Uma Teoria da Má Compreensão (A Theory of Misunderstanding)

No terreno das teorias filosóficas, a má compreensão sempre me intrigou. Vou explicar em que esse fenômeno consiste. Um filósofo F defende uma teoria T. De início, T é nova e precisa se confrontar com um ambiente teórico de partida, que pode lhe ser favorável ou desfavorável. Se for favorável, T provavelmente será acolhida e, se for desfavorável, criticada. Até aí tudo normal. Ocorre que, quer seja acolhida, quer seja criticada, aquilo que é acolhido ou criticado nunca é exatamente T, mas sim certa versão V do que T realmente disse. V não é simplesmente uma interpretação possível do que T disse, mas é uma versão simplificada de T, que normalmente compreende mal suas teses, não atenta bem para suas premissas e não capta corretamente as consequências que se pode extrair de T. V é uma espécie de adaptação de T para o consumo em larga escala. E não é que V seja obra do senso comum popular, ela é obra, isso sim, do senso comum acadêmico. O grau em que V se distancia de T pode variar muito de acordo com o caso, mas uma constante se mantém: os especialistas em T passam todos os seus dias e todas as suas noites combatendo V, até o dia em que, cansados disso, convencidos de que V está destinada a prevalecer como compreensão dominante de T, os especialistas desistem de lutar e se reúnem apenas entre si, para discutir T seriamente, longe das influências de V. Isso torna tudo muito pior. Sem a fiscalização e a críticas dos especialistas em T, V não apenas se torna dominante, mas começa a ter vida própria e sofrer uma série de mutações, adaptar-se às críticas, às modas, às discussões paralelas, aos fatos históricos, de modo que V toma uma rota tão divergente de T que apenas uma cuidadosa reconstrução histórica é capaz de mostrar que ambas tiveram origem na obra do mesmo filósofo F. Exemplos disso há diversos. Vou dar alguns em Filosofia Moral e Filosofia Política, porque são ramos com que sou mais familiarizado. Em Maquiavel, V é a má compreensão segundo a qual ele era um inimigo da liberdade, defensor de um regime tirânico e de medidas políticas imorais para conseguir e manter o poder a qualquer preço; em Kant, V é a má compreensão segundo a qual ele defendeu um formalismo vazio, um universalismo homogeneizante, uma tirania da razão sobre os sentimentos e um regime político contratualista e liberal; em Hegel, V é a má compreensão segundo a qual ele defendeu uma causalidade histórica determinista, um regime moral e político conservador e uma absorção do indivíduo no Estado que endossa o totalitarismo; em Marx, V é a má compreensão segundo a qual ele defendeu um determinismo econômico, considerou todo o universo simbólico e cultural como ideológico e mero reflexo do estado das forças produtivas, disse que o direito era sempre um instrumento de manutenção dos privilégios de classe e defendeu um regime ditatorial no terreno político e dirigista no terreno econômico; em Nietzsche, V é a má compreensão segundo a qual ele defendeu que não existem nem podem existir valores morais válidos, rejeitou qualquer papel para a racionalidade e para a religião, abriu mão do conceito de verdade e convidou cada um a elaborar sua própria moral individual. E por aí vai. Para praticamente cada um dos filósofos relevantes, pode-se elencar uma ou mais T's (as distintas interpretações da teoria que os especialistas propõem com bases sólidas, com bom suporte textual e biográfico e a partir de uma exegese e reflexão cuidadosa sobre a obra do filósofo) e uma ou mais V's (as versões que o senso comum acadêmico cria e reproduz do que aqueles filósofos disseram e que costumam ir em direções distintas, e às vezes até opostas, às pretensões e às afirmações textuais das teorias em questão). E, como eu disse lá em cima, isso não ocorre só com as teorias que enfrentam rejeição (embora com elas ocorra muito mais frequente e intensamente), mas também com as que encontram acolhimento na comunidade acadêmica. Geralmente, o que é largamente criticado ou largamente acolhido nunca é T, e sim V; T permanece sempre o patrimônio de um pequeno grupo de estudiosos que têm tempo, paciência e dedicação bastantes para compreender a teoria de modo mais fiel e rigoroso.

P.S. Recomendo fortemente a leitura dos comentários a essa postagem, onde a discussão se aprofunda e se refina bastante a partir das críticas.

Comentários

Fernanda disse…
Um exemplo de T cuja versão V foi amplamente aceita e largamente divulgada - obscurecendo a T - ocorreu com Darwin, né?

Gostai da postagem. É muito interessante e consegue expressar em palavras a frustação e a situação de alguns dos acadêmicos, às vezes imperceptível para os demais; Por sinal, sua listagem de Vs é bem compatível com um resumo de um manual de filosofia XD
Pior, resumão esquematizado de Filosofia do Direito para concursos!!

Sua postagem também me lembrou da dificuldade de comunicação que existe entre os próprios acadêmicos, causada pela má compreensão das Ts ou a mera satisfação apenas pelo estudo das Vs (isso sem contar àquela incomunicabilidade entre acadêmicos e não acadêmicos).

Me pegunto, dentre as várias hipóteses que já pensei, quais serão as causas disso...

Ah,
Eu também acharia interessante se você conseguisse fazer uma postagem com aquela sua metáfora do valor cambial das idéias 'intuídas' e das idéias 'vertidas' em palavras XD
O que acha?
Anônimo disse…
Sim, belo exemplo. Até hoje tem gente que acha que Darwin disse que o homem veio do macaco (em vez de os dois terem, na verdade, apenas um ancestral comum), que a competição é um mecanismo justo de seleção (em vez de apenas inevitável em situações de escassez de recursos), que a natureza seleciona os melhores ou os mais fortes (em vez dos mais aptos ou adaptados para certa configuração ambiental), que as necessidades de adaptação "criam" os novos atributos dos indivíduos (em vez de apenas selecionarem entre atributos que surgem por acidentes de hereditariedade), entre outras bobagens diversas.

Na verdade, poderíamos usar "coleção de V's" como sinônimo para "manual" em quase qualquer disciplina. Meu aforismo sobre isso é: "Se uma teoria pode ser entendida em 20min, ela não vale esses 20min; se ela só pode ser entendida em 20 dias, ela vale esses 20 dias".

Pretendo continuar essa postagem dizendo que, embora T seja mais fiel e qualificada, ela demanda estudo e dedicação demais para ser consumida em larga escala, de modo que, se os especialistas quiserem que T seja conhecida e debatida pela comunidade acadêmica em geral, terá que investir na qualificação de V, e não insistir teimosamente para que os demais investigadores se tornem todos especialistas em T. V cumpre uma função social de divulgação e compartilhamento de T que esta sozinha jamais conseguiria desempenhar.

Sobre a postagem que você pediu, acho que vou fazê-la, sim.
Unknown disse…
Sempre pensei sobre T e V como uma autocrítica: eu gostaria de conhecer T, mas me conformo muitas vezes com V porque F parece muito distante de mim (intelectual e fisicamente falando). É frustrante por ser uma opção medíocre, mas pode ser mais frustrante ainda correr atrás de T. Ademais, além dos exemplos citados por Fernanda, no meio acadêmico há também outro problema com o qual me deparei diversas vezes: quando os próprios professores disseminam V de pouca qualidade.
Anônimo disse…
Édissa, fico imensamente feliz de ter um comentário seu (mesmo que aliciado, rsrs) no meu blog. Na verdade, meu bem, a enorme distância entre você (na verdade, entre qualquer um de nós) e F pode e deve ser abreviada pelas boas obras dos especialistas em T e pelas boas aulas dos professores da disciplina em questão. Eu não sou lá um especialista em muita coisa, mas sou relativamente bem informado sobre quais são boas fontes através das quais conhecer quais autores e teorias. Sempre que estiver interessada em conhecer melhor uma teoria filosófica, pode me consultar e pedir indicações de bons comentadores, capazes de fazer uma transição mais tranquila entre o estado de leigo e uma boa compreensão da teoria T.

Bom, é preciso dizer ainda que os professores raramente são especialistas em T, o que em direito é bastante visível. São simplesmente ridículas as V's das T's de Kelsen, Hart, Dworkin, Alexy, Habermas, Luhmann etc. que circulam nos manuais e que são ensinadas em aula e referidas em palestras. Esses professores precisam estar cientes do seguinte: Mesmo que você não tenha 20 anos a dedicar ao conhecimento de certa teoria, você tem 20h que pode dedicar à leitura dos especialistas que já dedicaram esses 20 anos de estudo. Basta superar o comodismo de só querer dedicar 20 min. à leitura de um manual ou de um artigo sobre a teoria em questão (Por que essa obsessão pelo número 20 hoje? Também estou me perguntando...).
Anônimo disse…
Meu caro: parabéns pela postagem! Muito interessante! E assim que terminar o mestrado, vê se escreve um livro sobre teoria do direito (isto é um pedido; não é uma cobrança, por favor). Um livro que contenha Vs e Ts. Estamos precisando de um livro honesto de filosofia do direito para aplicação nas graduações e pós-graduações deste país. Aliás, como eu já disse uma vez no seu blog, se você juntar todos os posts com os seus artigos e mais algumas linhas e publicá-los assim, teremos um livro de filosofia do direito melhor que 95% dos que estão publicados por aí. E melhor que todos os outros nos quesitos escrita, argumentação e clareza. Abraços. Leandro Aragão
Débora Aymoré disse…
Olá, André. Se você me permite, gostaria de levantar algumas questões. Não considero que necessariamente as diferentes Vs em relação a T sejam casos de má compreensão, uma vez que a relação entre V1, V2 e V3 com T pode ser entendida também como uma relação entre todo e parte e, portanto, não poderíamos dizer que estaria exatamente errado afirmar V1 e V2 e não afirmar V3, sendo, neste caso, apenas uma perspectiva parcial de T, mas não necessariamente um erro. Por outro lado, tanto a medida da parcialidade, como a medida do erro ou acerto, diz-se, estão indisponíveis para nosso conhecimento, se aceitarmos a indisponibidade de critérios objetivos de avaliação da verdade. Parece-me que esta questão retoma de certo modo a discussão que tínhamos quando tratamos do tema da profundidade, pois se estou certa em afirmar que a profundidade tem a ver com a amplitude de perspectivas sobre um determinado objeto, V1, V2 e V3 seriam, em seu conjunto, equivalentes a T, no entanto, todas as vezes que se tentasse abarcar T, seja através de uma obra, artigo, apresentação ou frase, estaríamos submetendo T a limitação e, portanto, seria impossível expressar, em qualquer caso, T em sua totalidade, inclusive pela própria necessidade de expressarmos T com a linguagem, sujeita como é também a limitações. Assim, até mesmo os especialistas estariam, aparentemente, submetidos ao problema da parcialidade. Espero ter contribuído para a sua reflexão. Abraço, Débora.
Sérgio Mendes Filho disse…
Caro André,

Acho valioso que coloques em evidência uma problema meta-teórico que, apesar de exprimir uma característica marcante da reflexão filosófica, é pouco considerado e discutido pelos que participam com intensidade do hábito de teorizar e criticar teorias alheias. Afinal, caso o fizessem, estariam – quase todos – confessando seus equívocos e fazendo autocrítica ferina.
Sobre a existência das más interpretações de teorias e a consolidação de compreensões enviesadas, as quais prejudicam as leituras possíveis e coerentes com a teoria original, não vejo oposição imaginável. Uma leitura empírica não informada com métodos exigentes de aferição já permite perceber que a circulação de ideias filosóficas é feita de misreadings de vários tipos. Não creio que tal fato seja um privilégio moderno (e bem sei que não afirmaste nada do tipo), pois me parece algo típico da história do diálogo filosófico (ser típico não significa ser constitutivo ou necessário; a filosofia manteria altercações de alto nível mesmo sem os correntes defeitos de compreensão).
Meu ponto é o seguinte: para além da constatação de que existem más compreensões de teorias e das consequências teóricas e corporativas (nichos universitários e de pesquisa) que isso acarreta, entendo que se abre um campo interessante de pesquisa, o qual deve se concentrar na identificação das más compreensões, na reconstrução das causas que levaram a isso e nos efeitos práticos que certa má compreensão provocou. Lembro-me, agora, do trabalho de Diego Medina, Teoría Impura del Derecho, que conheces.
Este esforço de fazer crítica das “críticas acríticas” é válido na medida em que devolve alguma dignidade à teoria maculada por percepções desviantes e cria um ambiente intelectual em que, a longo prazo, serão detonados e “desmascarados” os teóricos que, por oportunismo de ocasião, deficiência de entendimento ou indolência pura e simples, reelaboram teorias alheias.
O trabalho reconstrutivo que proponho evitaria, em alguma medida, que se formasse um “senso comum acadêmico” capaz de se cristalizar e se difundir isento de censuras e faria com que especialistas em certa teoria não se dedicassem apenas a formar círculos fechados de estudo, pois teriam como obrigação moral a elaboração da crítica pública das apreensões inadmissíveis da teoria a que se dedicam.
A possibilidade de pesquisa que levantei pode parecer um sem-sentido diante da afirmação de que os especialistas numa teoria lutam para afirmá-la em termos coerentes com a obra original, e acabam cansados de fazê-lo, sem que costumem obter sucesso. A obviedade da proposta seria verdadeira se não estivesse pensando no ambiente acadêmico brasileiro e na filosofia do direito, marcado por alguma preguiça e, principalmente, a falta de disposição para ouvir o diferente, o outro. Há, também, a falta de compreensão do fato de que embates teórico-filosóficos não são resolvidos como um problema de matemática nem medidos por instrumentos de laboratório. Além disso, a incapacidade dos professores de fazerem e receberem críticas, pois se manifestam de forma a causar diferenças pessoais, quase amorosas (mais de falta de amor que de presença dele).
Uma digressão: a partir de um ponto de vista analítico do problema epistemológico que sugeriste, penso que são necessários esforços para distinguir entre interpretações possíveis e más interpretações, e para confrontar o fenômeno do misunderstanding na filosofia e nas ciências. A partir de Foucault, é imprescindível tratar as más interpretações como instrumentos empregados em contextos políticos e intelectuais específicos, pois podem aquelas consistir em estratégias convenientes na luta por alguma forma de poder.
Sérgio Mendes Filho disse…
[continuação]
Outro nó epistemológico a cuidar diz respeito à incomensurabilidade de teorias filosóficas, que não raro tratam de problemas comuns sob pontos de partida diversos e com um conjunto de conceitos próprios. Dificuldade também aparece na questão sobre a relação entre produção teórica e contexto, que pode ser reformulada na interrogação sobre o efeito do tempo e da mudança sobre o conteúdo de uma teoria. Apenas suscito, sem propor nada.
Dando, talvez, um passo atrás, penso que a mera dedicação a reconstruir desvios de interpretação e usos não ortodoxos de teorias já constitui, por si, um trabalho de ótimo valor, mesmo sem pretender um resgate, em sentido forte, da originalidade da obra de um teórico.
Em poucas palavras, há urgência de confrontar e reconstruir, sem receio de vacilar ao apontar os erros. Estaremos, no final, mais esclarecidos se assim for. Eu creio.

Abraço,

Sérgio.
Anônimo disse…
Agradeço os comentários do Leandro, do Sérgio e da Débora. Vou responder a cada um em breve.
Marina M. disse…
Mas existe algum filósofo que seja compreendido e difundido na forma T, ainda que superficialmente?

Outro ponto relevante na criação deste senso comum acadêmico e sua difusão entre os alunos, creio eu, é culpa também do professor e sua falta de tempo (eu canso de escutar isso nas aulas!) de estudar exaustivamente os autores da forma como eles gostariam. Na vontade de que tudo dê tempo, não se usa uma compreensão V para que se facilitar e por isso acabar difundido o V e não T.

E você diz que V cumpre função social de difusão, mas se ela difunde incorretamente e as pessoas não preocupam em buscar T, no fim das contas, não há um desvio de função da difusão de "T", uma vez que o que é difundido é V? Não seria melhor usar um T simplificado do que um V com falhas, as vezes gritantes para os conhecedores do T?

No fim das contas, acho que a filosofia não tem pressa. É estudo eterno para compreender T (tomando T como verdade absoluta, interpretação mais correta). Nem todo mundo tem paciência, prefere V.

Ainda estou pensando se fatores externos à racionalidade devem ser levados em conta, mas explico quando pensar nisto melhor.

Melhor parar por aqui. xD
Anônimo disse…
Respostas:

Ao Leandro: Obrigado pelo elogio. A pretensão de escrever uma manual de filosofia do direito realmente existe e um dia vou dar-lhe realização, pode estar certo disso.

À Débora: Você parece querer ver na distorção V uma interpretação parcial de T, e portanto não um erro, e sim um olhar diferente. Admito que, na interpretação de T, pode haver várias concepções, que colocarão a ênfase em distintos aspectos de T (embora não concorde que T só se alcance mediante uma reunião dessas concepções; ao contrário, cada uma delas já contém T inteira sob dada perspectiva, lembrando a relação entre mônada e universo em Leibniz). Mas distingo entre uma interpretação de T com ênfase no aspecto X (que chamarei de X(T)) e V, que é uma versão distorcida de T. É que o defensor de X(T) pode mostrar que sua interpretação é amplamente sustentada pelas afirmações de T, enquanto o defensor de V seria facilmente desmascarado num confronto com T. Para usar um exemplo envolvendo Thomas S. Kuhn, a interpretação lakatiana de que a teoria de Kuhn é relativista seria uma X(T), enquanto a interpretação popperiana de que Kuhn defende comunidades científicas conservadoras e orientadas para a perpetuação irrefletida do paradigma seria uma V.
Anônimo disse…
Ao Sérgio: Caberia distinguir entre distorção de T (que chamo de V) e adaptação de T a um cenário (que chamarei aqui de A(T)). É que A(T) pressupõe que exista uma interpretação consolidada e correta de T, em comparação com a qual A(T) possa ser considerada interpretativamente incorreta, mas contextualmente explicável. Já V não pressupõe T, mas pretende se substituir a ela no próprio contexto original de sua recepção. Assim, como A(T), V também é interpretativamente incorreta em comparação com T, mas não é uma compreensão marginal e periférica, e sim dominante e central. A questão de como transitar de A(T) para T é solúvel: basta ingressar numa comunidade mais ampla de intérpretes. Mas a questão de como superar V e fazer prevalecer T é tragicamente insolúvel: dependeria de que todos os investigadores se tornassem expertos em T, o que é impossível, tornando, assim, quase inevitável de V prevaleça. E mais: se não se formasse uma V, T provavelmente seria esquecida, de modo que V segue sendo uma possibilidade mais generalizada de acesso a T.
Anônimo disse…
À Marina: Sobre se existem T's que sejam entendidas sem V's, acho que não. Ou melhor: a distinção entre T e V só faz sentido para teorias complexas, que exigem longo e profundo estudo e relações e precisões conceituais diversas. Faz sentido para a teoria da relatividade, para o darwinismo, para o kantismo, para o materialismo histórico etc. Mas não faz sentido para fórmulas matemáticas e físicas que não exigem explicação suplementar (como o teorema de Pitágoras ou a equação de Torricelli) ou para teorias humanas e sociais muito próximas do senso comum, improváveis de serem entendidas de modo diverso de seu sentido original. Então, sim, para toda teoria complexa o bastante, acho que V acaba prevalecendo sobre T.
Anônimo disse…
Ainda à Marina: Agora, falando da "função social" de V. Ninguém que se dedica a outra área ou a outra teoria que não T tem tempo ou condições suficientes para se dedicar a T do modo devido. Essa pessoa só terá contato com T se lhe for apresentada uma versão reduzida, simplificada, que exatamente por isso estará tendente à distorção. Portanto, sem V, essa pessoa nunca teria nenhum contato com T. Por exemplo, o que a gente conhece de genoma, de física quântica, de teoria do big-bang, de efeito estufa, de filosofia medieval etc. são todas V's - todas, sem exceção. O que você preferiria: saber o pouco que sabe sobre essas coisas ou sequer ter ideia de que elas existem? Sim, porque se, para conhecê-las, tivéssemos como única opção dedicarmos todo o tempo necessário para sua correta apreciação teórica, nós simplesmente daríamos de ombros para elas, porque concorreriam com nossos outros interesses principais (como fazemos com aprender a tocar instrumentos musicais ou línguas exóticas como hebraico ou russo). V é a ponte de contato, mesmo que distorcido, entre T e quem não tem tempo para entender T corretamente.
Anônimo disse…
Um acréscimo: Com isso não digo que toda versão sintética de uma teoria é automaticamente uma distorção dela. Até o experto em T tem que lidar com sínteses de T. Mas a síntese de T entre expertos em T é uma coisa. A síntese de T para leigos em T, desconhecedores de sua tradição teórica, de suas premissas e de suas precisões conceituais, é, essa sim, sempre uma distorção de T. V é não apenas sintética, mas sintética de modo tal e com um propósito tal que se torna quase inevitavelmente distorcida.

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