O Que Afinal Quer Dizer Ter um Dever Moral?

Vamos supor que no passado João emprestou a Pedro o livro "O Estrangeiro", de Albert Camus. Vamos supor também que já se passou certo tempo desde então e agora João pede a Pedro que devolva o seu livro. Nessa situação, estaríamos inclinados a dizer que Pedro deve devolver o livro "O Estrangeiro" para João. Ora, mas essa seria a conclusão qualquer que fossem as identidades de João e Pedro, de modo que podemos substituir seus nomes por simples variáveis de pessoas, por exemplo, A e B. Então, diríamos que B deve devolver o livro "O Estrangeiro" para A. Contudo, notamos agora que essa seria a conclusão também qualquer que fosse o livro em questão, ou mesmo se, em vez de um livro, se tratasse de outro objeto, como um carro, uma casa, uma caneta ou uma quantia em dinheiro, de modo que podemos substituir a descrição do objeto por uma variável de coisa, por exemplo, X. Diríamos, agora, que B deve devolver X para A.

Ainda não é o bastante. Se compararmos a fórmula "B devolve X para A" com a fórmula "B deve devolver X para A" notaremos que a segunda é apenas uma variação específica da primeira. Dizer "B deve devolver X para A" é o mesmo que dizer que "B devolve X para A" é algo que deve acontecer. Sendo assim, podemos supor um operador como "Deve acontecer que..." e chamá-lo de D: o operador de dever. Colocado na frente de uma descrição de fato, D informa que aquele fato deve acontecer. Dessa forma, "B deve devolver X para A" se converteria em D (B devolve X para A), que se lê "Deve acontecer que B devolva X para A", que é logicamente equivalente a "B deve devolver X para A".

Ainda não é tudo. Só é verdade que D (B devolve X para A) porque algumas condições estão presentes. São elas:

(a) X pertence a A.
(b) A emprestou X a B.
(c) A pediu X de volta.

Todas essas condições são condições de fato, ou seja, são os fatos que precisam ter acontecido para que seja verdadeiro que D (B devolve X para A). Mas é claro que não bastam estes fatos. Sem certas suposições normativas, não se poderia chegar a conclusão de que D (B devolve X para A). As suposições normativas são que:

(I) Se X pertence a A, então A tem direito de ter X consigo ou de emprestá-lo a B.
(II) Se A empresta X a B, então A tem o direito de pedir X de volta.
(III) Se A pede X de volta, então B tem obrigação de entregar X para A.

Chamemos α ao conjunto de condições de fato de (a) a (c) e chamemos β ao conjunto de suposições normativas de (I) a (III). Assim, poderíamos dizer que se o conjunto de condições de fato α e o conjunto de suposições normativas β forem verdadeiros ao mesmo tempo, então será verdade também que D (B devolve X para A). Ou, para dizê-lo de modo mais abreviado: Se α e β, então D (B devolve X para A). Ou, para a máxima concisão: α e β → D (B devolve X para A).

Isso nos conduz à formulação que desejávamos: dever é um operador (D) que se refere a uma ação (B devolve X para A) por consequência de certo conjunto de condições de fato (α) e de certo conjunto de suposições normativas (β). Isso quer dizer que, verificado certo conjunto de condições de fato (α) e certo conjunto de suposições normativas (β), uma descrição como: (B devolve X para A) se converte numa prescrição como: D (B devolve X para A). O dever é, portanto, certa modificação da ação (tornando-a devida, prescrita ou obrigatória) em vista de certas condições de fato e de certas suposições normativas. Resta-nos tentar responder que tipo de modificação é esse que corresponde à noção de dever.

O tipo de modificação que ocorre de (B devolve X para A) para D (B devolve X para A) está associado a algumas consequências, por exemplo:

(C1) Se B não devolver X para A, então B terá falhado com seu dever.
(C2) Se B não devolver X para A, então a conduta de B será passível de crítica e reprovação.
(C3) Se B devolver X para A, então B terá cumprido com seu dever.
(C4) Se B devolver X para A, então a conduta de B será passível de louvor e aprovação.

Isso quer dizer que, na avaliação da conduta de outro, saber que tal ação era para aquela pessoa um dever nos dá uma boa razão para julgar sua conduta como correta (caso tenha cumprido com o dever) ou incorreta (caso tenha falhado com o dever). Logo, o dever do outro me dá uma boa razão para avaliar como correta ou incorreta sua conduta. Nesse sentido, o dever do outro funciona para mim como ao mesmo tempo um bom critério e um boa razão para julgar sua conduta. Podemos daí tirar as seguintes máximas:

(M1) Se B tem um dever e o cumpre, A tem boa razão para julgar a conduta de B como correta.
(M2) Se B tem um dever e não o cumpre, A tem boa razão para julgar a conduta de B como incorreta.

