Narrativa e Realidade (IV): Aforismo 2

Após a considerações da postagem anterior, meu "Aforismo 2" poderia ficar assim:

2. A realidade tal como a percebemos é toda estruturada literariamente. Não podemos fazer outra coisa que não contar histórias sobre o que é (o fato), o que pode ser (a ficção) e o que deve ser (o ideal).

2.1. Realismo discursivo-pragmático: A realidade é uma construção do discurso em vista de um propósito prático.

2.1.1. Realismo discursivo: Não existe realidade fora do discurso. Sensações e afetos são "pré-reais". A realidade é um mundo coerente criado pelo discurso, capaz de servir de mapa de localização e teste de validade de proposições sobre o mundo.

2.1.2. Pragmatismo epistemológico: Não existe conhecimento em si. A prática tem prioridade sobre a teoria e todo conhecimento é orientado para uma ação futura ou possível, que lhe fornece o critério de avaliação.

2.1.3. Pragmatismo ontológico: Não existe realidade em si. Toda realidade é construção em vista de certo propósito. Há tantas realidades quantos propósitos existam que exijam a construção de uma.

2.2. Narrativismo discursivo: Todo discurso tem forma narrativa, implícita ou explícita.

2.2.1. Narrativa é um discurso composto de certos elementos: narrador, enredo, personagens, espaço e tempo; e construído segunda certa estrutura: apresentação, conflito, clímax e desfecho.

2.2.2. Existem três tipos de discurso: Narração, poesia e argumento.

2.2.2.1. Narração é o discurso que se apresenta explicitamente na forma de uma narrativa. É uma narrativa assumida.

2.2.2.2. Poesia e argumento não são narração, mas são narrativa. Neles, alguns elementos da narrativa se veem ocultados ou "neutralizados".

2.2.3. Se toda realidade é construída pelo discurso e todo discurso tem forma narrativa, a realidade tem sempre forma narrativa.

2.3. Pragmatismo antropológico: O homem é um ser orientado para a ação. Daí a prioridade da prática sobre tudo mais.

2.4. Pragmatismo narrativo: A prioridade da prática explica a prioridade da narrativa. É que a narrativa é o discurso que se centra na ação. Assim, todo outro discurso contém uma narrativa em potencial. A realidade, enquanto construída discursivamente, é ao mesmo tempo o universo de todas as narrativas possíveis e a condição de plausibilidade de todas as narrativas.

(A forma dos aforismos já está começando a parecer-se mais com a dos aforismos do Tractatus Logicus-Philosophicus que com a dos aforismos das Investigações Filosóficas, o que não deixa de ser uma coisa preocupante.)

Comentários

Fernanda disse…
Oi!! COntinuando as ótimas postagens \\o\

Neste comentário me concentrarei em uma passagem:

[quote]
2.2.2.2. Poesia e argumento não são narração, mas são narrativa. Neles, alguns elementos da narrativa se veem ocultados ou "neutralizados".
[/quote]

Como assim? Quais são os elementos narrativos? Quais os elementos narrativos a poesia e o argumento contém? E quais deles sao ocultos ou "neutralizados"?

E que tipo de exemplos podem ser dados a respeito?

Acredito que esta parte demande diversas considerações neste sentido. Ainda mais profundos que os que já foram dados nas postagens anteriores.

Beijos!
Débora Aymoré disse…
Olá, novamente. André, como é uma postagem relacionada mais diretamente à anterior, algumas questões que levantei lá na postagem III reaparecem aqui. Então, vou esperar um pouco antes de escrever aqui também. Queria só fazer um destaque, pois nas duas postagens (III e IV) você termina com considerações de autopercepção a partir da descrição mais clara das suas ideias. Bom, se puder comentar mais sobre a da postagem IV e a proximidade com o Tractatus seria legal.

Obrigada.
Anônimo disse…
Bom, minha teoria da neutralização (que posso vir a chamar também de invisibilização, ocultação, desfocamento e recalque, ou posso usar alguns ou todos esses nomes para tipos específicos do mesmo fenômeno, ainda não sei) funciona mais ou menos assim. Toda vez que se quer dar a um discurso uma forma diversa da narração, recorre-se a neutralização de certos elementos (narrador, enredo, personagens, espaço e tempo) ou partes (apresentação, conflito, clímax e desfecho) da narrativa (sobre a neutralização das partes, ainda estou meio incerto). Assim, temos:

- neutralização do narrador: nos discursos que se apresentam como expressão objetiva da realidade.

- neutralização do enredo: nos discursos que se apresentam como descritivos, constatativos, mas também nos aforismos, nas normas etc.

- neutralização das personagens: quando se parece estar falando apenas de coisas ou de fatos.

- neutralização do espaço e do tempo: quando se quer apresentar o discurso como uma verdade que paira acima de qualquer determinação possível.

Disso tudo já se depreende que o discurso da ciência é, de todos, possivelmente o discurso mais neutralizador de todos. Aliás, tenho intenção de mostrar que discursos especialmente persuasivos (ciência, religião, poesia, retórica etc.) o são na medida em que fazem competentemente a neutralização de elementos e partes da narrativa que os sustenta. Seria essa uma teoria de tom psicanalítico e de viés cínico? Espero que não.
Anônimo disse…
Sobre o comentário de uma relação com o Tractatus, foi apenas devido às numerações (2, 2.1, 2.1.1 etc.) atribuídas aos aforismos. É uma relação preocupante, porque, no primeiro Wittgenstein, essa numeração é sinal de uma concepção geometrizante, capaz de reduzir todos os princípios a axiomas simples, progressivos, cumulativos e exaustivos, num ideal de sistema oniabrangente e autoevidente. A preocupação fica por conta da suspeita, psicanalítica, de que o uso da numeração seja um "ato falho" que revele o mesmo tipo de pretensão vaidosa, presunçosa e megalômana.
Fernanda disse…
Ah, gostem muito da explicação a respeito de sua teoria da neutralização!! Muito obrigada!

Pense na divisão em tópicos numerados como forma de facilitar a construção do pensamento e da compreensão dos demais, OK? XD

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