Série: Argumentos Ridículos que Você Deve Evitar e Combater (3)

"Questões morais são muito controversas e relativas. O que é certo para mim pode não ser certo para você. O que é certo para uma época e cultura pode não ser certo para outra época e outra cultura."

Essa é talvez a forma mais clichê e barata de defesa de uma posição relativista em matéria moral. Todos já devemos ter ouvido esse argumento pelo menos uma vez e muitos de nós já o usaram para fundamentar a suspeita contra as certezas morais ou as noções morais absolutas de um interlocutor. Trata-se de um argumento que goza de ampla aceitação e popularidade e que foi erigido à condição de dogma de nossa época. Mas se trata, como vou mostrar, de um argumento bobo, incapaz de provar o que quer provar e que só mostra a confusão mental de quem o usa e mais ainda de quem se deixa convencer por ele.

Devemos em primeiro lugar deixar claro que o relativismo moral não é, em si, uma posição ridícula. Pelo contrário, embora eu considere que o relativismo moral está no fim das contas errado, ele deve ser considerado uma posição moral séria, digna de respeito e de debate. Mas se deve distinguir o relativismo moral sério do relativismo moral grosseiro e superficial - que é exatamente aquele que é expresso pelo argumento de que ora nos ocupamos. Vamos tentar explicar a diferença entre os dois e a partir dessa explicação fornecer a refutação daquele argumento.

Chama-se relativismo moral à concepção segundo a qual a melhor forma de compreender a moralidade, isto é, o domínio em que se formam os juízos sobre o que é certo e errado, é como uma seção ou um reflexo da cultura de cada povo e de cada época. Está geralmente associado com uma visão não cognitivista, isto é, com uma crença de que a moral não é um domínio de conhecimento, em que possa haver crenças verdadeiras e falsas ou razões aceitáveis e inaceitáveis, e sim algum tipo de domínio afetivo ou expressivo, no qual se manifestam os valores e atitudes próprios de certa forma de vida cultural. As crenças morais, para essa concepção, não são verdadeiras ou falsas em si mesmas, mas apenas verdadeiras e falsas "para nós", quer dizer, da perspectiva de uma cultura particular e em razão de pertencer àquela cultura: As nossas crenças morais são verdadeiras apenas porque são as nossas crenças. Exatamente porque, para o relativismo, os indivíduos só são capazes de ter e de pôr em ação crenças morais na condição de integrantes de uma forma de vida cultural particular e na medida em que possam reconhecer tais crenças como as suas crenças particulares, seria impossível uma moral universal. Geralmente o relativista moral lança contra as tentativas de universalismo moral a suspeita de que se trata apenas da tentativa etnocêntrica de imposição das crenças de uma cultura particular como devendo ser reconhecidas como verdadeiras para todas as outras culturas. Toda moralidade seria sempre cultural e particular, e o fato de alguma moralidade se proclamar racional e universal viria sempre de uma falta de reconhecimento da alteridade e de uma falta de modesto reconhecimento dos limites de qualquer moralidade concreta.

Aquilo que estou chamando aqui de relativismo moral grosseiro e superficial é uma versão confusa e distorcida do relativismo moral que acabei de descrever. Seu erro básico consiste em confundir o domínio empírico das crenças morais com o domínio normativo das concepções morais. Acredita que o fato empírico de que, em diferentes culturas, se adotam diferentes critérios morais implica na conclusão normativa de que os critérios morais só têm validade no âmbito de cada cultura. Mas isso é claramente um erro. Uma coisa é que as pessoas acreditem todas na mesma coisa ou acreditem cada uma em coisas distintas. Isso tem a ver com aquilo em que as pessoas creem no plano empírico: é um fato que elas creem em coisas distintas. Outra coisa é que as pessoas devam acreditar todas na mesma coisa ou devam acreditar cada uma em coisas distintas. Aqui não estamos falando do que elas acreditam, mas daquilo em que deveriam acreditar, caso examinassem as questões racionalmente e tendo em vista os bons argumentos para um lado e para o outro.