Isso no que se refere às razões para julgar. No que se refere às razões para agir, podemos dizer que:

(M3) Se B tem dever de agir de certo modo, então B tem boa razão para agir desse modo.
(M4) Se B tem dever de não agir de certo modo, então B tem boa razão para não agir desse modo.

Isso poderia levar à tentação de dizer que "ter o dever de" é o mesmo que "ter boas razões para". Mas isso claramente não é verdade por dois motivos: (1) há muitos casos em que se tem boas razões para agir de certo modo e não se tem, no entanto, dever de agir desse modo (por exemplo, alguém que recebe uma boa proposta de venda pela sua casa tem boa razão para vender a casa caso queira, mas não tem o dever de vender a casa); (2) embora se possa dizer que, toda vez que se tem o dever de agir de certo modo, se tem também boa razão para agir desse modo, não é verdade que, quando não se tem o dever de agir de certo modo, também não se tenha boa razão para agir desse modo (por exemplo, alguém que nota o arrependimento sincero de outro por algo que lhe fez não tem dever de perdoar, mas tem boa razão para perdoar caso queira).

Mas essa aproximação entre "ter o dever de" e "ter boas razões para" pode ser instrutiva no seguinte sentido: Podemos ver "ter o dever de" como um subconjunto ou caso específico de "ter boas razões para". Isso nos levaria a supor que ter o dever de agir de certo modo seja ter certo tipo de boas razões para agir desse modo. Essa parece ser uma boa pista para seguir. Mas, afinal, que tipo de boas razões são essas capazes de configurar o dever de agir de certo modo?

Comentários

Remi Barros disse…
FANTÁSTICO.
Isso basta.

Abraços, meu querido.
Ernesto disse…
Bem ao meu ver essas boas razões são sempre dadas. Como foi afirmado eu só tenho um dever quando existe um conjunto de condições fáticas e normativas a serem cumpridas. Entretanto estas últimas (as condições normativas) por sua vez devem ser sempre fundamentadas etc (porque eu devo devolver um livro que não é meu ou emprestado?)
Assim acho que de certa forma existe algo de arbitrário no pressuposto de alguma condição normativa e não se poderá achar uma "razão última" que fundamente o nosso dever moral.
A não ser talvez que fujamos para algum conceito psicológico , talvez uma necessidade ou capacidade de empatia com o próximo.
Anônimo disse…
Ernesto, bom tê-lo por aqui nos comentários. Bem, vamos distinguir entre duas tarefas: 1) fazer um esclarecimento conceitual sobre o que significa ter um dever; e 2) fazer uma exposição teórica sobre a fundamentação racional dos deveres. Eu me dediquei nessa postagem à primeira coisa, e não à segunda. Apenas tentei mostrar que existe uma conexão entre ter um dever e ter razões para agir, mas ainda não disse nada sobre que tipo de razões são suficientes para fundamentar deveres morais ou sobre se pode haver uma fundamentação última de todos os deveres. Essa é uma outra discussão, na qual eu estaria disposto a entrar, mas noutro momento e noutra postagem. Nessa em especial, dediquei-me apenas ao tema do sentido de ter um dever.
Eu queria ter essa capacidade de transformar coisas simples em óbvias em reflexões complexas. Isso é enxergar profundamente!
Parabéns pelo raciocínio e pela forma de expô-lo, André!
Professor, entendi que o intuito é dizer que o cumprimento de um dever moral pressupões possuir boas razões para agir assim, ainda que a recíproca não seja necessariamente verdadeira, mas o exemplo é de um dever jurídico, certo?
Anônimo disse…
Não, seria de um dever moral mesmo, por quê?
Professor, entendo que o fato de ser um dever moral não exclui seu caráter jurídico (formalizado)Essa talvez já seja a questão (ponto!). O exemplo é de um contrato verbal de comodato, que impõe, quando requerida, a devolução de coisa infungível pela pessoa a cujo uso foi cedido temporariamente.
A propósito, desculpe-me a falta de gentileza. Os seus textos, ontem li alguns, são claros, concisos e coerentes, o que exige muita profundidade. Parabéns!
Anônimo disse…
Vinícius, se o que você quer dizer é que se trata de um dever jurídico porque é possível, à luz das normas do direito civil, configurar a devolução da coisa como uma obrigação jurídica, ok, sem problema. Mas note que: 1) o dever jurídico segue as normas vigentes e têm condições, critérios, provas e consequências diversas dos do dever moral correspondente; 2) o dever jurídico depende das normas vigentes, de modo que poderia ser modificado ou, numa situação, por exemplo, de revolução, temporariamente suspenso, sem que isso afetasse o dever moral em questão.
Entendi, professor. Fico muito grato pelas explicações e pela oportunidade do debate.

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