Sobre a profundidade II

Falar sobre a profundidade revelou-se, como eu já esperava, mais difícil do que parecia à primeira vista. Vejamos a que conclusões cheguei na primeira postagem. Tomei como ponto de referência para examinar a profundidade os ditos profundos. Afirmei que profundo não é o mesmo que verdadeiro, pois certos ditos se manteriam profundos mesmo que fossem falsos. Afirmei ainda que profundo não é o mesmo que belo, pois certos ditos revelam algo atroz, sem deixarem de ser, contudo, profundos. Concluí que profundos eram os ditos que despertavam sucessivamente a perplexidade e a adesão do espírito. Contudo, alguns novos elementos precisam ser adicionados.

O comentário da Débora à minha postagem anterior mostrou que eu tinha que ter deixado mais claro com que tipo de intenção analítica me acercava do tema. Corrijo agora essa falta: Minha intenção é fazer, ao mesmo tempo, uma analítica do profundo (uma análise do que queremos dizer quando qualificamos algo como profundo) e uma fenomenologia do profundo (uma descrição, do ponto de vista do sujeito, da experiência da profundidade). Se notaram nisso certa hesitação entre filosofia analítica e filosofia continental, notaram certo. O que me recuso a fazer é uma análise objetivista, que tentasse dizer o que é o assim chamado profundo, independentemente de nossa experiência subjetiva, e se ele merece ou não o estatus que lhe atribuímos. Isso não quer dizer, Débora, que sua sugestão a respeito da "possibilidade de criação de sentido" não seja bem relevante. Espero que o parágrafo seguinte mostre que ela é, de fato, bem relevante.

Chamei de perplexidade aquela perturbação inicial do espírito diante daquilo que, porque foge do óbvio, lhe causa espanto e hesitação. Nisso reside a característica do profundo de ser não-trivial. Disse também que o profundo reunia coisas que estavam à primeira vista muito distantes, mas que, uma vez reunidas, se tornavam indissociáveis. O profundo fornece sínteses improváveis de serem feitas e impossíveis de serem desfeitas. Isso devo precisar melhor. O profundo não é analítico, mas é sempre sintético, quer dizer, reúne coisas que não estão já contidas ou já implícitas uma na outra. Mais ainda, o profundo realiza sínteses improváveis, pois reúne o que o senso comum separa. Na outra postagem dei esse exemplo: "Não há recompensa maior que ser virtuoso". Ora, virtude e recompensa são normalmente separados. O moralista diz: Onde há recompensa, não há virtude (no sentido de que a virtude tem que ser desinteressada). O pragmático diz: Onde há virtude, não há recompensa (no sentido de que os que agem virtuosamente costumam sempre levar a pior). A profundidade do dito "Não há recompensa maior que a virtude" está em, no tempo de uma frase, reunir as duas noções que o senso comum divorcia. De repente, recompensa e virtude podem ser pensadas não apenas como conciliáveis, mas como idênticas. A virtude é, em si, sua própria recompensa. É dessa forma que a sugestão da Débora, nos comentários da postagem anterior, deve ser acatada. O profundo fornece, sem dúvida, a possibilidade de criação de novos sentidos, ou, para ser mais preciso, a possibilidade de experimentar sentido no que antes não tinha sentido. Isso reforça minha tese anterior do casamento entre perplexidade e adesão. A adesão vem da forte experiência de sentido, enquanto a perplexidade vem do fato de que aquilo que agora se experimenta como fazendo todo o sentido, até há pouco não fazia sentido algum.

Agora, seguindo a sugestão da Fernanda, preciso examinar melhor as relações do profundo com o verdadeiro, o belo e o bom. Parece-me que a experiência de perplexidade é o que aproxima o profundo do belo (para ser mais exato, do originalmente belo, do genial), enquanto a experiência de adesão do espírito é o que o aproxima do verdadeiro (para ser mais exato, do aparentemente verdadeiro, do verossímil). Mas, para captar a diferença, basta comparar um dito profundo como "Não há recompensa maior que a virtude" como um dito belo como "Amor é fogo que arde sem se ver". Os dois fazem sínteses improváveis. Mas, enquanto o primeiro parece revelar algo de suma relevância que até então nos escapava, o segundo parece apenas expressar de modo prazeiroso um paradoxo conceitual. "Amor é fogo que arde sem se ver" não é nenhuma revelação sobre o amor, mas apenas uma extraporação poética da metáfora, já apropriada pelo senso comum e tantas vezes repetida, de que o amor arde como fogo. Quando o poeta percebe que o fogo gera uma chama invisível, enquanto o amor, sendo sentimento, é naturalmente invisível, encontra a chave para a composição de "Amor é fogo que arde sem se ver". Mas "Não há recompensa maior que a virtude" não é poesia. Pode soar belo, emprestando-lhe, assim, algum valor poético. Mas não é na beleza, como possibilidade universal de prazer, que reside seu valor. Ela parece revelar algo que escapa ao saber cotidiano. Nisso ela se assemelha à verdade, transcendendo o belo.