Um universalista moral não negará que, no plano dos fatos, as pessoas acreditam em coisas diferentes em matéria moral; ele aceitará esse fato sem problema algum. Isso não o impedirá de dizer que, se elas examinassem as questões morais racionalmente - examinando os melhores argumentos disponíveis e não se deixando levar nem pelo hábito, nem pela autoridade, nem pelo preconceito, nem pelo interesse -, elas deveriam acreditar todas nas mesmas coisas em matéria moral. O universalista dirá que existem certas crenças morais que podem ser defendidas com argumentos tais que qualquer sujeito racional seria capaz de compreendê-las e de aceitá-las, caso se colocasse numa posição que estivesse para além dos preconceitos de sua formação pessoal ou de sua cultura particular. É exatamente na medida em que as pessoas não se colocam nessa posição e se limitam a julgar do ponto de vista de sua formação pessoal e de sua cultura particular que ocorre o fato empírico de que elas divergem quanto às crenças morais que sustentam. Portanto, o fato de que elas acreditam em coisas distintas não implica por si só que elas tenham boas razões para acreditar em coisas diferentes. Pelo contrário, as boas razões, as melhores razões, poderiam estar ao lado de crenças universais, sendo simplesmente um fato que as pessoas em geral não costumam distanciar-se de sua formação pessoal e de sua cultura particular o suficiente para levar em conta essas melhores razões. Ora, se o universalista moral pode conciliar perfeitamente a aceitação do fato de que as pessoas têm diferentes crenças morais com a defesa da concepção segundo a qual existem crenças morais com validade universal, é exatamente porque aquele primeiro fato não traz consigo a implicação de que as crenças morais sejam necessariamente relativas. As diferentes culturas pensam diferentemente quanto a temas morais, mas disso não se segue que elas estejam automaticamente com a razão em pensar como pensam nem se segue que a melhor maneira de conceber a moralidade seja deixá-la por conta de cada cultura.

Suponha o seguinte exemplo. Tem-se uma caixa fechada e se sabe que dentro dela há um único objeto, mas não se sabe qual é. Pergunta-se a três pessoas o que há dentro da caixa. A primeira diz que há uma bola, a segunda, que há um sapato, a terceira, que há uma garrafa. Cada uma respondeu segundo aquilo que acredita que está dentro da caixa, mas parece à primeira vista impossível que as três respostas sejam verdadeiras ao mesmo tempo, porque sabemos que há apenas um objeto dentro da caixa, que pode ser uma bola, pode ser um sapato, pode ser uma garrafa, ou pode não ser nenhum desses, mas é, certamente, um e apenas um objeto. Pois bem, se, nessa situação, pensássemos como pensa o relativista grosseiro e superficial, diríamos: O que está dentro da caixa é o que quer que cada um pense que está lá dentro, a saber, para o primeiro, uma bola, para o segundo, um sapato, para o terceiro, uma garrafa. Cada um tem sua crença a esse respeito e a crença de um não pode ser simplesmente imposta aos demais, que têm crenças distintas. Mas isso seria igualar crença e realidade, tornando a crença imediatamente verdadeira para quem crê nela pelo simples fato de que crê nela e não se perguntando se a crença de cada um deve ou não deve ser considerada verdadeira. Ora, o universalista moral dirá que a moral é como essa caixa do exemplo, sugerirá que abramos a caixa e dirá que, quando a abrirmos, veremos que dentro dela há apenas um objeto, independente das crenças das pessoas sobre o que lá estava, motivo por que, depois de a abrirmos, poderemos avaliar qual crença estava certa e quais estavam erradas. O relativista moral sério também dirá que a moral é como essa caixa e também sugerirá que a abramos, mas dirá que, depois de a abrirmos, perceberemos que o que cada um verá dentro da caixa é apenas aquilo em que já acreditava antes, de modo que, depois de a abrirmos, veremos que cada uma das crenças anteriores era verdadeira na mesma medida. Já o relativista moral grosseiro e superficial dirá que nem precisamos abrir a caixa, porque, se as pessoas já creem cada uma que nela há um objeto diferente, isso por si só, mesmo sem abrirmos a caixa para ver o que há lá dentro, já é a prova de que dentro dela há, de fato, aquilo que cada um pensa que há. É nisso que o relativista grosseiro e superficial está errado: ele está considerando a crença de cada pessoa de antemão como verdadeira mesmo sem ter aberto a caixa para verificar o que há dentro dela. "Abrir a caixa" é nesse exemplo uma metáfora para examinar as crenças morais à luz de argumento racionais, em vez de limitar-se a tratá-las como simples crenças morais que cada um tem ou não tem. É a esse exame racional das crenças morais que o relativista grosseiro e superficial está se recusando ao simplesmente assumir a diversidade de crenças morais como prova do relativismo moral.

