Lost: The End
Com diversos e massivos spoilers. Débora e Fernanda: Não leiam até terem visto o fim da série!
Escrevi um comentário no Blog Arbítrio do Yúdice, mas gostaria de torná-lo disponível para todos aqui no meu Blog. Dedico essa postagem também ao Davi Garcia e à Juliana Ramanzini, que mantêm o Blog Dude, we are lost, que é, na minha opinião, o que contém os comentários mais bem escritos e penetrantes dos episódios de Lost e que, ao longo desses seis anos, me ajudou bastante a ganhar perspectiva sobre o quadro e o sentido geral da maior série de todos os tempos. Reproduzo abaixo o que escrevi ao Yúdice.
Caro Yúdice, antendendo aos seus apelos, venho me manifestar a respeito de Lost. Vou dividir esse comentário em duas partes. Na primeira, tentarei relativizar sua afirmação, feita na postagem Lost: O Fim, da última sexta, 21 de maio de 2010, de que os rumos tomados pelas últimas temporadas do seriado haviam sido decepcionantes em vista das expectativas criadas nas primeiras temporadas; na segunda, tentarei expressar a minha compreensão acerca de The End, o intrigante e surpreendente episódio final do seriado. Como se pode pefeitamente adivinhar, os comentários que seguem são recheados de spoilers para quem ainda não viu os episódios a que eles se referem.
PRIMEIRA PARTE
Um dos pontos que mais me chamou atenção positivamente na sua postagem foi o uso que você fez, de modo bastante prudente, de marcadores de subjetividade, como "eu esperava que" e "eu cheguei a pensar que", pois eles indicam que seu referencial de comparação do rumo que a série tomou é o rumo que você, pessoalmente, esperava e gostaria que ela tivesse tomado. Desde já destaco que, se o seu parecer final de que "Lost é isso. Decepcionante" for expressão apenas de sua frustração pessoal com a série, no sentido de que o que veio à tela não foi o que você mais teria gostado, ele é, enquanto tal, irrefutável. O que tentarei, sim, refutar é a ideia de que aquilo que veio à tela é decepcionante. E isso me parece expresso na sua postagem quando você fala que "abdicando de todas as questões científicas ou pseudocientíficas que faziam dele um entretenimento inteligente, Lost foi reduzido a uma clássica e singela batalha entre o bem e o mal, personificados num messiânico Jacob e em seu irmão, uma espécie de Satanás". Nisso me parece claro que a opção dos produtores por um viés religioso fez com que, aos seus olhos, a série abdicasse do que a fazia "inteligente", no sentido de intelectualmente provocativa, e abraçasse uma via "clássica e singela", no sentido de clichê e maniqueísta. Disso discordo frontamente, pelos motivos que vou elencar agora:
i) A estratégia inicial dos produtores de Lost para atrairem o enorme interesse de uma massa de telespectadores com as mais diversas preferências televisivas e visões de mundo foi plantar no seriado um conjunto de personagens e elementos tão variados que desse margem para todos os tipos possíveis de expectativas de desfecho para a trama de mistério. Entre os vários temperos postos na receita do seriado, estava o elemento científico das estações, dos números e da Dharma Iniciative. Mas, ao lado desse elemento, sempre estiveram presentes muitos outros. Sempre esteve presente o elemento romântico de casais existentes e possíveis; o elemento dramático da ilha como possibilidade de redenção para pessoas cujas vidas eram fracassadas em algum ponto relevante; o elemento filosófico de como é possível a convivência entre os diferentes numa situação de escassez de recursos e de ausência do Estado; e também o elemento místico, de um assustador e inexplicável monstro de fumaça que ameaçava os losties, de uma possível configuração do destino que havia reunido todas aquelas pessoas, de uma ligação mais íntima com a ilha da parte de John Locke. Mas essa vasta abertura do início não poderia ser mantida até o final a não ser sob o preço de não resolução dos mistérios principais, alternativa que, em vez de satisfazer a todos, provavelmente despertaria fortes sentimentos de frustração e traição e não satisfaria a ninguém. Para darem alguma resposta final, os produtores tinham que fazer alguma escolha entre os diversos rumos possíveis que a trama poderia seguir. Era preciso algum fechamento.
ii) A escolha que os produtores fizeram pelo elemento religioso não trai, portanto, a proposta inicial do seriado. Não trai porque esse elemento sempre esteve presente na trama como um dos vieses possíveis de abordagem da história. Quando os produtores dão ao primeiro episódio da segunda temporada o nome de Man of science, man of faith, encarnando os dois pólos nas personagens de Jack e Locke, fazem uma clara indicação dos dois caminhos que eram possíveis para o seriado dali por diante. As duas célebres frases daquelas personagens no episódio: "Everything happened for a reason" e "I think you are mistaking coincidence for fate" anunciam desde ali os dois possíveis desfechos da narrativa. Assim, não se pode alegar que Lost se "desviou" daquele que era o seu espírito inicial, nem que "enganou" aqueles que esperavam por respostas científicas, muito menos que nunca acenou desde o início com a possibilidade pela qual acabou optando em seu final. E mais: Sempre houve os expectadores que eram "men of science", como Jack, você e eu, e sempre houve os que eram "men of faith", como Locke. Esses grupos tinham expectativas radicalmente opostas sobre o destino do seriado e, qualquer que fosse esse destino, as expectativas de pelo menos um desses grupos de expectadores seria frontamente contrariada. Era inevitável.
iii) O motivo pelo qual os produtores optaram pela visão do "man of faith" foi exposto em inúmeros epidódios, mas eu gostaria de destacar a sequência de episódios-chave centrados na personagem Desmond Hume: "Flashes before Your Eyes" (S3E8), "The Constant" (S4E5) e "Happily Ever After" (S6E11), que construíram a ideia de que havia, sim, um destino, de que o que era capaz de manter a unidade de cada personagem ao longo do tempo era a presença de uma constante para cada um e de que essa constante era uma pessoa amada (O fato de que a constante do descobridor da ideia de constantes, Daniel, capaz de despertá-lo da ilusão da realidade paralela, fosse, ao contrário do que ele supunha, Charlotte, e não Desmond, como anotara em seu caderno, confirma isso). Tudo isso apontava que Lost era no fundo uma série sobre amor, coisa que se confirmou em The End, como depois vou defender. E o que tem isso a ver com o elemento religioso? Tem a ver, porque os produtores optaram pela via que lhes permitiria passar uma mensagem sobre o que é essencial na vida no fim das contas. Proteger a ilha é apenas uma forma de proteger as pessoas, e isso volta a se expressar na frase de Ben para Hurley para lhe dizer como defender a ilha: "I think you have to do what you do best: protect people". Vou desenvolver melhor essa ideia ao falar de The End.
iv) Penso que o viés religioso adotado pelo seriado a partir da quinta temporada também não pode ser acusado de desinteligente, clichê e singelo. E lembre-se que eu sou ateu e tive as mesmas expectativas que você no início de Lost. Primeiro, Jacob não era inteiramente bom, nem seu irmão era inteiramente mau. Ambos eram produtos opostos da educação de uma mãe problemática, que se tornou perturbada, manipuladora e assassina pelo peso do fardo de guardiã da ilha. A lição de Across the Sea não é de que o segredo da ilha é uma luz dourada no fundo de uma caverna misteriosa, e sim de que Jacob e seu irmão são, no fundo, apenas pessoas, momentos da história da ilha, uma história que nem começa nem termina com eles. Por que a mãe dos dois diz "Thank you" ao filho que a matou em Across the Sea? Pelo mesmo motivo por que Jacob não resiste ao ataque de Ben em The Incident: Ele queria se livrar do fardo de seu cargo. Por que a mãe sequestra os dois filhos da náufraga que ela depois mata? Pelo mesmo motivo por que Jacob visita e toca cada um dos futuros losties: Ele precisava de candidatos para substituí-lo, sem o que ele seguiria com seu fardo. Jacob também é manipulador, também é fraco e também é solitário e arrependido do que fez a seu irmão. Ele não é messiânico, mas apenas heroico na sua capacidade de autosacrifício como guardião da ilha, um cargo que ele procura honrar, embora se ressinta de não ter podido escolher, pois lhe foi imposto. Seu irmão não é mau. Ele é apenas um "men of science", que acredita na liberdade, que quer conhecer o que existe fora da ilha e que está disposto a tudo para livrar-se do triste destino que as escolhas de sua mãe acabaram por impor-lhe. Não há nada de satânico nele. Se há nele algo de intrinsecamente mau, é apenas sua inescrupolosidade diante de mentir, enganar, manipular, ameaçar, ferir e matar para atingir seus objetivos, algo que se viu, em maior ou menor medida, também em outras personagens, como Ben, Sawyer e Michael. Não há uma oposição "singela" entre bem e mal, e sim uma oposição complexa entre desejo de liberdade a quase qualquer preço e missão de proteção a quase qualquer preço.
SEGUNDA PARTE
Agora sobre o intrigante The End. Fixando em primeiro lugar que, a julgar pela conversa final entre Jack e Christian, a realidade na ilha era uma realidade em vida, mas a realidade paralela era uma realidade post mortem, disso algumas coisas precisam ser extraídas. A primeira é que, então, Lost não era um seriado sobre como as personagens entenderiam ou protegeriam o segredo da ilha, mas sim sobre como elas se conectariam umas com as outras de modo significativo, conexão essa que se revela, portanto, como o verdadeiro "segredo" da ilha. Isso porque, na realidade paralela, como disse Desmond, "Nothing of this matters": Não há mais ilha, homem de preto, avião, Dharma, os Outros, nem nada do tipo. Só o que há são as pessoas e as conexões essenciais que elas estabeleceram entre si. A segunda coisa é que não houve "happy endings" em Lost. O fato de que os casais ideais só se reencontram na realidade post mortem mostra que, em vida, nenhum deles pôde ter uma longa e duradoura convivência com seu parceiro, mas a curta convivência que tiveram na ilha bastou para marcar suas vidas e converter um na constante do outro, capaz de despertá-los todos de sua não lembrança. A cena final de Lost é trágica ao estilo grego: O heroi, deitado no solo da cena inicial do seriado, prestes a morrer em autosacrifício, sozinho a não ser pela tocante companhia do cachorro Vincent, contempla no avião que passa no céu o cumprimento de seu destino de salvar a ilha para assim salvar as pessoas, sem, no entanto, ser bem sucedido em salvar-se a si mesmo, a não ser no sentido simbólico de uma redenção martírica. A mensagem dos produtores: Em vida, se alguma felicidade há, ela está na ligação entre as pessoas, que geralmente é curta e precária, mas que tem chance de ser tão significativa a ponto de que, se algum destino houver para depois da morte, tenhamos razão para esperar que seja ao lado desses que conseguiram tocar nosso coração e dar sentido a nossa existência. E isso para mim foi puro Lost: No fim, os mistérios eram desimportantes, importantes eram as pessoas, suas vidas, suas experiências e seus encontros. E isso dá a Lost um desfecho e um sentido que são completamente diferentes daqueles que eu tinha esperado e que eu teria escolhido, mas que a tornam a maior série de TV de todos os tempos e merecedora eterna do respeito e da admiração de todos que gostem de um drama humano inspirador e bem construído. E, se a série teve que me frustrar para tornar-se eterna, considero a minha frustação apenas mais um dos sacrifícios necessários que a ilha demandou. É essa a minha opinião.
