Filosofia Moral: Ética e Moral (2)
A postagem "Filosofia Moral: Ética e Moral", que publiquei em 10 de novembro de 2007, se tornou ao longo do tempo a postagem mais comentada e visualizada dos 5 anos de meu blog, tendo até o momento 38 comentários e mais de 9.000 visualizações. Em homenagem a essa marca, que sem dúvida me surpreende e naturalmente me deixa muito contente, decidi publicar uma segunda postagem, que ao mesmo tempo prossegue, complementa e aperfeiçoa aquela primeira. Principalmente para aqueles que procuram aquela minha postagem atrás de leitura introdutória para suas pesquisas penso que esta postagem complementar será muito útil. Organizarei a postagem em tópicos, de modo a facilitar a apreensão de seu conteúdo.
1) Origem dos termos "ética" e "moral"
Ética vem do grego "éthos" e moral, do latim "mos". Tanto "ethos" quanto "mos" significam a mesma coisa: hábito, costume. Quando os filósofos gregos quiseram cunhar um nome para a parte da filosofia que se ocupa com as ações cotidianas do indivíduo, criaram a expressão "ethiké epistéme", que significava "ciência dos costumes" ou, como ficou conhecida, "ciência ética", ou simplesmente "ética". Já quando os filósofos romanos, que eram atentos leitores dos gregos, quiseram traduzir para o latim a expressão "ethiké epistéme", tentaram encontrar um equivalente em sua língua e cunharam "scientia moralis", que significava "ciência dos costumes" ou, como ficou conhecida, "ciência moral", ou simplesmente "moral". Assim, qualquer diferença que se possa encontrar entre "ética" e "moral" não advém do significado original dos dois termos, pois estes, em sua origem, eram apenas a tradução um do outro.
Há também uma versão segundo a qual "ética" não teria sua origem no grego "éthos", escrito "έθος", com "ε" (épsilon, letra grega que soa como um "e" curto e aberto), "costume", e sim no grego "éthos" escrito "ήθος", com "η" (eta, letra grega que soa como um "e" longo e fechado), "habitação". Para os que defendem essa versão, essa segunda forma de "éthos" ("ήθος", com "η") designaria um modo de ser, um caráter habitual, um conjunto de traços e ações que constituem a identidade de quem se é, nos quais se está à vontade, "em casa". Nesse caso, a "ethiké epistéme" significaria não a ciência dos costumes, e sim a ciência do estar em casa, do ser si mesmo, do encontrar-se em sua própria identidade, sem distanciar-se de si nem de seus valores. O fato de que "ética" era escrita "ηθικά", com "η", nos tratados gregos parece corroborar essa versão. Nesse caso, a tradução de "ηθικά" por "moralis" teria sido um erro dos filósofos romanos.
2) Formas de distinção entre ética e moral
Há duas tradições de distinção entre os dois termos. Uma delas é francesa e ganhou fama no Período das Luzes, no qual a célebre "Enciclopédia" de D'Alembert e Diderrot atribuiu a "moral" o sentido de conjunto de normas e valores em que os homens de certa época e lugar acreditam e que realizam mediante suas ações, enquanto a ética seria o conjunto de teorias filosóficas, racionais e reflexivas, sobre as normas e os valores em que os homens deveriam acreditar e que eles deveriam realizar em suas ações. Nessa tradição, a moral tem a ver com as normas e valores que já são seguidos na prática, os quais podem ser habituais, preconceituosos, supersticiosos, cruéis e irracionais de várias maneiras. A ética, ao contrário, é coisa dos filósofos, está no plano da teoria, da especulação, da reflexão e argumentação racional. Em suma: A moral seria aquilo que os homens comuns aceitam e praticam como certo e errado; a ética seria aquilo que os filósofos pensam e propõem como certo e errado. Outra forma de dizer a mesma coisa seria que a ética é uma reflexão sobre a moral; ou ainda que a ética é a moral quando submetida à crítica da razão.
A segunda tradição é alemã e tem origem nas maneiras distintas como Kant e Hegel conceberam (ou pelo menos nas maneiras distintas como geralmente se alega que eles conceberam) a reflexão sobre o bem e o mal. Segundo geralmente se alega, Kant imaginou a moral como um conjunto de normas ditadas pela razão, as quais seriam as mesmas para todos os homens, em todas as épocas e lugares. Já Hegel, contrapondo-se a Kant, chamou o que este propunha de "moralidade" e disse que ela era demasiadamente abstrata, vazia, inflexível e incapaz de motivar o ser humano. Em lugar da "moralidade" kantiana, Hegel propôs-se falar de uma "eticidade", a qual seria, segundo se alega, um conjunto de crenças, valores e ideais que os homens de certa época e certo lugar carregam consigo, porque foram formados neles desde a infância e porque por meio deles se entendem e convivem uns com os outros, formando sua identidade individual e coletiva. Assim, "moralidade" e "eticidade" se tornam rótulos convenientes para duas abordagens da ética: Uma com base em normas racionais válidas para todos (moralidade, Kant) e outra com base nas convicções culturais de cada povo (eticidade, Hegel). Embora essas estejam longe de ser boas caracterizações das concepções éticas de Kant e Hegel, é importante tê-las em vista para compreender de que modo moral e ética vieram a significar duas diferentes abordagens das questões do que se deve fazer.
3) Objeto da ética e da moral
A ética é uma teoria da vida boa para mim. Como assim? É uma teoria que procura responder: De todas as coisas possíveis de serem feitas, vivenciadas e realizadas na vida, qual delas é a que vale mais e realmente a pena? De que modo devo viver a minha vida? Que tipo de pessoa eu sou e que tipo de pessoa eu quero ser? O que espero ter sido e feito na vida, quando estiver velho e olhar para ela retrospectivamente? Todas essas são questões éticas. Responder a elas é traçar para si um propósito, um fim, um "télos" na vida. É definir para onde se quer caminhar e como se pretende chegar lá. Um homem de negócios, um filantropo, um artista, um sacerdote, todos eles são homens que se fizeram as mesmas questões éticas acima, mas deram a elas diferentes respostas. O que importa no fim das contas? Ter riqueza, sucesso e poder? Dedicar-se aos outros e aliviar as dores do mundo? Viver o prazer, o amor e a beleza? Voltar-se para Deus e ter uma vida neste mundo como preparação para uma vida noutro mundo? Essas são algumas das alternativas que se abrem para todo aquele que se pergunta o que pretende fazer de sua vida.
A moral é uma teoria da convivência justa com os outros. Não tem a ver com o que quero para mim, e sim com o respeito que devo aos outros. Não tem a ver com os meus fins, e sim com os limites que todos temos que respeitar, quaisquer que sejam os fins que estejamos perseguindo. A moral responde à seguinte questão: Quais são as condições de uma convivência pacífica, respeitosa e solidária com os demais seres humanos? Ou, o que é o mesmo: Uma vez que todos somos livres e iguais e todos temos direito a perseguir nossos fins éticos, mas sem prejudicar-nos ou causarmos danos uns aos outros, quais são os atos que devo obrigatoriamente praticar e que devo obrigatoriamente evitar? Quais são os deveres dos homens uns em relação aos outros, quaisquer que sejam seus projetos éticos? Nesse caso, o homem de negócios pode querer riquezas, mas não pode consegui-las à custa de apropriação indevida dos bens dos outros. O filantropo pode querer fazer o bem a outrem, mas não pode fazê-lo à custa de eliminar a liberdade do outro de escolher o que é melhor para si. O artista pode querer dedicar-se somente à beleza, mas não pode simplesmente não contribuir para o sustento da prole que tenha ajudado a gerar. O sacerdote pode querer dedicar-se a Deus, mas não pode fazê-lo de forma tal a desprezar ou perseguir os homens que partilham de outras crenças ou que não aderem a crença alguma. Isso é assim porque há, ao lado dos fins éticos, que variam de pessoa para pessoa, deveres morais, que se impõem a todos indistintamente.
Espero dessa maneira haver contribuído para esclarecer e aprofundar a compreensão da distinção entre ética e moral que já havia abordado na postagem anterior.
Comentários
Lhe peço Data venia para pública-lo
no meu Blog.Creio que mais pessosas (meu público)iram compartilhar desse Artigo.
Um Abraço do seu aluno
Ariel Castro
Abraço!
Sé me causou uma certa estranheza a definição da ética como o que eu quero para mim em oposição à moral como relacionada aos outros porque não me parece que decisões sobre o que quero para mim possam ser pensadas fora de um pensamento coletivo sobre o modo como afetará os outros. Se tal conduta é "ética" para mim e seu resultado terrível para outrem a ética estritamente falando seria egoísta, e não me parece que isso seja possível.
Ademais, gostaria de ver também seus comentários sobre a também conhecida distinção que o Paul Ricoeur faz entre ética e moral, caso o senhor a considere relevante.
Por que a referência específica a Paul Ricoeur?
Caro anônimo. É evidente que a reflexão ética continua para além de Kant e Hegel, mas a postagem era sobre a distinção que geralmente se faz entre ética e moral, a qual se deve à contraposição entre Kant e Hegel. Não tive o objetivo de, numa postagem de blog, fazer uma história completa das noções de ética e moral. Espero que você leia as postagens nos limites das pretensões que elas têm.
Estou fazendo um trabalho e a bse dada pela professora é seu texto sobre a filosofia moral. Preciso de referencias bibliográfcas pra levantar as questões sobre caracteristicas, conceitos e aplicações da ética paa o direito.
Grata.
porem ainda não me encontrei satisfeita com os textos achados. Se puder me ajudar com outras referencias ficaria grata.
saracristianebn@hotmail.com
miriã
ética e moral difere no seguinte aspecto, ética é um conjunto de idéias, ou seja, teoria do que vinha ser moral, portanto ética é uma reflexão enquanto moral é a prática de tal.
ética nos sobrepõe as seguintes questões,quem vou ser?, como poderei ser tal "coisa"?, enquanto moral, questiona-se poderei ser isso?, posso fazer tal coisa?.
a ética diz respeito o que cada um tem na sua individualidade, enquanto que a moral é algo que se observa numa comunidade por inteira, costumes cultura.
"ética sou eu, moral somos nós"
Quero lhe parabenizar pelo texto, muito bem claro, por isso escolhi para trabalhar com os meus alunos do 3º ano do Ensino Médio do Curso de Técnico em Enfermagem, Guanambí - BA. Você poderia me indicar um texto sobre Ética Profissional?!
Grata,
Profª Cláudia Carvalho
Boa noite!
Engraçado como os temas de interesse surgem em nossas vidas. Outro dia, assistindo televisão, ouvi o nome de Kohlberg e comecei a pesquisar sobre desenvolvimento moral. Em minhas pesquisas no Google, achei seu blog e seu texto (que lerei com calma posteriormente).
Meu nome é Gustavo, sou formado em Psicologia e desejo aprofundar-me no tema. Será que você pode indicar uma bibliografia básica em Filosofia sobre moral e ética? Quem eu devo ler e estudar?
Agradeço pela sua atenção,
Gustavo
Esqueci de deixar meu e-mail, caso seja mais fácil: lgoliveira@live.com.
Grato pela atenção,
Gustavo
Abraço!
Seus posts.são excelentes.
O que dizer dos códigos de ética das corporações?
Seriam, pelo que entendi, ‘códigos de moral’. Mas isso me leva a duas dúvidas iniciais:
a) a maioria dos órgãos, entidades, corporações etc tem regulamentos disciplinares também. Se a disciplina estriba na moral, não seria uma redundância haver regulamento de disciplina e código de ética (este como deontologia profissional)?
b) Tais códigos muitas vezes abordam as obrigações dos órgãos, entidades, corporações, além dos deveres de seus empregados. Pode-se falar em moralidade de organizações? Não seria a moralidade matéria adstrita a ação dos homens? Não seria mais correto que os códigos dispusessem dos deveres dos que agem em nome das organizações?
Obrigado
Os assim chamados "códigos de ética" estabelecem normas jurídicas concernentes ao comportamento de agentes e instituições no exercício de certas profissões. Não são orientações éticas porque não derivam de um contexto de valores compartilhados por uma comunidade histórico-cultural e não são normas morais porque não são inteiramente fundadas apenas em obrigações de respeito entre sujeitos livres e iguais. Como sua validade depende da positivação estatal e a desobediência a elas pode ensejar sanções exteriores, sua melhor classificação é como normas jurídicas.
A nomenclatura "código de ética" é apenas uma memória histórica do tempo em que as condutas prescritas por tais normas não precisavam ser positivadas, pois faziam parte da dignidade e honradez espontânea com que o praticante de certo ofício de prestígio fazia jus ao bom nome de sua profissão. As normas da deontologia profissional devem ser vistas como "orientações éticas decaídas", isto é, do tipo que, no contexto de uma sociedade moderna e complexa, em que o individualismo dos interesses esvaziou o sentido de virtude, de confiança e de honra, precisam ser codificadas, não apenas para serem imponíveis juridicamente, mas para eliminarem a impressão de um "vale-tudo" profissional que imperaria em sua ausência.
Espero ter ajudado. Abraço!