Vinhos e Relativismo: Uma Apreciação Crítica Kantiana

“O melhor vinho do mundo é aquele de que você gosta”. Muito familiar de apreciadores de vinho, frequentemente citada pelos grandes conhecedores, a meu ver, menos como louvor ao relativismo que como um tipo de modesta atenuação do peso de sua expertise, através da concessão à experiência do principiante, essa frase, que nos círculos enófilos já ganhou ares de provérbio sapiencial, pode ser lida de várias maneiras, algumas das quais certamente escapariam a qualquer acusação de subjetivismo. Mas estou aqui interessado numa das suas leituras, exatamente a que acentua sua faceta relativista. Nesse viés, a frase significaria que pouco importam a tradição, a fama ou a classificação do vinho, porque, no fim das contas, o que realmente importaria para que ele fosse bom seria o quanto ele agradaria ao paladar de cada experimentador individual. Quero deixar claro que para mim essa não é a interpretação mais adequada da frase, é apenas a conotação com que quero lidar para fins de discussão nessa postagem. Com esse sentido, a frase implicaria a total negação de toda expertise enológica, exatamente na medida em que tornaria todos os experimentadores individuais, mesmo os dotados dos paladares mais inexperientes, grosseiros ou exóticos, expertos irrefutáveis em matéria de bons vinhos. Os vinhos que mais os agradassem seriam automaticamente os melhores vinhos, e eles não poderiam se enganar a esse respeito. Todo tipo de vinho, não importa o quão barato, vagabundo, desencorpado e desestruturado fosse, seria candidato a melhor vinho do mundo, bastando que houvesse um único experimentador insano a quem ele agradasse mais que todos os outros. Seria a chance do São Braz contra o Brunello di Montalcino, do Château du Valieur contra o Château Margaux, do Santa Helena contra o Barolo Riserva. Seria a confirmação última da suspeita daqueles que dizem que vinho é tudo igual e que os enófilos se deixam levar ingenuamente por essas “frescuras” de rótulo, tipologia, origem e classificação. Seria, enfim, a morte da enofilia. Por isso mesmo, a frase nesse sentido é inaceitável. Seu erro é confundir gosto com preferência, prazer com deleite. Invoco Kant (Crítica da Faculdade do Juízo) para sanar o problema, embora aqui eu faça uma adaptação (talvez levemente humeana) das palavras de Kant, para tornar suas ideias menos complexas. Gosto é apreciação da qualidade objetiva da coisa, algo próximo do conhecimento, enquanto preferência é configuração individual da agradabilidade dos sentidos, algo próximo do acidente e do acaso. A coincidência entre preferência e gosto é o bom gosto, que é meta da boa educação dos sentidos. Prazer é a experiência positiva que se alcança mediante a apreciação desinteressada do que é belo, enquanto deleite é a sensação positiva que se experimenta quando algo agrada aos sentidos. Dizer “o melhor vinho do mundo” se refere a gosto e prazer, enquanto dizer “o vinho de que você mais gosta” se refere a preferência e deleite. Quem prefere vinhos piores, porque estes lhe causam mais deleite, tem mau gosto, um gosto não educado, e está excluído da experiência do prazer, ficando no mero deleite. E isso é muito triste e lamentável, seja em matéria de vinhos, seja quanto às artes plásticas, à música, ao cinema, à literatura ou à poesia. Em todos esses campos, nenhum conhecedor experiente é relativista, porque o relativismo, ao igualar tudo, nega a riqueza que só uma duradoura educação do gosto proporciona. E essa é, na minha opinião, a refutação mais decisiva do relativismo em matéria de estética.

P.S. Recomendo fortemente a leitura dos comentários a essa postagem, onde a discussão se aprofunda e se refina bastante a partir das críticas.

Comentários

Débora Aymoré disse…
Olá, André. Em se tratando de vinhos, posso me considerar completamente leiga, mas como você falou em sua postagem sobre o relatismo, parece-me que eu tenho alguma coisa a acrescentar. Primeiro, no entanto, queria ressaltar que não entendo a percepção sensorial como algo objetivamente dado. Por exemplo, existem pessoas que nem sequer provam vinhos ou que pertencem a culturas que nunca conheceram esta bebida, mesmo que talvez tenham um substituto com o mesmo tipo de função social. Deste modo, considero que a própria prática de produzir vinhos e a de experimentá-los advém de uma educação socialmente dada. Por isso, afirmei que não estou certa se existe uma objetividade da apreciação sensorial. Segundo, uma vez que se compreenda que a prática de produzir e apreciar o vinho advém de determinada cultura, poderíamos afirmar que também aquilo que é sentido é passível de educação. Quero dizer, qualquer pessoa que se submetesse várias vezes a provar vinhos poderia com o passar do tempo e da experiência repetida, perceber nunces que antes lhe eram veladas. Sendo assim, alguém que pertença à uma comunidade dada de enólogos, poderia ser mais apreciadora dos gostos amadeirados e outros dos de frutas. Em que pese possam ser criadas categorias, tais como as que citei que remetem aos elementos que são acrescentados ao vinho, digamos, estas me parecem categorias móveis e não dadas objetivamente, o que parece-me retomar o problema do relativismo que você queria afastar.
Anônimo disse…
Não vejo por que chegar a essa conclusão. Primeiro, não vejo por que é relevante a coisa de o vinho ser feito pelo homem, ou apenas por certas sociedades. Há sociedades que não conhecem a melancia, e no entanto isso não afeta a objetividade de que ela é grande, verde por fora, vermelha por dentro, suculenta e doce. Da mesma forma, há sociedades que não produzem nem consomem vinho, mas, se provassem vinhos e se o seu aparelho sensório estivesse em funcionamento normal, então achariam o cabernet forte e o bordeaux suave, o porto doce e o riesling amargo etc. Segundo, a coisa de comunidades que desenvolvem certas preferências não afeta o argumento, porque, como eu disse na postagem, preferência não é gosto. Eu não tenho nenhuma preferência por raggae, mas sou capaz, por juízo de gosto, de dizer que Bob Marley é melhor que Tribo de Jah, o que não me impede de preferir ouvir Mozart a Bob Marley. O gosto tem a ver com a apreciação objetiva do belo, ou da qualidade de uma coisa enquanto objeto estético do seu tipo e gênero, e não com as minhas preferências, ou de minha comunidade. O seu argumento prova a relatividade das preferências, e não do gosto.
Débora Aymoré disse…
Pois é, André, eu acho que não. Quando tratei das categorias que são formadas socialmente e repassadas pela educação, eu não estava falando de que as pessoas podem sentir o doce como amargo ou vice-e-versa. O que estava tentando ressaltar é que o gosto por vinho e a apreciação de suas qualidades pode variar a depender do grupo considerado e, desta maneira, mesmo um vinho que para um certo grupo seria de péssima qualidade, poderia ser apreciado por outro. Sendo assim, a apreciação que se tem dos vinhos, que você distinguiu entre preferência e gosto, pareceu-me que o gosto seria algo compartilhado por todas as pessoas. Mas, como parti da perspectiva de que o gosto é fruto de uma educação, conclui que diferentes educações levariam a diferentes modelos idealizados do que seria o bom gosto. Enfim, espero que agora tenha ficado claro o papel que atribuí à presença ou ausência de vinho em uma sociedade. Além disso, eu não expressei minha ideia de tal maneira que considere que uma melancia seria pequena ou amarela, mas a depender dos parâmetros comparativos, essa apreciação objetiva poderia sim variar.
Anônimo disse…
Ok, vamos esquecer o exemplo da melancia e ficar apenas nos vinhos. A sua argumentação está constantemente retornando à ideia de que o "gosto" seria uma espécie de "preferência" construída pela educação e compartilhada por uma comunidade particular. Mas a essência da distinção kantiana entre gosto e preferência reside em que o gosto não é uma preferência. Do ponto de vista do gosto, dizer "este é um bom vinho" é dizer que, se você fosse um experimentador plenamente racional e imparcial, que conseguisse apreciar a qualidade intríncesa do vinho indenpendentemente e para além de todas as suas preferências privadas e particulares, você reconheceria que esse é um bom vinho. É porque o gosto está para além das preferências que ele é universal. Se distintas comunidades de apreciadores de vinhos têm distintas avaliações sobre quais vinhos são bons ou ruins, é porque pelo menos uma delas está se deixando levar por preferências privadas ou particulares. Se essas comunidades estivessem todas apreciando vinhos da perspectiva do gosto, então teriam todas a mesma avaliação sobre os vinhos. O gosto é uma apreciação da qualidade para além de qualquer preferência; e, quando nos elevamos todos para além das preferências que nos separam, encontramos o gosto que nos une. Agora, se o seu argumento for, como me parece que é, que não existe "gosto", existem apenas as preferências (o que seria o que equivalente estético de dizer, em epistemologia, "não existe a verdade, existem apenas as opiniões", ou dizer, em moral, "não existe o dever, existem apenas os intereses"), a isso eu não tenho resposta, mas apenas um convite: Ao estilo de Aristóteles, eu convidaria alguém que pensasse assim a receber a educação adequada da parte daqueles que são conhecedores e verificar, por si mesmo, se ao fim do processo não se terá convencido de que os vinhos realmente bons são realmente aqueles que a comunidade de apreciadores reconhece como tais. Agora, se o seu argumento na verdade não tiver negado a distinção entre gosto e preferência, diga-me, porque, então, eu o entendi realmente de modo inadequado.
Débora Aymoré disse…
Olá, André. Na verdade, acho que você compreendeu bem. Considero que o meu problema está mesmo na própria distinção entre gosto e preferência. Não tenho certeza de se a unidade proveniente da educação levaria ao bom gosto universal, talvez apenas ao generalizável àquele grupo e aos que a ele aderirem.
I'm not sure of how much Kantian your post really is. Let's check it out carefully.