UM COMPLEMENTO
Na minha opinião, um dos motivos pelos quais o herói-mártir é Jack, e não Locke, é representar justamente a transição do "man of science" para o "man of faith", que aponta, por sua vez, para a esperada transição das expectativas e pontos de vista daqueles que estavam ao lado de Jack para se converterem, aos poucos, para o lado de Locke. A série convida o "man of science" que está assistindo a fazer a mesma mudança de horizontes do protagonista da história, pois importante não é apenas que existam aqueles que, como Locke, já naturalmente creem no que é essencial, mas sim também que aqueles que, como Jack, inicialmente não creem tenham a chance de perceber o que estão deixando de lado. A série foi se construindo de modo a levar gradativamente para o "Nothing of this matters" de Desmond. Tudo que no início chamava a atenção, despertava a curiosidade, inflamava o entusiasmo foi aos poucos se descolorindo para deixar, em primeiro plano, a verdade última: "Live together for you not to die for nothing and not to die alone".
Escrevi um comentário no Blog Arbítrio do Yúdice, mas gostaria de torná-lo disponível para todos aqui no meu Blog. Dedico essa postagem também ao Davi Garcia e à Juliana Ramanzini, que mantêm o Blog Dude, we are lost, que é, na minha opinião, o que contém os comentários mais bem escritos e penetrantes dos episódios de Lost e que, ao longo desses seis anos, me ajudou bastante a ganhar perspectiva sobre o quadro e o sentido geral da maior série de todos os tempos. Reproduzo abaixo o que escrevi ao Yúdice.
Caro Yúdice, antendendo aos seus apelos, venho me manifestar a respeito de Lost. Vou dividir esse comentário em duas partes. Na primeira, tentarei relativizar sua afirmação, feita na postagem Lost: O Fim, da última sexta, 21 de maio de 2010, de que os rumos tomados pelas últimas temporadas do seriado haviam sido decepcionantes em vista das expectativas criadas nas primeiras temporadas; na segunda, tentarei expressar a minha compreensão acerca de The End, o intrigante e surpreendente episódio final do seriado. Como se pode pefeitamente adivinhar, os comentários que seguem são recheados de spoilers para quem ainda não viu os episódios a que eles se referem.
PRIMEIRA PARTE
Um dos pontos que mais me chamou atenção positivamente na sua postagem foi o uso que você fez, de modo bastante prudente, de marcadores de subjetividade, como "eu esperava que" e "eu cheguei a pensar que", pois eles indicam que seu referencial de comparação do rumo que a série tomou é o rumo que você, pessoalmente, esperava e gostaria que ela tivesse tomado. Desde já destaco que, se o seu parecer final de que "Lost é isso. Decepcionante" for expressão apenas de sua frustração pessoal com a série, no sentido de que o que veio à tela não foi o que você mais teria gostado, ele é, enquanto tal, irrefutável. O que tentarei, sim, refutar é a ideia de que aquilo que veio à tela é decepcionante. E isso me parece expresso na sua postagem quando você fala que "abdicando de todas as questões científicas ou pseudocientíficas que faziam dele um entretenimento inteligente, Lost foi reduzido a uma clássica e singela batalha entre o bem e o mal, personificados num messiânico Jacob e em seu irmão, uma espécie de Satanás". Nisso me parece claro que a opção dos produtores por um viés religioso fez com que, aos seus olhos, a série abdicasse do que a fazia "inteligente", no sentido de intelectualmente provocativa, e abraçasse uma via "clássica e singela", no sentido de clichê e maniqueísta. Disso discordo frontamente, pelos motivos que vou elencar agora:
i) A estratégia inicial dos produtores de Lost para atrairem o enorme interesse de uma massa de telespectadores com as mais diversas preferências televisivas e visões de mundo foi plantar no seriado um conjunto de personagens e elementos tão variados que desse margem para todos os tipos possíveis de expectativas de desfecho para a trama de mistério. Entre os vários temperos postos na receita do seriado, estava o elemento científico das estações, dos números e da Dharma Iniciative. Mas, ao lado desse elemento, sempre estiveram presentes muitos outros. Sempre esteve presente o elemento romântico de casais existentes e possíveis; o elemento dramático da ilha como possibilidade de redenção para pessoas cujas vidas eram fracassadas em algum ponto relevante; o elemento filosófico de como é possível a convivência entre os diferentes numa situação de escassez de recursos e de ausência do Estado; e também o elemento místico, de um assustador e inexplicável monstro de fumaça que ameaçava os losties, de uma possível configuração do destino que havia reunido todas aquelas pessoas, de uma ligação mais íntima com a ilha da parte de John Locke. Mas essa vasta abertura do início não poderia ser mantida até o final a não ser sob o preço de não resolução dos mistérios principais, alternativa que, em vez de satisfazer a todos, provavelmente despertaria fortes sentimentos de frustração e traição e não satisfaria a ninguém. Para darem alguma resposta final, os produtores tinham que fazer alguma escolha entre os diversos rumos possíveis que a trama poderia seguir. Era preciso algum fechamento.