Se compararmos, agora, o dito "A moral não nos garante felicidade, mas nos torna dignos de felicidade" com o dito "Os homens não evitam o crime pela virtude, mas antes pelo medo", ambos também têm algo em comum, na medida em que parecem revelar verdades dignas de serem notadas. Mas, enquanto o primeiro desafia o senso comum, o segundo apenas o confirma. O segundo não desperta perplexidade, mas apenas adesão. O primeiro é que desperta ambas as coisas. Se isso não basta para distinguir entre o profundo e o verdadeiro, então vejamos mais uma coisa. Se dois enunciados se negam reciprocamente, então é impossível que sejam verdadeiros ao mesmo tempo. Por isso, o verdadeiro não admite que os contraditórios sejam ambos aceitos. Mas o profundo, pelo contrário, o admite. Ditos como "A virtude nos coloca acima da natureza e é a prova de nossa imortalidade" e "A única imortalidade concedida ao homem é a lembrança dos seus grandes feitos" são ambos profundos, embora contraditórios entre si. Se o primeiro for verdadeiro, o segundo é falso, e vice-versa. No que diz respeito à verdade, só um deles a pode ter. No que diz respeito à profundidade, os dois a têm na mesma medida. Se são ambos profundos, mas pelo menos um deles tem que ser falso, então a profundidade é definitivamente distinta da verdade.

Sobre a relação entre o profundo e o bom, ainda tenho que pensar melhor. Se chegar a alguma conclusão relevante, volto a escrever aqui.

Comentários

Fernanda disse…
Muito obrigada pela nova postagem! Ficou mais claro o que o senhor quis dizer com a proximidade (e o limite dela) do profundo com os outros elementos (verdadeiro e do belo). Estarei esperando o comentário a respeito do bom.

A respeito do verdadeiro e do profundo, se estaria afirmando em seu comentário que o profundo por vezes pode ser verdadeiro, no entanto dependeria de maior comprovação para além de ser algo profundo?

E acredito ter alguma diferença entre a adesão feita pela proximidade com o verdadeiro e a adesão feira a partir do pano de fundo do senso comum (que gera uma adesão sem uma reflexão mais profunda e baseada em pré-concepçoes, algo assim). No entanto não consegui construir muito bem esta idéia...

Estou gostando de ver seu blog mais movimentado! =D
Débora Aymoré disse…
André, acho que entendi melhor a perspectiva da qual você parte para analisar a profunidade. Parece-me que, por um lado, a profundidade é uma negação de um "sentido comum" que temos com relação às coisas e, por outro lado, ela provoca a adesão pois, mesmo quando unindo elementos aparentemente separados na realidade, mostra que a sua união é possível, sendo dotada, portanto, de sentido. Bom, se eu compreendi corretamente, gostaria de dizer que esta ideia parece-me muito bela, no sentido de que une os aparentemente opostos, e que me causa certa perplexidade observar a possibilidade de que aquilo que de algum modo afronta o senso comum, ainda assim é levado adiante por ele. Infelizmente não tenho neste momento um motivo que me pareça suficiente para justificar esta relação antagonismo/conciliação que está na base da manutenção dos ditos profundos. No entanto, em epistemologia costuma-se separar o que seria um sentido comum dos termos e o sentido técnico dos termos. Como a sua análise do profundo é a análise do significado de um termo, estou apresentado esta distinção pois parece que seria interessante perguntar em que nível de argumentação está a sua análise. Eu entendo que mais uma vez coloco uma pergunta que questiona sobre os fundamentos da sua análise do profundo, mas acho que poderia ser útil pensar em níveis diferentes de sentido deste termo. Quero dizer o seguinte: sua análise do profundo utiliza ditos costumeiramente repetidos, apesar de propagandearem elementos que usualmente estão separados e cuja racionalidade estrita de sua união poderia ser problematizada, como fonte do sentido de profundidade. No entanto, se perguntarmos para uma pessoa porque ela diz que "Amor é fogo que arde sem se ver", talvez ela não consiga justificar o uso do dito, ou seja, ela pode ser um usuário não consciente da profundidade que se está atribuindo àquele dito. No entanto, ela o usa. Assim, talvez sua análise do profundo se coloque em um metadiscurso, pois, mesmo que partindo do uso (ditos), assume uma certa interpretação da profundidade. Não que sua definição até aqui me pareça ruim, como disse, considerei-a bela, e talvez por isso eu esteja tendente a aderir à ela, mas estou preocupada com a questão da atribuição (ou não) de múltiplos sentidos de profundidade. Além disso, como fenomenologia do profundo, não ficou claro para mim se ela alcançaria seu objetivo através do sentido individual ou coletivo. Obrigada e até breve.

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