i) Kant is fairly clear about taste and smell being inferior senses, that, insofar as they involve physicial contact and ingestion of the object, cannot be developed toward a true aesthetic experience. Please see Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, 156-60. This sole consideration would be enough to withdraw your entire argument.

ii) To make things even worse, Kant does not deal with the distinction between aesthetic taste and preferences in the way you did. On the contrary, Kant distinguishes between the taste of the senses, which everyone has his own, and the taste in the beauty or in the reflexion, which is universal. Please see Kritik der Urteilskraft, 12-22. Kant does not even use the term "preference", but "taste".

iii) It is false to say that Kant's "aesthetic taste" is an "objective apreciation of the intrinsic quality" of something. The "aesthetic taste" is actually the faculty of judgement of the beauty. Please see Kritik der Urteilskraft, XLV. And the beauty is that which is represented without concepts as an object for universal complaisance (Kritik der Urteilskraft, 17), a product of the free playing of faculties of sensitivity and reflexion (Kritik der Urteilskraft, XXXI).

iv) Hume was actually the main proponent of an aesthetics of the refined tastes of the most experienced connoisseurs, something very similar to which you argued for in your post. Kant was very hostile to that treatment of the issue, being favorable to a kind of reconciliation between refined and simple taste. Please see Kritik der Urteilskraft, 263.

v) Besides, Kant was very incisive to criticize this kind of Humean approach, which he found to be essentially wrong in willing to reach a piori conclusions about taste and beauty from a posteriori elements and patterns typical of particular groups, times and places. Please see Kritik der Urteilskraft, 143.

Thefore, either you change your theoretical from Kant to Hume (answering to Kantian objections to him), or you reform seriously your argument to fit it in a Kantian approach of your theme.
Anônimo disse…
Caro David, agradeço pela sua crítica contundente e respondo-lhe novamente em português. Por partes:

i) Kant de fato diz que paladar e olfato são inaptos para a experiência estética do belo. Mas, a meu ver, Kant emitiu um juízo precipitado, fruto de sua parca experiência com coisas como a enofilia e a perfumaria. Minhas razões para contradizer Kant são longas e exigem tratamento mais detalhado, coisa que farei numa postagem à parte. Por ora, basta saber que, para mim, a degustação de um bom vinho pode, sim, proporcionar aquele prazer desinteressado, universal, sem conceitos e necessário, produto do livre jogo de nossa sensibilidade e reflexão, a que Kant chama de experiência do belo. Os motivos dessa minha afirmação eu os forneço na postagem que farei.

