Segurança Pública e Natureza Humana: Notas sobre uma Polêmica

1. Sobre segurança pública, especialmente no que se refere às alternativas para a redução dos índices de criminalidade, existem dois discursos clichês: o discurso da punição e o discurso da oportunidade. O discurso da punição diz o seguinte: A criminalidade aumenta quando as penas são brandas e existe impunidade; a solução passa, então, pela adoção de penas mais severas, de fiscalização mais eficiente, de policiamento mais bem treinado e remunerado, de investigação mais acurada, de processos mais céleres e de aplicações mais duras da lei, especialmente para crimes de maior gravidade. Já o discurso da oportunidade diz o seguinte: A criminalidade aumenta quando as pessoas têm menos oportunidades honestas para satisfazer suas necessidades e perseguir seus sonhos; a solução consiste, portanto, em investir mais em políticas públicas de emprego, renda, habitação, saneamento, saúde, educação, arte, esporte e lazer para dar às pessoas oportunidades honestas tais que as oportunidades abertas pelo crime não seduzam senão a uns poucos remanescentes.

2. É importante notar que ambos os discursos se baseiam em certas imagens de indivíduo e de sociedade que não podem ser inteiramente comprovadas do ponto de vista empírico. É fácil provar que muitos países que apostaram em penas mais severas, policiamento reforçado e judiciário draconiano de fato reduziram seus índices de criminalidade até certo ponto de uma curva de queda, mas que, a partir daquele ponto, dificilmente conseguiram ir além. Também é fácil provar que em países que passaram por grandes períodos de crescimento, os massivos investimentos em políticas econômicas e sociais tiveram um considerável impacto sobre a redução dos índices de criminalidade, mas, novamente, até certo ponto de uma curva descrescente, para além do qual essa alternativa mostra seus limites. Mas nem mesmo essas demonstrações empíricas podem ser consideradas conclusivas. Há países com elevados IDH's, como Japão e Coreia do Sul, em que a criminalidade é muito frequente e ultrapassa em larga medida aquilo que os registros policiais mostram, porque nessas culturas as pessoas comuns não confiam que a polícia possa resolver seus problemas quando estes são causados por grupos fortemente organizados (como as máfias) que contam com importantes influências políticas e uma sistemática conivência do sistema policial. Assim como há países com IDH's bem mais modestos, como Irã e Arábia Saudita, em que o casamento entre mentalidade religiosa e sistema penal fortemente repressor produz resultados invejáveis em termos de diminuição dos índices de criminalidade (mesmo que com preços, meios e efeitos colaterais nada invejáveis). Há páises com penas duras e sistema policial e judiciário eficaz, como a China e os EUA, em que a criminalidade permanece alta assim mesmo. Assim como há países que praticamente renunciaram aos meios mais severos de combate, como a Suécia, a Holanda, a Finlândia e a Dinamarca, mantendo um sistema policial e judiciário confiável, mas não super estruturado, e penas que podem ser consideradas comparativamente brandas, sem que os índices de criminalidade tenham jamais ultrapassado patamares bastante aceitáveis. Tudo isso para mostrar o seguinte: Não há evidência empírica absoluta e conclusiva a favor de nenhum dos dois discursos, e há evidência empírica relativa e discutível em favor dos dois.

3. Os dois discursos se apoiam em certas concepções da natureza humana. O discurso da punição se apoia numa visão da natureza humana como essencial e irremediavelmente má, algo que podemos chamar (com certa licença filosófica) de uma visão hobbesiana da natureza humana. Nessa visão, o homem está sempre inclinado ao mal, devendo, para não fazê-lo, ser vigiado, controlado, impedido, punido. Toda vez que o controle e a punição se enfraquecem, as más condutas se multiplicam de novo, não sendo esperável que tal tendência sofra nenhuma modificação por força de nenhum processo nem econômico, nem social, nem educacional. Manter uma sociedade é manter condições de convivência entre homens maus, com controles e punições que os impeçam de ser tão maus quanto seriam sem eles, mas que jamais os tornarão bons, porque isso é simplesmente impossível. Já o discurso da oportunidade se apoia numa visão da natureza humana como essencialmente boa, mas passível de ser tanto corrompida por condições sociais desfavoráveis, quanto recuperada por condições sociais mais favoráveis, algo que podemos chamar (novamente com certa licença filosófica) de uma visão rousseauniana da natureza humana. Agora o homem é visto como uma criatura que, se exposto às condições sociais favoráveis, pode desenvolver suas tendências naturais à paz, ao respeito e à solidariedade, mas que, se exposto, em vez disso, a condições sociais desfavoráveis, desenvolverá tendências não naturais, tendências socialmente aprendidas e desenvolvidas, que o levarão ao egoísmo, à competição e ao crime. Nessa visão, uma boa sociedade é aquela organizada segundo instituições tais que possam dar vazão às naturais tendências boas dos seres humanos. Sendo assim, os homens não são nem irremediavelmente bons, nem irremediavelmente maus, mas podem ser uma coisa ou outra dependendo das condições sociais em que são colocados e em que formam sua identidade.