ii) A escolha que os produtores fizeram pelo elemento religioso não trai, portanto, a proposta inicial do seriado. Não trai porque esse elemento sempre esteve presente na trama como um dos vieses possíveis de abordagem da história. Quando os produtores dão ao primeiro episódio da segunda temporada o nome de Man of science, man of faith, encarnando os dois pólos nas personagens de Jack e Locke, fazem uma clara indicação dos dois caminhos que eram possíveis para o seriado dali por diante. As duas célebres frases daquelas personagens no episódio: "Everything happened for a reason" e "I think you are mistaking coincidence for fate" anunciam desde ali os dois possíveis desfechos da narrativa. Assim, não se pode alegar que Lost se "desviou" daquele que era o seu espírito inicial, nem que "enganou" aqueles que esperavam por respostas científicas, muito menos que nunca acenou desde o início com a possibilidade pela qual acabou optando em seu final. E mais: Sempre houve os expectadores que eram "men of science", como Jack, você e eu, e sempre houve os que eram "men of faith", como Locke. Esses grupos tinham expectativas radicalmente opostas sobre o destino do seriado e, qualquer que fosse esse destino, as expectativas de pelo menos um desses grupos de expectadores seria frontamente contrariada. Era inevitável.
iii) O motivo pelo qual os produtores optaram pela visão do "man of faith" foi exposto em inúmeros epidódios, mas eu gostaria de destacar a sequência de episódios-chave centrados na personagem Desmond Hume: "Flashes before Your Eyes" (S3E8), "The Constant" (S4E5) e "Happily Ever After" (S6E11), que construíram a ideia de que havia, sim, um destino, de que o que era capaz de manter a unidade de cada personagem ao longo do tempo era a presença de uma constante para cada um e de que essa constante era uma pessoa amada (O fato de que a constante do descobridor da ideia de constantes, Daniel, capaz de despertá-lo da ilusão da realidade paralela, fosse, ao contrário do que ele supunha, Charlotte, e não Desmond, como anotara em seu caderno, confirma isso). Tudo isso apontava que Lost era no fundo uma série sobre amor, coisa que se confirmou em The End, como depois vou defender. E o que tem isso a ver com o elemento religioso? Tem a ver, porque os produtores optaram pela via que lhes permitiria passar uma mensagem sobre o que é essencial na vida no fim das contas. Proteger a ilha é apenas uma forma de proteger as pessoas, e isso volta a se expressar na frase de Ben para Hurley para lhe dizer como defender a ilha: "I think you have to do what you do best: protect people". Vou desenvolver melhor essa ideia ao falar de The End.
iv) Penso que o viés religioso adotado pelo seriado a partir da quinta temporada também não pode ser acusado de desinteligente, clichê e singelo. E lembre-se que eu sou ateu e tive as mesmas expectativas que você no início de Lost. Primeiro, Jacob não era inteiramente bom, nem seu irmão era inteiramente mau. Ambos eram produtos opostos da educação de uma mãe problemática, que se tornou perturbada, manipuladora e assassina pelo peso do fardo de guardiã da ilha. A lição de Across the Sea não é de que o segredo da ilha é uma luz dourada no fundo de uma caverna misteriosa, e sim de que Jacob e seu irmão são, no fundo, apenas pessoas, momentos da história da ilha, uma história que nem começa nem termina com eles. Por que a mãe dos dois diz "Thank you" ao filho que a matou em Across the Sea? Pelo mesmo motivo por que Jacob não resiste ao ataque de Ben em The Incident: Ele queria se livrar do fardo de seu cargo. Por que a mãe sequestra os dois filhos da náufraga que ela depois mata? Pelo mesmo motivo por que Jacob visita e toca cada um dos futuros losties: Ele precisava de candidatos para substituí-lo, sem o que ele seguiria com seu fardo. Jacob também é manipulador, também é fraco e também é solitário e arrependido do que fez a seu irmão. Ele não é messiânico, mas apenas heroico na sua capacidade de autosacrifício como guardião da ilha, um cargo que ele procura honrar, embora se ressinta de não ter podido escolher, pois lhe foi imposto. Seu irmão não é mau. Ele é apenas um "men of science", que acredita na liberdade, que quer conhecer o que existe fora da ilha e que está disposto a tudo para livrar-se do triste destino que as escolhas de sua mãe acabaram por impor-lhe. Não há nada de satânico nele. Se há nele algo de intrinsecamente mau, é apenas sua inescrupolosidade diante de mentir, enganar, manipular, ameaçar, ferir e matar para atingir seus objetivos, algo que se viu, em maior ou menor medida, também em outras personagens, como Ben, Sawyer e Michael. Não há uma oposição "singela" entre bem e mal, e sim uma oposição complexa entre desejo de liberdade a quase qualquer preço e missão de proteção a quase qualquer preço.
SEGUNDA PARTE
Agora sobre o intrigante The End. Fixando em primeiro lugar que, a julgar pela conversa final entre Jack e Christian, a realidade na ilha era uma realidade em vida, mas a realidade paralela era uma realidade post mortem, disso algumas coisas precisam ser extraídas. A primeira é que, então, Lost não era um seriado sobre como as personagens entenderiam ou protegeriam o segredo da ilha, mas sim sobre como elas se conectariam umas com as outras de modo significativo, conexão essa que se revela, portanto, como o verdadeiro "segredo" da ilha. Isso porque, na realidade paralela, como disse Desmond, "Nothing of this matters": Não há mais ilha, homem de preto, avião, Dharma, os Outros, nem nada do tipo. Só o que há são as pessoas e as conexões essenciais que elas estabeleceram entre si. A segunda coisa é que não houve "happy endings" em Lost. O fato de que os casais ideais só se reencontram na realidade post mortem mostra que, em vida, nenhum deles pôde ter uma longa e duradoura convivência com seu parceiro, mas a curta convivência que tiveram na ilha bastou para marcar suas vidas e converter um na constante do outro, capaz de despertá-los todos de sua não lembrança. A cena final de Lost é trágica ao estilo grego: O heroi, deitado no solo da cena inicial do seriado, prestes a morrer em autosacrifício, sozinho a não ser pela tocante companhia do cachorro Vincent, contempla no avião que passa no céu o cumprimento de seu destino de salvar a ilha para assim salvar as pessoas, sem, no entanto, ser bem sucedido em salvar-se a si mesmo, a não ser no sentido simbólico de uma redenção martírica. A mensagem dos produtores: Em vida, se alguma felicidade há, ela está na ligação entre as pessoas, que geralmente é curta e precária, mas que tem chance de ser tão significativa a ponto de que, se algum destino houver para depois da morte, tenhamos razão para esperar que seja ao lado desses que conseguiram tocar nosso coração e dar sentido a nossa existência. E isso para mim foi puro Lost: No fim, os mistérios eram desimportantes, importantes eram as pessoas, suas vidas, suas experiências e seus encontros. E isso dá a Lost um desfecho e um sentido que são completamente diferentes daqueles que eu tinha esperado e que eu teria escolhido, mas que a tornam a maior série de TV de todos os tempos e merecedora eterna do respeito e da admiração de todos que gostem de um drama humano inspirador e bem construído. E, se a série teve que me frustrar para tornar-se eterna, considero a minha frustação apenas mais um dos sacrifícios necessários que a ilha demandou. É essa a minha opinião.
UM COMPLEMENTO
Na minha opinião, um dos motivos pelos quais o herói-mártir é Jack, e não Locke, é representar justamente a transição do "man of science" para o "man of faith", que aponta, por sua vez, para a esperada transição das expectativas e pontos de vista daqueles que estavam ao lado de Jack para se converterem, aos poucos, para o lado de Locke. A série convida o "man of science" que está assistindo a fazer a mesma mudança de horizontes do protagonista da história, pois importante não é apenas que existam aqueles que, como Locke, já naturalmente creem no que é essencial, mas sim também que aqueles que, como Jack, inicialmente não creem tenham a chance de perceber o que estão deixando de lado. A série foi se construindo de modo a levar gradativamente para o "Nothing of this matters" de Desmond. Tudo que no início chamava a atenção, despertava a curiosidade, inflamava o entusiasmo foi aos poucos se descolorindo para deixar, em primeiro plano, a verdade última: "Live together for you not to die for nothing and not to die alone".
Comentários
PS - Nosso café filosófico de julho há de ser profundamente lostiano, já que minha esposa é mais fã do que eu.
Grande abraço!
Você tocou em alguns pontos que pra quem me conhece sabe que penso da mesma forma.
1- a série tinha vida própria. Lembro da primeira temporada, a finale, "e todos teríamos as respostas", esse era o pensamento de todos, até porque a audiência pedia isso, e terminamos com a abertura da escotilha (seria uma referência para uma abertura de nossa mente?) e mais perguntas foram criadas. aqui eles ousaram, e não me recordo de ter visto isso antes em um entretenimento de grande publico, de não termos idéia nenhuma de onde a série iria, a ilha era algo fantasioso e intrigante (como costumo dizer, apenas um pedaço do universo, tão fantasioso e intrigante na vida real também) e nós que queiramos descobrir tudo recebemos como resposta que descobriríamos, mas da maneira que eles quisessem nos contar.
2- dizer que a série não tinha idéia de como iria terminar chega a ser um absurdo, pois a escotilha (como abertura da mente) era um convite para nos abrirmos e refletirmos sobre nós mesmos, e prova maior de que havia uma lógica sendo contada são os títulos que a série nos deu ao longo dos anos, que de uma forma esperta já nos contava boa parte de "the end". "Deus ex-machina" era um titulo da primeira temporada que se refere a parte técnica de um roteiro onde uma resposta é criado do nada para o desfecho da historia. o que prova claramente que eles tinham como um dos desfecho a parte espiritual e refuta (e ironiza) a idéia de que nunca foi nos dada essa opção antes. outros títulos eram mais claros como os que você citou no seu brilhante texto, além de mais alguns como "the beginning of the end", "dead is dead". podem ficar chateados por não ter ido para o lado sci-fi, mas nunca que eles não seguiram uma linha de raciocínio.
continua...
O estou morto de Jack é apenas ele constatando que morreu na ilha e o evento ciclico dos personagens se refere (seguindo agora uma linha espiritual também) que nascemos várias vezes e repetimos os nossos acertos e falhas varias vezes, até que vamos amadurecendo, e com isso conseguindo evitar que erros do passado sejam cometido no presente e futuro. alias, explicação está que serve para os 06 anos na ilha. claro que até essa explicação tem uma boa parte de misticismo, e isso tudo teve na série toda, ate nos seus momentos mais sci-fi. alias, quer algo mais sci-fi do que vivermos, este planeta, enfim, o universo, e ao mesmo tempo quer algo mais espiritual (ou humano) do que a vida?
...
e um pós nota, eu havia dito no inicio da temporada a minha namorada, "eles estão nos dizendo, que cada resposta é apenas uma nova pergunta", citei a ela todas as nossas dificuldades na vida, que quando encontrada as "respostas" criam novas perguntas.
entendo e respeito quem não gostou, mas por toda ousadia que a série teve, pelo brilhante texto e universo criado, e mais brilhante ainda jornada dos personagens, não importa se somos o homem da ciência, o homem da fé, o homem do coração, o homem de branco ou o homem de preto, todos somos humanos, acertamos e erramos, a melhor resposta da série foi que a unica certeza que temos é que não temos certeza de nada, e não há um manual para se viver, mas é melhor viver em sociedade do que morrer sozinho.
e por ai vai, tento acabar essa resposta e não consigo, tamanho é o brilhantismo desta série.
Mais um texto bem redigido e com base para os comentários sensatos.
Divulgarei, sem dúvida!
Abraço.
E eram tantos mistérios que seria impossível explicar tudo sem criar uma nova série só pra isso :)
Talvez TUDO o que tenha ocorrido em lost, ocorreu nessa fração de segundo de uma última piscada..Aquela velha história de que quando estamos prestes a morrer, vemos flashs da vida que tivemos..e lost foi um pouco mais além, mostrando não só o que se viveu, mas o que poderia ter sido vivido, com toda sua realidade errática e despretensiosa pois sede a forças maiores e incompreensíveis se consideradas apenas em nível intelectual.
Infelizmente, eu só li o seu post hoje, dia 4/06/10, o que não adianta muito, por que o final de lost ja foi e eu ja esqueci um monte de coisas... Mais eu consegui entender quase tudo do que você falou...
Mais uma coisa que eu queria que você me falasse, é, quando afinal eles morreram? Em que momento? O avião conseguiu chegar a algum lugar com eles vivos ou eles ja estavam mortos? Se o Hurley estava na igreja no futuro alternativo, quem ficou cuidando da ilha? Afinal, quem era o "mal" e o "bom", Widmore ou Ben?
Seu post me ajudou muito a entender muita coisa.
Valeu...
Thatai
Soube muito bem ler o teu texto sobre o fim da série Lost, foi capaz de assentar as sensações que despertou vê-la ao longo de tanto tempo.
A persistência que tivemos, muitos perderam-na, talvez por necessidade de uma sequência lógica de descoberta, pergunta, resposta, pela necessidade de um enredo pragmático e fiel a uma realidade práctica.
É sem dúvida sobre as pessoas e a importância da nossa existência inter pares que assenta todo o enredo, não obstante as imensas questões levantadas, nunca isentas de considerações, mensagens, análises e pontos de vista, mais uma vez, sobre a vida e os outros. Outros, essa palavra explorada com um sentido muito marcado, a noção dos nossos em detrimento dos alheios.
Não me alongo, sob pena de me perder também em ideias, aproveito para dizer que o que não gostei do final, foi realizar que não há mesmo mais, para ver.
Considero também a melhor série que vi, aqui talvez pese muito a variedade de caracteres, atitudes, aspectos e comportamentos, que permite que no fim nos acabemos identificando, aqui ou ali, com o vivido ao longo dos muitos episódios.
A minha sincera "vênia" pelo teu raciocínio, e o elogio à tua capacidade de exposição e síntese, de algo que é no fundo, extenso e confuso.
Cumprimentos,
Nuno Vasconcelos