ii) De fato, Kant não usa o termo "preferência", em contraste com "gosto", mas sim "gosto dos sentidos", que é sempre individual, e "gosto na experiência do belo", que é sempre universal. Eu não vejo, contudo, série violência às ideias dele em renomear como fiz as duas categorias, mas, por amor ao rigor e por fidelidade à linguagem de Kant, podemos mantê-las com os nomes originais. Mas é bom lembrar que, às vezes, para ser fiel às ideias de um autor, é preciso ser um pouco infiel aos termos em que ele se expressou. Mas concedo em renunciar às minhas inovações terminológicas em favor dos termos originalmente empregados.
Anônimo disse…
iii) Você disse que é falso dizer que, em Kant, o gosto estético é uma apreciação objetiva da qualidade intrínseca da coisa. Nisso você tem toda razão. Na verdade, Kant afirma mesmo que o gosto é sempre subjetivo, porque não é lógico (dependente de conceitos), e sim estético (dependente do prazer). Kant explica que, ao dizermos: "Isto é belo", parecermos estar falando de uma propriedade do objeto, quando na verdade estamos nos referindo apenas a uma experiência do sujeito. O motivo por que nos expressamos assim é, segundo Kant, que não queremos que nossa afirmação soe como simples revelação de nosso agrado subjetivo, e sim como enunciação de uma possibilidade universal (e, portanto, intersubjetiva) de prazer. Falamos da beleza do objeto como se fosse objetiva para assim fazermos justiça ao aspecto universal e intersubjetivo do prazer que a apreciação do objeto proporciona. Contudo, é possível retraduzir aquela minha afirmação para termos mais kantianos e dizer: Gosto é uma apreciação desinteressada (subjetiva porque dependente do prazer, mas também intersubjetiva, porque ultrapassa a agradabilidade individual) da capacidade que certo objeto tem de despertar em nós uma experiência do belo, quer dizer, de suscitar o livre jogo de nossas faculdades de sensibilidade e de reflexão. Aqui não se trata de uma simples troca de palavras, pois o modo como eu me expressara antes realmente sugeria uma ideia profundamente discordante da de Kant.
Anônimo disse…
iv) Na medida em que fala do belo como uma possibilidade de complacência universal, Kant rejeita, de fato, a ideia de que a experiência do belo seja exclusiva de uma elite de connaisseurs. Aliás, como Kant põe muito mais ênfase nos exemplos de beleza natural, ressalta muitas vezes que experiências como a da beleza de uma flor, do céu estrelado, da superfície do mar ou do pôr-do-sol estão acessíveis para todos os sujeitos, inclusive os espíritos mais incultos e simplórios. Mas me parece falso que Kant pense que seja assim para todas as experiências estéticas. Isso porque, na medida em que o exercício da faculdade do gosto pressupõe uma "consciência da separação, de tudo que pertence ao agradável e ao bom, da complacência que ainda lhe resta", ela pressupõe, também, para aqueles casos em que a longo cultivo apenas do gosto dos sentidos obscureceu o gosto estético, uma educação, ou reeducação, com vista ao exercício desinteresado da faculdade de gosto. Essa necessidade de educação do gosto não implica a pertença a uma classe de connaisseurs nem a adesão irrefletida aos padrões de gosto desta última, mas tampouco endossa a tese de que o gosto está sempre e imediatamente acessível para todo sujeito capaz de sensibilidade e reflexão, como acontece, por exceção, com a experiência do belo natural. O belo artístico muitas vezes exige uma prévia educação do gosto para que possa alcançar sua prometida universalidade subjetiva.
Anônimo disse…
v) Por fim, afirmações como a da superioridade do Château Margaux sobre o Château du Valieur não precisam ser entendidas como meramente o padrão de gosto atualmente vigente na elite de connaisseurs de vinhos. Como pretendo mostrar em minha postagem à parte, maus vinhos, como o Château du Valieur, só são capazes de despertar uma experiência subjetiva de agrado ou desagrado, mas bons vinhos, como o Château Margaux, são capazes de suscitar uma complacência universal, porque conseguem proporcionar uma experiência de harmonia entre sensibilidade e reflexão. Vou mostrar isso em maior detalhe na postagem dedicada ao tema. Se for bem sucedido, terei mostrado que é possível afirmar a partir de Kant (embora em contrário a algumas afirmações de Kant) o caráter estético da degustação reflexiva de bons vinhos. Prometo caprichar na construção desse argumento.

Abraço!
Fernanda disse…
Oi, André, eu li sua resposta e considerei que o ponto (iv) talvez requeira alguma explicação melhor do que você está chamando de "educação" (não sendo uma educação impositiva', no caso). Alguma coisa como o que você me explicou antes.

Bjs
alex disse…
caro andré, gostaria muito de tecer algum comentário sobre suas considerações sobre vinhos e relativismo, porém, vejo que não estou ainda a altura de tecer um contra ponto, se fosse o caso, ou adicionar algo de útil a sua complexa análise sobre o assunto. o que na verdade vim lhe dizer é que o conheci hoje atarvés de um amigo em comum que foi seu aluno na FCAT, de nome:ariel castro, que por sua vez me falou muito bem de sua pessoa e de sua capacidade intelectual com as questões mais críticas de nossa experiência humana, sou nutricionista e passei em filosofia na uepa, curso esse que sempre tive gosto por fazer, ele me indicou seu blog e pude ver o alto nível de suas análises, ainda complexas pra meu entendimento, mais garanto que chego lá; parabéns pelo seu blog, e espero trocar algumas experiência enriquecedoras com você, em outro momento quem sabe postarei um comentário a alura de sua retórica, um abraço.

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