4. Aos dois discursos correspondem também dois tipos de temperamento daqueles que os apoiam. De um lado um cético e pessimista; de outro, um idealista e otimista. De um lado, alguém que considera que não devemos sonhar com homens e mundos melhores que estes, porque em todos os tempos e lugares os homens foram mais ou menos esses mesmos egoístas, covardes, invejosos, mentirosos e traiçoeiros que são hoje. Que as pessoas "de bem" foram apenas seres humanos maus que foram submetidos a controles sociais mais eficientes, mas que, se tivessem oportunidade (como na lenda do anel de Giges, da República, ou na história de O Homem Invisível) de delinquir impunemente, logo se entregariam a todos os pecados que condenam nos criminosos; por outro lado, os "bandidos" são seres humanos que encontraram, ao longo da vida, as oportunidades apropriadas para delinquir sem serem punidos, podendo tirar disso vantagem, tornando esse seu modo de vida habitual. Se forem atentamente vigiados e severamente punidos, serão obrigados a comportar-se como as pessoas "de bem", ganhando honestamente seu sustento e respeitando os direitos dos demais, não por serem bons, mas por serem forçados a isso. De outro lado, alguém que acredita que estamos num mundo ruim ou insuficiente, que se tornou tal por um conjunto de erros que podem ser corrigidos e de ações de má fé que podem ser evitadas. Por isso, é possível construir um mundo melhor, em que as pessoas possam viver em paz, respeito e solidariedade umas com as outras. Isso é, no fundo, o que todas as pessoas querem e aquilo de que elas só abrem mão quando percebem que não pode se realizar na prática. As pessoas (como as crianças) desejam o melhor e estão dispostas a fazer o esforço necessário para viver em concórdia com as outras, mas precisam receber da sociedade em que vivem as oportunidades adequadas para isso. Daí que a injustiça dos homens seja um reflexo da injustiça da sociedade com eles, que os obrigou, contra as suas tendências naturais, a serem injustos. Mas podemos mudar a sociedade e, assim, mudar os homens, tirando o mundo social harmonioso dos sonhos e trazendo-o para a realidade.

5. Os dois discursos compartilham (embora em medidas distintas) uma crença comportamentalista sobre a conduta do homem: ela é manipulável. A diferença é que, enquanto no discurso da punição, a manipulação da conduta não produz modificação profunda na natureza do homem e funciona por meio de estímulos negativos (punição), no discurso da oportunidade a manipulação da conduta chega a modificar (ou recuperar) as próprias tendências da natureza humana e funciona por meio de estímulos positivos (prêmio). O primeiro acha que, punindo quem sai da linha, mantém-se a pessoa na linha. O segundo acha que, tornando a linha mais atraente, o número de pessoas que sairá dela será menor. Mas em ambos os casos de trata de manipular a conduta interferindo nas condições que essa conduta encontra: num caso, alterando as condições de modo a tornar o crime uma alternativa altamente desatraente; no outro caso, alterando-as de modo a tornar a conduta honesta uma alternativa altamente atraente. Gostaria de destacar que, em ambas as alternativas, se está considerando o homem (não quanto à natureza, mas quanto à conduta) como produto do meio e, em ambas, a sugestão de como influenciar a sua conduta não apenas não leva em conta a autonomia do ser humano, mas inclusive a compromete ou ignora solenemente.

6. Gostaria de avançar mais uma hipótese a respeito: Que os dois discursos correspondem às visões, respectivamente, do sistema político e do sistema econômico. Seguindo Habermas, chamo de sistema político aquele âmbito de interação fortemente marcado pelo exercício do poder, enquanto possibilidade de impor sobre a conduta alheia sua própria vontade mesmo contra resistências. O discurso da punição é um discurso para o qual maior ou menor criminalidade é uma consequência de menor ou maior uso do poder por parte do aparato estatal sobre a sociedade. Por outro lado, novamente seguindo Habermas, chamo de sistema econômico aquele âmbito de interação fortemente marcado pelo dinheiro e pela busca do lucro. Ora, embora o discurso da oportunidade não se limite a falar de incentivos econômicos, fala em incentivos capazes de influenciar a conduta na medida em que cada um veja neles os meios para realizar seus fins individuais, tanto os mais imediatos quanto os mais longínquos, o que é exatamente o mesmo padrão de influência na conduta que o dinheiro opera frequentemente. Por isso, talvez os dois discursos correspondam, respecivamente, a uma visão burocratizante socialista e a uma visão mercadificante liberal da ordem e da segurança.

7. Por último, para encerrar essa minha lista de hipóteses esdrúxulas, gostaria também de chamar atenção que, se fosse assim, então, levando em conta que o discurso da punição é uma bandeira histórica do pensamento de direita, enquanto o discurso da oportunidade é uma bandeira histórica do pensamento de esquerda, se teria a curiosa situação de que a direita, que defende o liberalismo para as relações econômicas, defenderia o socialismo para as relações penais, ao passo que a esquerda, que defende tipos distintos, mais ou menos moderados, de socialismo das relações econômicas, defenderia um liberalismo para as relações penais. Para levar essa conclusão ainda mais adiante, poderia dizer que a direita só pode defender a liberalização das relações econômicas (um mercado sem intervenções estatais, funcionando apenas por oferta e demanda) na medida em que uma ordem esteja garantida pela socialização das relações penais (ou seja, pela presença constrangedora de um Estado vigilante e repressor contra quem comete crimes). O socialismo das penas é, por assim dizer, a condição e o complemento necessário do liberalismo da economia. Mas algo parecido poderia ser dito para o discurso da oportunidade. Nele, o liberalismo das relações penais (em que cada um tivesse bons incentivos para seguir uma vida honesta) seria permitido e garantido por um socialismo das relações econômicas (em que o mercado não fosse um espaço desigual e selvagem de que alguns podem estar permanentemente exluídos). Ambos estariam colocando a liberdade como meta de um lado e o controle como meta do outro, invertendo apenas em qual dos lados estaria qual das metas.

8. É só isso mesmo. Não tenho solução para esse dilema, só queria colocá-lo sob uma luz diferente da que se costuma lançar sobre ele.

Comentários

Anônimo disse…
Prezado André,
Me perdoe, mas não consegui enxergar uma concatenação na explicação sobre o argumento da oportunidade. O homem é naturalmente bom, mas precisa de oportunidades. Mas estas oportunidades significam "prêmios" (reforços positivos) que o Estado ofereça às pessoas? Então para elas revelarem seu lado naturalmente bom, terão que contar não com situações não-desfavoráveis (que podem implicar mesmo o abstencionismo do Estado), mas com situações artificialmente favoráveis (em que o Estado tem que assumir um papel prestacional). Não se poderia imaginar um país neoliberal como a Islândia em que o Estado não interfere na sociedade e, por isso mesmo, não fomenta desigualdades, e permite que a pessoas, não oprimidas, revelem seu lado rousseauniano? Mas aí não existiria a lógica da recompensa do sistema de mercado.

(cont.)
Anônimo disse…
Outro ponto é que você associa a esquerda a um estatismo burocratizante, para fazer o contraponto esquerda direita. Mas me pareceu que o sistema punitivo, a sustentar um modelo liberal de imposição de pena, indica um Estado totalitário de feição stalinista ou maoísta, mas não necessariamente um Estado socialista. A não ser que se relacione o socialismo inteiro àquilo que chamam de "socialismo real". Mas pode-se imaginar um Estado que defenda bandeiras da esquerda, como os Estados socialdemocratas escandinavos, que não são Estados máximos ou Estados policiais, embora sejam burocráticos. São inchados pelos serviços públicos securitários, mas não ameaçam as liberdades individuais. Nesse sentido, não operam com a lógica do poder com conotação policial ou judicial-penal.
Anônimo disse…
Outro ponto é que, acredito que uma leitura também possível é a de que o sistema que se pode associar ao arfgumento/modelo da oportunidade é o sistema social (mundo da vida), e não o sistema econômico/de mercado. Daí se deduziria que o homem é naturalmente bom, mas patologias e obstáculos na comunicação intersubjetiva o levariam e recorrer à violência para impor sua vontade. Embora se possa cogitar que a colonização do sistema de mercado poderia ser responsável pela criação de disparidades sociais que causaria desníveis comunicativos, ainda assim o remédio para assegurar a condição naturalmente boa dos homens seria o entendimento com os pares e não eventuais recompensas do Estado. O homem roussoniano, a meu ver, estaria mais aproximado do cidadão com interesse de participação política do que o cidadão-cliente dos benefícios estatais.

Obrigado pelo espaço.
Anônimo disse…
Caro Anônimo, obrigado por sua participação e tento agora responder às questões que você me propôs.

1. Bom, primeiro, não necessariamente os "prêmios" que associei ao discurso da oportunidade são prestações diretas do Estado, mas podem também ser êxitos obtidos pelo indivíduo por si mesmo, mas apenas por causa de intervenções do Estado no sentido de assegurar oportunidades de que tais êxitos ocorressem. Em segundo lugar, num Estado verdadeiramente neoliberal, não existem políticas públicas de emprego, renda, educação, saúde etc., pois isso tudo foi transferido para a iniciativa privada e a livre concorrência. Confesso que, por falta de informação, não sei dizer se na Islândia é esse o caso, mas sei dizer que apenas se for assim é que a Islândia é um Estado verdadeiramente neoliberal. Supondo que seja esse o caso (na Islândia ou num lugar qualquer), as oportunidades de que os indivíduos precisam estariam por conta dos reveses do mercado, o que poderia levar, em certas conjunturas, a desigualdades e exclusões todas que, segundo o discurso da oportunidade, "precipitassem" os sujeitos à vida criminosa.
Anônimo disse…
2. É necessário que eu faça um esclarecimento ao modo um tanto vago com que usei as expressões "socialista" e "liberal" na postagem. Quis dizer com apenas, respectivamente, "predominantemente controlado pelo Estado" e "predominantemente deixado por sua própria conta e dinâmica". Assim, o "socialismo" das relações penais é apenas um investimento pesado em policiamente e punição, do tipo que houve nas políticas de segurança pública no estilo "Tolerância Zero" na administração Giuliani em NY ou na Operação Mãos Limpas na Itália. Não é preciso um Estado totalitário para isso, basta ter um Estado economicamente liberal, que entende que a via de combate ao crime é ou deve ser predominantemente a repressão. As social-democracias do Norte europeu se enquadram mais no discurso da oportunidade que no discurso da punição. Por isso, embora sejam regimes "socialistas" quanto às relações econômicas, são "liberais" quanto às relações penais, pois não fazem forte investimento no setor policial e judicial, mantendo apenas o mínimo de autação e administração necessária quanto a estes aspectos.
Anônimo disse…
3. Concordo totalmente com sua última observação. Acredito que o que falta aos dois discursos "clichê" da segurança pela punição e da segurança pela oportunidade é levar a sério Rousseau, Arendt e Habermas e assumir que não se trata apenas de restringir (por meio da pena) ou de ampliar (por meio das oportunidades) a autonomia privada, e sim de promover a autonomia pública: O cidadão que se vê como parceiro numa comunidade jurídica e política dificilmente se tornará um criminoso.
Hermes Machado disse…
Caro André Coelho,
Antes de tudo parabéns pelo nobre exercício de racíocinio tenaz desenvolvido por você a partir do tema 'Segurança Pública e Natureza Humana'. Já eu, afetado por Jean-Jacques Rosseau entre alguns pensadores que já pude ler e refletir traço aqui minha visão sobre o assunto em pauta através do texto-recorte do conto "Destino dos Desprezados":

“Estamos de mãos atadas. Não podemos reprovar nem punir os maus alunos. Como educá-los num ambiente tão hostil, padrão das atuais instituições públicas de educação,apenas com considerações entre pais e mestres? Enquanto me desgasto conscientizando um aluno-problema que não me deixa prosseguir com a aula,recebo insultos, ameaças e deboche dos demais. O aluno não cumpre as tarefas. Se o cobro, eu corro o risco de ser mal interpretado por ele, pelos pais e atépela direção escolar, sempre provida de normas, as quais, devo seguir. Certa vez um amigo escritor me disse: ‘A violência e o dolo nas escolas e outros domínios da sociedade é o destino dos desprezados para haver de serem vistos e ouvidos.Vivemos em um país onde o dinheiro é a déspota divindade. Ao povo desvalido que poupa sua dignidade como única garantia de riqueza, as castas organizadas continuam dispensando ração e distração. A ostentação dos abastados em um Brasil de miseráveis traz dor e cólera.’

Saudações Literárias!

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo