade. A realidade é uma construção do discurso. Isso porque uma "realidade" é um conjunto coerente e estruturado de fatos, capaz de servir como mapa de localização e critério de validação de qualquer proposição sobre o mundo. Aquilo que o mundo objetivo das sensações e o mundo subjetivo dos estados afetivos nos oferecem, exatamente porque carecem da validade e da sistematicidade que só discurso é capaz de criar, ainda não é a "realidade". Chamo-a "pré-realidade", e chamo de "pre-reais" as sensações e afetos ainda não validados e estruturados discursivamente.
"Realismo narrativo": Uma vez que toda "realidade" é criada pelo discurso e todo discurso tem, explícita ou implícitamente, forma narrativa, então toda realidade é narrativa. Caberia falar, nesse caso, mais especificamente de "realidades". A realidade criada por J. R. R. Tolkien em "O Senhor dos Anéis" é distinta da nossa realidade cotidianamente compartilhada, mas a diferença não está em que a primeira é criada pelo discurso, enquanto a segunda não é, e sim que a primeira é criada pelo discurso com um propósito ligado à imaginação (algo assim como: "toda vez que quiseres imaginar o que aconteceu, o que poderia ter acontecido ou o que deveria ter acontecido em 'O Senhor dos Anéis', deves pressupor como reais tais e tais determinações, por exemplo, que os hobbits não ultrapassam um metro de altura e gostam da calma de sua vida rotineira e que Endor originalmente era dividido em dois grandes subcontinentes etc."), enquanto a segunda é criada pelo discurso com um propósito ligado à ação (algo assim como: "toda vez que quiseres agir no mundo, deves pressupor como reais tais e tais determinações, por exemplo, que os corpos pesados caem e que, quando dotados de muito poder, os homens geralmente se tornam vaidosos e arrogantes etc."). A ficção não é o contrário da realidade, mas sim um tipo de realidade.
É claro que, nessa última explicação, também está contida a polêmica tese segundo a qual a teoria (o conhecimento das coisas que são) é auxiliar da prática, no sentido de que é conhecimento voltado para a ação. A ação em questão, é claro, não precisa ser a ação econômica ou a política. Uma teoria astronômica pode servir para a ação de observar as estrelas ou para a ação de calcular o dia da passagem de um cometa. O que não existe, a meu ver, é uma teoria "em si", que não é concebida com vista a nenhuma ação futura ou possível. Isso é simplesmente impensável. Se não sei para que ação minha teoria se presta, não sei que tipo de teoria construir. O que torna uma teoria uma boa teoria é servir bem a certa prática. Essa minha tese do primado da prática sobre a teoria, da necessária orientação do conhecimento para a ação, chamo de "pragmatismo epistemológico". Como disso se deriva a ideia de que nossa realidade cotidiana compartilhada não é "a" realidade, mas apenas "uma" realidade que se volta para a ação no mundo, o "pragmatismo epistemológico" produz um "pragmatismo ontológico". Saber qual é a realidade depende de responder à questão: "Realidade para qual propósito?". Deixando ambos os conceitos mais claros:
"Pragmatismo epistemológico": Tal como eu o uso, o termo designa a concepção segundo a qual existe uma primado da prática sobre a teoria e todo conhecimento é orientado para a ação.
"Pragmatismo ontológico": Tal como eu o uso, o termo designa a concepção segundo a qual a realidade, construída pelo discurso, serve sempre a algum propósito que se tem em vista, de modo que distintos propósitos inspiram distintas realidades.
Observação: Essa postagem me fez perceber que minha concepção narrativista da realidade é, na verdade, uma modalidade de concepção pragmatista. Daqui também extraio o palpite de que o meu pragmatismo pode ser a chave, que na postagem anterior eu dissera que seria necessária, para justificar a prioridade da narrativa sobre as outras formas de discurso: É que simplesmente a narrativa é a forma de discurso que contempla a ação em sua forma mais desenvolvida. Se todo discurso se volta para a ação, então todo discurso já contém em si uma narrativa em potencial. Acredito que essa seja uma sugestão bastante promissora.
Comentários
A respeito da realidade narrativa: em que medida se teria que falar em realidades? Cada uma das formas narrativas com intenção em efetivamente tratar a realidade acabariam, em certa medida e a depender de seu propósito, diferentes entre si. Se manter este aspecto muito aberto, considero que se pode dar abertura às formas relativistas... como o próprio risco da realidade como discurso.
Pensarei mais a respeito, se der "na telha" alguma coisa melhor, comentarei.
Parabéns pelas postagens pirantes xD
Fernanda, se eu entendi bem a ideia do André, a questão da realidade não se coloca como pressuposto da narrativa, mas como uma forma de narrativa do real possível. O que pode ser extraído a partir dos exemplos que ele utilizou do "Senhor dos Anéis" e da nossa experiência cotidiana com a "Lei da gravidade dos corpos", é que mesmo que o senso comum nos indique que o primeiro é fantasia e o segundo é o que propriamente chamamos de realidade, ambos são narrativa e, enquanto tais, estruturam certo sentido de realidade. É este sentido de realidade que faz, por exemplo, que no caso de nossa experiência cotidiana, não nos joguemos de um prédio alto, pois temos "automaticamente" o que seria a conclusão daquela premissa de realidade, ou seja, não sobraria muito do nosso corpo. Desculpe se foi um exemplo um pouco forte, mas foi o que eu consegui pensar. Os sentidos de realidade, estão, assim, conectados com a ação, como o André também afirma.
Bom, André, com relação à sua postagem, confesso que anotei algumas ideias para não me perder na relação de conceitos que você estabeleceu. Mas, veja, a postagem está bem estruturada. De qualquer modo tenho alguns comentários a fazer:
(1) com relação a definição de realidade discursiva como conjunto coerente de fatos, precisaria analisar o que significa essa coerência, pois isto tem ligação com o pragmatismo depois. Por exemplo, o discurso do louco é visto pelo são como incoerente, no entanto, partindo da sua premissa narrativa ambos estruturam a realidade. O que retoma, em certo sentido, a pergunta da Fernanda, pois seria tanto a forma de discurso do louco como a do são igualmente válidos?
(2) com relação ao pragmatismo epistemológico, relacionado, se entendi bem, às ideias de mapeamento e ação no mundo, acho que alguns discursos estão mais próximos e outros mais distantes desta caracterização pragmática. Por exemplo, não consigo ver muito claramente como a poesia estrutura uma realidade tal, que faz com que o indivíduo aja desta ou daquela maneira. Só estou chamando a atenção para isso, pois é uma pressuposição de fundo que, no argumento, seria aplicado a todas as formas narrativas.
Tenho outros comentários, mas acho melhor esperar um pouco e ver as suas respostas.
Saudade. Também temos saudade do que não existiu, e dói bastante.
Sofrimento. A educação para o sofrimento, evitaria senti-lo, em relação a casos que não o merecem.
Tempo. Tempo disso, tempo daquilo; falta o tempo de nada.
Vontade. A minha vontade é forte, mas a minha disposição de obedecer-lhe é fraca.
Todas elas têm o propósito imediato de fazer pensar diversamente do que se costuma pensar, produzindo, no entanto, um sentimento de familiaridade neste novo desconhecido que como que o confirma perante a subjetividade.
"Sofrimento" recupera a lição estóica de não sofrer pelo que não se precisa e convida a pensar sobre quais são as coisas que realmente valem o nosso sofrimento. O poema é uma exortação a promover sua própria autoeducação para o sofrimento.
"Tempo" brinca com a passagem de Eclesiaste 3:1-8 segundo a qual:
"Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo para a paz."
O poema brinca com a expressão "tempo para tudo" e adverte o esquecimento do "tempo para nada", quer dizer, a necessidade do ócio, que é fonte de toda lembrança, de toda imaginação, de toda reflexão, de toda crítica e de toda criação. Exorta ao cultivo do ócio.
Finalmente, "Vontade" brinca com a expressão "força de vontade", normalmente vista como capacidade de levar a realização aquilo que se quer, e lhe empresta um sentido novo, de "vontade intensa", que não se realiza não por não se intensa o bastante enquanto vontade, mas porque a vontade não é em nós soberana, tendo que dividir espaço com nossas disposições, quer dizer, com aqueles elementos do caráter que a vontade não pode controlar como um tirano, mas apenas persuadir como um amante. Drummond recupera Aristóteles, Epicuro, Pascal e Spinoza, os defensores de uma educação da alma pelo amor ao bem, em vez da imposição do bem goela abaixo da personalidade. O poema nos exorta a atentar mais para o papel de nossas disposições, em vez de sobrecarregar a vontade como órgão exclusivo de realização de nossos propósitos.
Além disso, não quero dizer que todo poema tem propósitos tão práticos quanto os destes que citei. Mas todos têm sempre algum propósito em termos de ação, mesmo que a ação em questão seja imaginativa, rememorativa, afetiva ou lúdica, como "conceber de forma nova o que parecia velho" ou "tornar dizível o sentimento indizível" etc. (Entendo que isso talvez amplie de modo indesejavelmente amplo o conceito de "ação", mas acho que a defesa de um pragmatismo em que "ação" signifique "ação exterior no mundo" teria efeitos muito mais nefastos.)
A respeito do comentário ao meu comentário: acho que entendi sua explicação. Passaria então a uma necessidade de explicar que 'realidades narrativas' são válidas para determinadas circunstâcnias? Ou melhor, se duas teorias científicas tentam explicar de formas diferentes o mesmo fenômeno, acabam por dar resultados distintos(seja por utilizarem outros referênciais ou partirem de pressupostos diversos etc.). Elas ainda sim pretendem estudar um mesmo objeto e em favor à uma mesma orientação prática. No âmbito da validade, como se lidaria com a "realidade narrativa" estabelecida por cada teoria?