Debatendo liberdade, autonomia e paternalismo
Essa postagem é um desenvolvimento da anterior. Dedica-se ao tema da liberdade, para primeiro expor o quadro teórico-conceitual dentro do qual se pensa a liberdade na democracia e depois responder, dentro desse quadro, às objeções e perguntas levantadas nos comentários à postagem "Democracia e Paternalismo".
No pensamento moderno, o mundo é pensado como um conjunto de fenômenos encadeados uns aos outros segundo nexos de causalidade. Cada fenômeno que ocorre é efeito de uma causa anterior e causa de um efeito posterior. Quando uma bola de bilhar se move em direção a outra, esse fenômeno é efeito, por exemplo, de o jogador haver batido na bola com o taco e é causa, por exemplo, de a segunda bola mover-se em direção à caçapa do canto. Esse encadeamento causal dá aos fenômenos uma unidade inteligível e permite que os chamemos, em seu conjunto, de "mundo".
Contudo, se os atos dos homens são também fenômenos, eles não estão, em princípio, isentos do encadeamento causal. São também eles causas de efeitos posteriores e efeitos de causas anteriores. Entre essas causas anteriores estão a volição e a escolha. Assim, se perguntamos porque a primeira bola moveu a segunda, podemos responder que foi porque ela foi, por sua vez, movida pelo taco do jogador. E, se perguntamos por que o jogador moveu seu taco de modo a atingir a bola, podemos responder que ele o fez porque assim quis e assim escolheu fazer.
Agora, se perguntamos por que o jogador quis e escolheu mover o taco para bater na bola e respondemos que foi porque queria ganhar o jogo (competitividade) e assim conseguir a quantia que havia apostado contra o outro jogador (ambição), estamos entrando numa via perigosa. Perigosa porque, ao tratar as volições e escolhas humanas como fenômenos como outros quaisquer, produzidos por causas anteriores, estaremos igualando a ação humana a um fenômeno causalmente explicável e, dessa forma, estaremos à primeira vista eliminando o espaço de liberdade da ação. Se dermos alguns passos adiante nessa direção, chegaremos à concepção segundo a qual o ser humano não é livre, pois tem suas ações determinadas causalmente pela interação entre circunstâncias (as condições que ele encontra) e egoísmo (uma tendência de traçar fins de auto-satisfação e usar as circunstâncias em seu redor para atingir esses fins).
O nome dessa concepção é necessitarismo: não há nada livre, tudo é necessário (quer dizer, determinado causalmente), inclusive a ação humana. Para o necessitarismo, a ideia de que uma ação foi livre é um absurdo e provém de uma percepção distorcida do homem acerca de suas próprias volições e escolhas. É que como o eu se identifica com essas volições e escolhas, a ponto de chamá-las de minhas, tem a ilusão de que é ele a causa desses fenômenos, vendo-se como uma espécie de "causa livre", algo que causa outras coisas sem ser causado por coisa alguma. O eu não se apercebe que as volições e escolhas são também elas causadas por circunstâncias e paixões que ele não escolheu e dos quais nem sempre é inteiramente consciente. Esse erro de autocompreensão seria o motivo de eu me ver, equivocadamente, como um agente livre.
Opõe-se a essa concepção uma outra, chamada libertarismo (libertarismo metafísico, e não libertarismo político, que é outra coisa). Para os libertaristas, as ações humanas (não todas, mas pelo menos algumas delas) são livres, no sentido de serem causadas por volições e escolhas do eu, que por sua vez não foram causadas por coisa alguma. O meio de refutar o necessitarismo é refutar o egoísmo: Se todas as volições e escolhas humanas puderem ser explicadas pelo egoísmo, então todas as volições e escolhas humanas são causadas por causas estranhas ao eu. Por isso, para responder ao desafio do necessitarista, o libertarista precisa mostrar que há (pelo menos algumas) volições e escolhas não egoístas. O modo como o libertarista tenta fazer isso é mostrando que há uma razão prática, no sentido de uma capacidade do homem de agir segundo os ditames de sua razão, mesmo quando estes divergem dos ditames do egoísmo.
Nessa linha de argumento, a ação egoísta é racional em sentido teórico, ou racional quanto aos meios. Seu fim é egoísta (movido por paixões e, por isso, irracional). Mas os meios que emprega, na medida em que são aqueles aptos a realizar o fim pretendido, são racionais. Já a ação não egoísta é racional em sentido prático, pois tanto seus fins quanto seus meios são racionais. Essa ação não egoísta ou prático-racional seria a ação moral. É assim que a questão de metafísica (Existe a liberdade? Ou melhor: Em que condições se pode dizer que uma ação é livre?) se converte numa questão de ética (Existe a ação moral? Ou melhor: Em que condições se pode dizer que uma ação é moral?). Na ação moral, defende o libertarista, o homem se eleva acima da natureza, quebra o mero encadeamento causal, deixa de ter sua ação determinada por causas alheias à sua vontade e passa a determinar-se a si mesmo em sentido pleno. Ao vencer o egoísmo, o homem se torna virtuoso em sentido moral e livre em sentido metafísico.
Essas duas posições metafísicas (necessitarismo e libertarismo) estão por trás da distinção política entre dois tipos de liberdade: a liberdade negativa (liberdade como independência, ou ausência de coerção exterior) e liberdade positiva (liberdade como autodomínio, ou ausência de coerção interior). Quem é necessitarista acredita que as volições e escolhas humanas, tais como todos os demais fenômenos no mundo, estão presos ao encadeamento causal e são determinados por causas anteriores; por conseguinte, aceita a teoria do binômio circunstâncias/egoísmo e pensa que a única liberdade de que se pode falar com bom senso é a liberdade aparente, que consiste em que as ações de um agente tenham provindo de suas próprias volições e escolhas, sem interferência sobre estas da coerção de terceiros. Tal liberdade é a liberdade negativa (como ausência de coerção exterior), preferida pelos liberais. Pretender, contudo, que tais volições e escolhas não tenham sido, por sua vez, determinadas por outras causas anteriores seria querer demais, seria ir além do que é racionalmente aceitável.
Já quem é libertarista acredita que algumas volições e escolhas humanas escapam ao encadeamento causal dos fenômenos em geral e são verdadeiramente livres em sentido metafísico; por conseguinte, rejeita que o binômio circunstâncias/egoísmo possa explicar todas as volições e escolhas humanas. Propõe, para além do egoísmo, uma outra fonte de volições e escolhas, que seria a razão prática, capaz de ditames não apenas não egoístas, mas até por vezes contrários ao egoísmo. Para o libertarista, não basta a liberdade negativa, porque, mesmo estando ausente qualquer coerção exterior, o eu poderia ainda ser vítima da coerção interior de seu egoísmo, o qual atuaria como verdadeira causa determinante de suas ações. Seria preciso ir além e formar o indivíduo para que ele seja capaz de agir moralmente, obedecendo aos ditames da razão prática, conquistando, assim, inteiro domínio sobre si mesmo e assumindo inteira determinação de suas ações. Tal liberdade é a liberdade positiva (como ausência de coerção interior), preferida pelos republicanos. Para estes, portanto, a verdadeira liberdade exige tanto a não coerção exterior quanto a virtude moral.
Exposto esse quadro teórico-conceitual, posso agora retomar algumas das observações que fiz nos comentários à postagem anterior e responder a algumas das perguntas e opiniões que os leitores registraram naquele mesmo espaço. Não faço, contudo, referências nominais aos leitores, pelo que espero que não se importem ou que me perdoem.
Eu fiz uma distinção entre autonomia como direito e autonomia como fato. Permitam-me citar o que disse naquela ocasião:
Creio que posso agora precisar melhor essa distinção. A autonomia como direito tem relação direta como a liberdade negativa. A partir de certa idade, o agente pratica ações que se consideram livres toda vez que não tiverem sido exteriormente coagidas, tendo resultado, apenas, das volições e escolhas do próprio agente. Se essas volições e escolhas são, por sua vez, determinadas por outras causas, alheias à vontade e talvez até à consciência do agente, isso não vem ao caso. Dessa forma trabalha o liberalismo, que, porque parte do necessitarismo, chegando ao egoísmo, considera que todas as volições e escolhas humanas são determinadas por causas estranhas ao eu, não havendo, portanto, diferença entre a volição e escolha de fazer certa coisa após cuidadosa reflexão e a mesma volição e escolha tomada por impulso, influência, manipulação etc. Diferença há apenas se o agente é coagido por outro agente, porque aí a ação não terá sido resultado da sua volição e escolha, e sim das de outrem.
Para quem acredita nisso, os exemplos da esposa controlada pelo marido que a sustenta, do fiel controlado pela fé em que acredita, da pessoa carente controlada por aqueles que lhe prestam assistência etc., não seriam contra-exemplos relevantes. A menos que a esposa esteja sendo coagida pelo marido a agir de certa maneira; a menos que o fiel esteja sendo coagido pelos sacerdotes ou correligionários a agir de certa maneira; a menos que a pessoa carente esteja sendo coagida pelos que lhe prestam asssistência a agir de certa maneira; enfim, a menos que esteja havendo não influência, persuasão, manipulação, mas sim propriamente coerção (mediante violência ou ameaça), o agente será considerado autônomo ou livre no sentido fraco e negativo com que o necessitarismo se contenta.
Já o que chamei de autonomia como fato se aproxima mais da liberdade positiva. Nesse caso, exige-se, além da não coerção exterior, a não coerção interior, em que se destaca a não coerção pelo egoísmo, mas também se poderia encaixar a não coerção pela ignorância, pelo erro, pelo preconceito, pela influência, pela manipulação, pelo hábito etc. Tais coisas, é importante notar, só fazem diferença para o libertarista. Para o necessitarista, uma escolha feita após reflexão e uma escolha feita por influência de um discurso manipulador ou de crenças equivocadas são escolhas igualmente livres, no sentido de não coagidas exteriormente. Para o libertarista, há boa diferença entre elas. Numa, o sujeito é ativo, noutra é passivo. Numa, ele determina as suas ações, noutra suas ações são determinadas por forças alheias a ele. Por isso, para o libertarista republicano, seria desejável que a formação do indivíduo e do cidadão o tornasse apto para agir segundo os ditames de sua razão prática, tornando-o, assim, verdadeiramente livre.
Para quem defende essas ideias, os referidos contra-exemplos são relevantes. A esposa, na medida em que depende financeiramente do marido, deveria ser considerada não livre, porque se encontra em situação especialmente vulnerável à influência, manipulação e controle por parte dele. O crente religioso que antepõe sua fé à própria razão (o chamado fanático) também não seria livre, porque sua adesão irrefletida aos ditames de sua crença e de seus sacerdotes o tornaria inapto a obedecer aos ditames da razão prática. A pessoa carente que depende dos que lhe prestam assistência também seria não livre, na medida em que não poderia voltar-se contra os interesses e comandos da mão que o alimenta. Essas considerações ajudam a entender por que os republicanos do passado foram favoráveis à exclusão das mulheres, dos clérigos, dos analfabetos e dos pobres do espaço público. É que, para eles, para votar é preciso ser livre, e para ser livre é preciso não estar em nenhuma dessas situações de vulnerabilidade a outros ditames que não os da própria razão.
Esses esclarecimentos ajudam também a entender qual parte da concepção de liberdade positiva é uma construção sócio-histórica e qual parte, não. É claro que o que conta como ignorância, erro, egoísmo, preconceito etc. muda de época para época e de sociedade para sociedade. Mas a ideia de que, para ser livre, é preciso escapar à influência dessas coisas é uma constante. Por exemplo, a suposta superioridade de homens sobre mulheres foi no passado considerada verdadeira (a não adesão à qual contaria, então, como ignorância ou erro) e é hoje considerada falsa (a adesão à qual contaria, então, como erro ou preconceito). Isso de fato muda socio-historicamente. Mas não se pode dizer o mesmo da ideia de que quem age levado por um erro não está agindo livremente. O que conta como erro muda; mas o peso que, na perspectiva libertarista, o erro tem para a liberdade não muda. As perguntas "O que conta como egoísmo?", "O que conta como preconceito?", "O que conta como manipulação?" etc. recebem diferentes respostas de época para época e de sociedade para sociedade. Mas os libertaristas de todos os tempos e lugares concordam que estar isento de egoísmo, de preconceito, de manipulação etc. é necessário para ter volições e escolhas livres.
Por fim, uma questão que vai ao encontro de várias das perguntas e desafios levantados nos comentários. Vimos que, para os libertaristas, a ação livre é não apenas aquela que é exteriormente não coagida, mas também a que é interiormente não coagida, ou seja, causada por volições e escolhas livres, no sentido de isentas de egoísmo, de ignorância, de erro, de manipulação etc. e determinadas apenas pela razão prática. Ora, supondo, por ora, que o libertarista tenha razão, ele apenas teria provado a possibilidade metafísica de uma ação inteiramente livre. Isso ainda não prova que essa ação seja socialmente possível. Em outras palavras, teríamos que nos perguntar quais seriam as condições sociais necessárias para a formação de um agente livre em sentido positivo e se tais condições são viáveis de serem encontradas ou produzidas hoje. Afinal, seria possível que um libertarista aceitasse a ideia de que o homem só é livre quando é capaz de agir segundo os ditames de sua razão prática, mas recusasse a ideia de que, nas condições sociais de hoje em dia, isso seja possível. Ele poderia achar que, na sociedade contemporânea, o homem está sempre submisso a poderes externos e vulnerável a influências ideológicas, de modo que sua capacidade de ser livre se vê complemente embotada (parecem pensar assim muitos socialistas, comunistas, anarquistas etc.). Seria, por assim dizer, um libertarista quanto à possibilidade metafísica de liberdade, mas um anti-libertarista quanto à possibilidade social da liberdade, ao menos nas circunstâncias atuais.
Essa é uma reflexão importante porque às vezes a pergunta pelas condições sociais da liberdade positiva não é levada às suas últimas consequências. Ora, é verdade que a mulher sustentada pelo marido e a pessoa carente assistida por outros não é livre exatamente na medida dessa dependência. Mas daí não se segue que devamos assumir ingenuamente que a pessoa que trabalha e provê o próprio sustento é livre. Talvez seja livre para investir e consumir o que ganha sem pedir permissão de terceiros, mas essa é uma liberdade muito restrita. Se ganha pouco, é muito pouco livre. Se ganha muito, precisa seguir trabalhando ou investindo num volume e ritmo tais que mantenham sua riqueza. Mas isso lhe tira tempo, o impede de conviver com as pessoas de quem mais gosta e de fazer o que mais lhe dá prazer. Nesse sentido, é até menos livre que quem ganha pouco. O ideal, parece, seria um regime em que cada um tivesse a garantia de que, em troca de uma quantidade não exagerada (no sentido de não maior que o compatível com outros objetivos valiosos de vida) de trabalho, receberá uma quantidade não insuficiente (no sentido de não menor que o necessário para realizar objetivos valiosos de vida) de dinheiro. Mas isso exige um sistema que não seja o capitalismo, ou pelo menos não nenhum sistema que até hoje tenha recebido esse nome.
Da mesma forma, podemos perceber que o fanático religioso não é livre em sentido positivo, mas daí não se segue que o indivíduo laico médio o seja. Se suas crenças não vêm da religião, elas certamente vêm de alguma outra fonte, como a ciência, a imprensa e a cultura circundante. Se a ciência não for livre (o que implica inclusive livre de pressões do mercado e do Estado, livre de preconceitos e ideologias, livre de tradicionalismos estéreis e de modismos vazios etc.), se a imprensa não for livre (não apenas livre de coerção e censura, mas livre de interesses particularistas, livre de monopólios e jogos de prestígio e poder, livre de futilidades e preconceitos etc.) e se a cultura circundante não for livre (em todos esses sentidos referidos), tampouco será livre o agente que se guie por essas fontes de crença. Mesmo que se fale da possibilidade de o agente manter uma postura crítica em relação a essas fontes de informação - o que é um fato -, não se pode acreditar que negar o que diz a ciência, a imprensa e a cultura circundante com base em intuições, achismos e idiossincrasias seja lá grande vantagem em termos de racionalidade. Seria preciso contrapor a fontes de informação distorcidas outras fontes de informação menos distorcidas, o que pode simplesmente não estar à disposição do agente. Novamente, parece que seria necessário um outro sistema social para tornar possíveis fontes de informação mais livres e confiáveis que as atuais, o que aponta novamente para uma profunda reforma do tipo de sistema político em que vivemos.
Na medida em que as condições sociais da liberdade positiva nem sempre estão presentes e precisam, por isso mesmo, ser produzidas, percebe-se que a liberdade individual positiva só pode existir onde exista um sistema político-econômico-cultural que a torne possível. Criticar a esposa economicamente dependente, o fanático religioso ou o cliente do assistencialismo estatal como pessoas não livres está correto, mas não pode obscurecer o fato de que os assim considerados livres em sentido positivo tampouco o são e só o poderiam ser sob condições sociais totalmente outras.
No pensamento moderno, o mundo é pensado como um conjunto de fenômenos encadeados uns aos outros segundo nexos de causalidade. Cada fenômeno que ocorre é efeito de uma causa anterior e causa de um efeito posterior. Quando uma bola de bilhar se move em direção a outra, esse fenômeno é efeito, por exemplo, de o jogador haver batido na bola com o taco e é causa, por exemplo, de a segunda bola mover-se em direção à caçapa do canto. Esse encadeamento causal dá aos fenômenos uma unidade inteligível e permite que os chamemos, em seu conjunto, de "mundo".
Contudo, se os atos dos homens são também fenômenos, eles não estão, em princípio, isentos do encadeamento causal. São também eles causas de efeitos posteriores e efeitos de causas anteriores. Entre essas causas anteriores estão a volição e a escolha. Assim, se perguntamos porque a primeira bola moveu a segunda, podemos responder que foi porque ela foi, por sua vez, movida pelo taco do jogador. E, se perguntamos por que o jogador moveu seu taco de modo a atingir a bola, podemos responder que ele o fez porque assim quis e assim escolheu fazer.
Agora, se perguntamos por que o jogador quis e escolheu mover o taco para bater na bola e respondemos que foi porque queria ganhar o jogo (competitividade) e assim conseguir a quantia que havia apostado contra o outro jogador (ambição), estamos entrando numa via perigosa. Perigosa porque, ao tratar as volições e escolhas humanas como fenômenos como outros quaisquer, produzidos por causas anteriores, estaremos igualando a ação humana a um fenômeno causalmente explicável e, dessa forma, estaremos à primeira vista eliminando o espaço de liberdade da ação. Se dermos alguns passos adiante nessa direção, chegaremos à concepção segundo a qual o ser humano não é livre, pois tem suas ações determinadas causalmente pela interação entre circunstâncias (as condições que ele encontra) e egoísmo (uma tendência de traçar fins de auto-satisfação e usar as circunstâncias em seu redor para atingir esses fins).
O nome dessa concepção é necessitarismo: não há nada livre, tudo é necessário (quer dizer, determinado causalmente), inclusive a ação humana. Para o necessitarismo, a ideia de que uma ação foi livre é um absurdo e provém de uma percepção distorcida do homem acerca de suas próprias volições e escolhas. É que como o eu se identifica com essas volições e escolhas, a ponto de chamá-las de minhas, tem a ilusão de que é ele a causa desses fenômenos, vendo-se como uma espécie de "causa livre", algo que causa outras coisas sem ser causado por coisa alguma. O eu não se apercebe que as volições e escolhas são também elas causadas por circunstâncias e paixões que ele não escolheu e dos quais nem sempre é inteiramente consciente. Esse erro de autocompreensão seria o motivo de eu me ver, equivocadamente, como um agente livre.
Opõe-se a essa concepção uma outra, chamada libertarismo (libertarismo metafísico, e não libertarismo político, que é outra coisa). Para os libertaristas, as ações humanas (não todas, mas pelo menos algumas delas) são livres, no sentido de serem causadas por volições e escolhas do eu, que por sua vez não foram causadas por coisa alguma. O meio de refutar o necessitarismo é refutar o egoísmo: Se todas as volições e escolhas humanas puderem ser explicadas pelo egoísmo, então todas as volições e escolhas humanas são causadas por causas estranhas ao eu. Por isso, para responder ao desafio do necessitarista, o libertarista precisa mostrar que há (pelo menos algumas) volições e escolhas não egoístas. O modo como o libertarista tenta fazer isso é mostrando que há uma razão prática, no sentido de uma capacidade do homem de agir segundo os ditames de sua razão, mesmo quando estes divergem dos ditames do egoísmo.
Nessa linha de argumento, a ação egoísta é racional em sentido teórico, ou racional quanto aos meios. Seu fim é egoísta (movido por paixões e, por isso, irracional). Mas os meios que emprega, na medida em que são aqueles aptos a realizar o fim pretendido, são racionais. Já a ação não egoísta é racional em sentido prático, pois tanto seus fins quanto seus meios são racionais. Essa ação não egoísta ou prático-racional seria a ação moral. É assim que a questão de metafísica (Existe a liberdade? Ou melhor: Em que condições se pode dizer que uma ação é livre?) se converte numa questão de ética (Existe a ação moral? Ou melhor: Em que condições se pode dizer que uma ação é moral?). Na ação moral, defende o libertarista, o homem se eleva acima da natureza, quebra o mero encadeamento causal, deixa de ter sua ação determinada por causas alheias à sua vontade e passa a determinar-se a si mesmo em sentido pleno. Ao vencer o egoísmo, o homem se torna virtuoso em sentido moral e livre em sentido metafísico.
Essas duas posições metafísicas (necessitarismo e libertarismo) estão por trás da distinção política entre dois tipos de liberdade: a liberdade negativa (liberdade como independência, ou ausência de coerção exterior) e liberdade positiva (liberdade como autodomínio, ou ausência de coerção interior). Quem é necessitarista acredita que as volições e escolhas humanas, tais como todos os demais fenômenos no mundo, estão presos ao encadeamento causal e são determinados por causas anteriores; por conseguinte, aceita a teoria do binômio circunstâncias/egoísmo e pensa que a única liberdade de que se pode falar com bom senso é a liberdade aparente, que consiste em que as ações de um agente tenham provindo de suas próprias volições e escolhas, sem interferência sobre estas da coerção de terceiros. Tal liberdade é a liberdade negativa (como ausência de coerção exterior), preferida pelos liberais. Pretender, contudo, que tais volições e escolhas não tenham sido, por sua vez, determinadas por outras causas anteriores seria querer demais, seria ir além do que é racionalmente aceitável.
Já quem é libertarista acredita que algumas volições e escolhas humanas escapam ao encadeamento causal dos fenômenos em geral e são verdadeiramente livres em sentido metafísico; por conseguinte, rejeita que o binômio circunstâncias/egoísmo possa explicar todas as volições e escolhas humanas. Propõe, para além do egoísmo, uma outra fonte de volições e escolhas, que seria a razão prática, capaz de ditames não apenas não egoístas, mas até por vezes contrários ao egoísmo. Para o libertarista, não basta a liberdade negativa, porque, mesmo estando ausente qualquer coerção exterior, o eu poderia ainda ser vítima da coerção interior de seu egoísmo, o qual atuaria como verdadeira causa determinante de suas ações. Seria preciso ir além e formar o indivíduo para que ele seja capaz de agir moralmente, obedecendo aos ditames da razão prática, conquistando, assim, inteiro domínio sobre si mesmo e assumindo inteira determinação de suas ações. Tal liberdade é a liberdade positiva (como ausência de coerção interior), preferida pelos republicanos. Para estes, portanto, a verdadeira liberdade exige tanto a não coerção exterior quanto a virtude moral.
Exposto esse quadro teórico-conceitual, posso agora retomar algumas das observações que fiz nos comentários à postagem anterior e responder a algumas das perguntas e opiniões que os leitores registraram naquele mesmo espaço. Não faço, contudo, referências nominais aos leitores, pelo que espero que não se importem ou que me perdoem.
Eu fiz uma distinção entre autonomia como direito e autonomia como fato. Permitam-me citar o que disse naquela ocasião:
Como direito, a autonomia é pressuposta. Isso quer dizer que, por mais heterônoma que a pessoa de fato seja, ela, a partir de certa idade (aqui tomada como marco temporal convencional), será considerada autônoma para fins morais, jurídicos e políticos. Agora, como fato, a autonomia é desenvolvida e conquistada, quase nunca completamente, ao longo de uma vida inteira. Como fato, a autonomia depende de experiência, conhecimento, informação, formação e independência financeira. Tais coisas precisam ser fomentadas na pessoa para que a forma da autonomia pressuposta possa ser aos poucos preenchida pelo conteúdo da autonomia real. O que não se pode é tomar a autonomia como fato como requisito para gozar da autonomia como direito. Toda vez que se faz isso, abre-se caminho para o paternalismo de uma classe que se considerará mais autônoma e capaz de tomar decisões melhores que o restante, ainda não autônomo, da sociedade.
Creio que posso agora precisar melhor essa distinção. A autonomia como direito tem relação direta como a liberdade negativa. A partir de certa idade, o agente pratica ações que se consideram livres toda vez que não tiverem sido exteriormente coagidas, tendo resultado, apenas, das volições e escolhas do próprio agente. Se essas volições e escolhas são, por sua vez, determinadas por outras causas, alheias à vontade e talvez até à consciência do agente, isso não vem ao caso. Dessa forma trabalha o liberalismo, que, porque parte do necessitarismo, chegando ao egoísmo, considera que todas as volições e escolhas humanas são determinadas por causas estranhas ao eu, não havendo, portanto, diferença entre a volição e escolha de fazer certa coisa após cuidadosa reflexão e a mesma volição e escolha tomada por impulso, influência, manipulação etc. Diferença há apenas se o agente é coagido por outro agente, porque aí a ação não terá sido resultado da sua volição e escolha, e sim das de outrem.
Para quem acredita nisso, os exemplos da esposa controlada pelo marido que a sustenta, do fiel controlado pela fé em que acredita, da pessoa carente controlada por aqueles que lhe prestam assistência etc., não seriam contra-exemplos relevantes. A menos que a esposa esteja sendo coagida pelo marido a agir de certa maneira; a menos que o fiel esteja sendo coagido pelos sacerdotes ou correligionários a agir de certa maneira; a menos que a pessoa carente esteja sendo coagida pelos que lhe prestam asssistência a agir de certa maneira; enfim, a menos que esteja havendo não influência, persuasão, manipulação, mas sim propriamente coerção (mediante violência ou ameaça), o agente será considerado autônomo ou livre no sentido fraco e negativo com que o necessitarismo se contenta.
Já o que chamei de autonomia como fato se aproxima mais da liberdade positiva. Nesse caso, exige-se, além da não coerção exterior, a não coerção interior, em que se destaca a não coerção pelo egoísmo, mas também se poderia encaixar a não coerção pela ignorância, pelo erro, pelo preconceito, pela influência, pela manipulação, pelo hábito etc. Tais coisas, é importante notar, só fazem diferença para o libertarista. Para o necessitarista, uma escolha feita após reflexão e uma escolha feita por influência de um discurso manipulador ou de crenças equivocadas são escolhas igualmente livres, no sentido de não coagidas exteriormente. Para o libertarista, há boa diferença entre elas. Numa, o sujeito é ativo, noutra é passivo. Numa, ele determina as suas ações, noutra suas ações são determinadas por forças alheias a ele. Por isso, para o libertarista republicano, seria desejável que a formação do indivíduo e do cidadão o tornasse apto para agir segundo os ditames de sua razão prática, tornando-o, assim, verdadeiramente livre.
Para quem defende essas ideias, os referidos contra-exemplos são relevantes. A esposa, na medida em que depende financeiramente do marido, deveria ser considerada não livre, porque se encontra em situação especialmente vulnerável à influência, manipulação e controle por parte dele. O crente religioso que antepõe sua fé à própria razão (o chamado fanático) também não seria livre, porque sua adesão irrefletida aos ditames de sua crença e de seus sacerdotes o tornaria inapto a obedecer aos ditames da razão prática. A pessoa carente que depende dos que lhe prestam assistência também seria não livre, na medida em que não poderia voltar-se contra os interesses e comandos da mão que o alimenta. Essas considerações ajudam a entender por que os republicanos do passado foram favoráveis à exclusão das mulheres, dos clérigos, dos analfabetos e dos pobres do espaço público. É que, para eles, para votar é preciso ser livre, e para ser livre é preciso não estar em nenhuma dessas situações de vulnerabilidade a outros ditames que não os da própria razão.
Esses esclarecimentos ajudam também a entender qual parte da concepção de liberdade positiva é uma construção sócio-histórica e qual parte, não. É claro que o que conta como ignorância, erro, egoísmo, preconceito etc. muda de época para época e de sociedade para sociedade. Mas a ideia de que, para ser livre, é preciso escapar à influência dessas coisas é uma constante. Por exemplo, a suposta superioridade de homens sobre mulheres foi no passado considerada verdadeira (a não adesão à qual contaria, então, como ignorância ou erro) e é hoje considerada falsa (a adesão à qual contaria, então, como erro ou preconceito). Isso de fato muda socio-historicamente. Mas não se pode dizer o mesmo da ideia de que quem age levado por um erro não está agindo livremente. O que conta como erro muda; mas o peso que, na perspectiva libertarista, o erro tem para a liberdade não muda. As perguntas "O que conta como egoísmo?", "O que conta como preconceito?", "O que conta como manipulação?" etc. recebem diferentes respostas de época para época e de sociedade para sociedade. Mas os libertaristas de todos os tempos e lugares concordam que estar isento de egoísmo, de preconceito, de manipulação etc. é necessário para ter volições e escolhas livres.
Por fim, uma questão que vai ao encontro de várias das perguntas e desafios levantados nos comentários. Vimos que, para os libertaristas, a ação livre é não apenas aquela que é exteriormente não coagida, mas também a que é interiormente não coagida, ou seja, causada por volições e escolhas livres, no sentido de isentas de egoísmo, de ignorância, de erro, de manipulação etc. e determinadas apenas pela razão prática. Ora, supondo, por ora, que o libertarista tenha razão, ele apenas teria provado a possibilidade metafísica de uma ação inteiramente livre. Isso ainda não prova que essa ação seja socialmente possível. Em outras palavras, teríamos que nos perguntar quais seriam as condições sociais necessárias para a formação de um agente livre em sentido positivo e se tais condições são viáveis de serem encontradas ou produzidas hoje. Afinal, seria possível que um libertarista aceitasse a ideia de que o homem só é livre quando é capaz de agir segundo os ditames de sua razão prática, mas recusasse a ideia de que, nas condições sociais de hoje em dia, isso seja possível. Ele poderia achar que, na sociedade contemporânea, o homem está sempre submisso a poderes externos e vulnerável a influências ideológicas, de modo que sua capacidade de ser livre se vê complemente embotada (parecem pensar assim muitos socialistas, comunistas, anarquistas etc.). Seria, por assim dizer, um libertarista quanto à possibilidade metafísica de liberdade, mas um anti-libertarista quanto à possibilidade social da liberdade, ao menos nas circunstâncias atuais.
Essa é uma reflexão importante porque às vezes a pergunta pelas condições sociais da liberdade positiva não é levada às suas últimas consequências. Ora, é verdade que a mulher sustentada pelo marido e a pessoa carente assistida por outros não é livre exatamente na medida dessa dependência. Mas daí não se segue que devamos assumir ingenuamente que a pessoa que trabalha e provê o próprio sustento é livre. Talvez seja livre para investir e consumir o que ganha sem pedir permissão de terceiros, mas essa é uma liberdade muito restrita. Se ganha pouco, é muito pouco livre. Se ganha muito, precisa seguir trabalhando ou investindo num volume e ritmo tais que mantenham sua riqueza. Mas isso lhe tira tempo, o impede de conviver com as pessoas de quem mais gosta e de fazer o que mais lhe dá prazer. Nesse sentido, é até menos livre que quem ganha pouco. O ideal, parece, seria um regime em que cada um tivesse a garantia de que, em troca de uma quantidade não exagerada (no sentido de não maior que o compatível com outros objetivos valiosos de vida) de trabalho, receberá uma quantidade não insuficiente (no sentido de não menor que o necessário para realizar objetivos valiosos de vida) de dinheiro. Mas isso exige um sistema que não seja o capitalismo, ou pelo menos não nenhum sistema que até hoje tenha recebido esse nome.
Da mesma forma, podemos perceber que o fanático religioso não é livre em sentido positivo, mas daí não se segue que o indivíduo laico médio o seja. Se suas crenças não vêm da religião, elas certamente vêm de alguma outra fonte, como a ciência, a imprensa e a cultura circundante. Se a ciência não for livre (o que implica inclusive livre de pressões do mercado e do Estado, livre de preconceitos e ideologias, livre de tradicionalismos estéreis e de modismos vazios etc.), se a imprensa não for livre (não apenas livre de coerção e censura, mas livre de interesses particularistas, livre de monopólios e jogos de prestígio e poder, livre de futilidades e preconceitos etc.) e se a cultura circundante não for livre (em todos esses sentidos referidos), tampouco será livre o agente que se guie por essas fontes de crença. Mesmo que se fale da possibilidade de o agente manter uma postura crítica em relação a essas fontes de informação - o que é um fato -, não se pode acreditar que negar o que diz a ciência, a imprensa e a cultura circundante com base em intuições, achismos e idiossincrasias seja lá grande vantagem em termos de racionalidade. Seria preciso contrapor a fontes de informação distorcidas outras fontes de informação menos distorcidas, o que pode simplesmente não estar à disposição do agente. Novamente, parece que seria necessário um outro sistema social para tornar possíveis fontes de informação mais livres e confiáveis que as atuais, o que aponta novamente para uma profunda reforma do tipo de sistema político em que vivemos.
Na medida em que as condições sociais da liberdade positiva nem sempre estão presentes e precisam, por isso mesmo, ser produzidas, percebe-se que a liberdade individual positiva só pode existir onde exista um sistema político-econômico-cultural que a torne possível. Criticar a esposa economicamente dependente, o fanático religioso ou o cliente do assistencialismo estatal como pessoas não livres está correto, mas não pode obscurecer o fato de que os assim considerados livres em sentido positivo tampouco o são e só o poderiam ser sob condições sociais totalmente outras.
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