Então vejamos. A verdadeira diferença entre o universalista moral e o relativista moral sério é que, enquanto o primeiro acredita que há certo conjunto de crenças morais cujos argumentos em seu favor, se apreciados de modo racional e isento de preconceitos da formação pessoal e da cultura particular de cada um, poderiam ser aceitos por todos os indivíduos racionais, o segundo acredita que todas as crenças morais são tais que os argumentos em seu favor só podem ser aceitos pelos membros de certa cultura particular e na medida em que sejam vistos como próprios daquela cultura particular. Tanto o universalista moral quanto o relativista moral sério admitem o fato de que as pessoas têm crenças morais diferentes, mas nem o universalista vê isso como obstáculo para a sua concepção nem o relativista sério vê isso como uma prova da sua concepção. O fato de que as pessoas têm crenças morais diferentes não prova nada acerca do que aconteceria se as pessoas tentassem examinar as crenças morais com outros parâmetros que não aqueles advindos de sua própria formação pessoal e cultura particular. O fato da diversidade de crenças morais não prova, por si só, que tal diversidade seria insuperável. Provaria isso apenas se as pessoas fossem incapazes de examinar criticamente sua próprias crenças e de modificá-las diante de bons argumentos em contrário. É na verdade nessa imagem de crenças fixas, cristalizadas, inexamináveis e imodificáceis, que o relativista moral grosseiro e superficial está se baseando. Se os seres humanos fossem seres que formassem suas crenças de modo arbitrário, nunca as submetessem a nenhum exame crítico e fossem incapazes de abandonar essas crenças em favor de outras mais bem fundadas, aí - e só aí - o dito "o que é correto para você pode não ser correto para mim" faria sentido e seria uma defesa pertinente do relativismo moral.

Comentários

Unknown disse…
Grande postagem professor! A diferença entre o relativismo e a grosseria era intuída por mim mas ficou bem clara agora.

Mudando de assunto, o sr conhece o livro "Imposturas intelectuais"? É um primor no qual um físico e um matemático humilham pensadores das ciências humanas que fazem adaptações grosseiras da fisica e da matemática. O capítulo no qual humilham Deleuze e Guatarri é primoroso.!!
Anônimo disse…
Que bom que gostou da postagem, Ricardo, é sempre bom receber sua visita por aqui. Quanto ao livro que mencionou, não conheço, não, infelizmente. Mas, se você quiser escrever uma pequena resenha sobre ele, comentando algumas de suas ideias, citando passagens e dando alguns bons motivos para lê-lo, prometo publicá-la aqui no Blog, dando-lhe a condição de colaborador, que tal? Espero que aceite, porque a descrição do livro que você fez me pareceu realmente bem interessante. Um abração!
Unknown disse…
Aceito sim professor. COm toda honra. Terminarei o quanto antes e lhe enviarei por e-mail.
excelente, sempre questionei esse relativismo grossseiro,posto que no lugar de aguçar a criticidade, ele acaba por frear qualquer tenta tiva de aprofundar discussões. Não faz sentido para que acredita nes sa relativismo simplista debater, pois a verdade depende apriori de cada um e não pode ser posta a pro va sob quaisquer critérios. No dia a dia é o que compromete o diálogo,por exemplo,entre pais e filhos ou entre marido e mulher.

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo