Sistemas Jurídicos: Common Law vs. Civil Law

Chama-se common law ao direito elaborado por juízes mediante decisões que se tornam vinculantes para casos análogos posteriores (precedentes). Chama-se civil law ao direito elaborado por legisladores ou membros do poder executivo na forma de leis, decretos, regulamentos etc. Os sistemas que dão primazia ao precedente sobre a lei chamam-se common law systems, enquanto os sistemas que dão primazia à lei sobre o precedente chamam-se civil law systems. Mas ambos os tipos de sistema jurídico contêm sempre tanto common law quanto civil law. Assim, os princípios e práticas próprias do common law e do civil law estão presentes em qualquer sistema e são aplicadas sempre que se esteja lidando com precendentes ou com leis. Dessa forma, antes de entender as diferenças entre sistemas que dão primazia a um ou a outro, é preciso antes entender a diferença entre trabalhar com precedentes e trabalhar com leis. As principais diferenças entre os dois podem ser listadas assim:

1. Precedentes são casos anteriores que se tornam paradigmáticos para casos posteriores. Sendo um caso, um precedente é sempre uma situação concreta, formada por inúmeras particularidades, em que certo pedido, também concreto, foi deferido ou indeferido, conforme as circunstâncias da situação. Já leis são conjuntos de regras abstratas que se tornam obrigatórias para casos concretos. Sendo um conjunto de regras, as leis se afastam das particularidades e não se relacionam diretamente a pedidos. A relação da regra da lei com o caso e com o pedido terá que ser construída pelo intérprete.

2. Precedentes são aplicados, em regra, por analogia. O intérprete deve se perguntar quão semelhante é o caso presente, que está sob julgamento, ao caso passado, que se tornou paradigmático. Se o caso presente for suficientemente semelhante ao caso paradigmático em todos os aspectos relevantes, aplica-se o princípio do stare decisis: a decisão do caso presente deve seguir a decisão do caso pardigmático. Já as regras da lei são aplicadas, em regra, por subsunção. Se o caso sob julgamento tem características tais que se encaixam na previsão legal (condição de fato), então deve ser decidido em conformidade com o que a lei prescreve para casos assim (consequência jurídica).

3. Nos precedentes, encontrar quais são as características relevantes do caso paradigmático que precisam estar presentes também nos casos novos, para que estes sejam regidos por aqueles, é uma tarefa do intérprete. Em geral, olha-se para a decisão fundamentada que saiu vencedora (opinion of the court) e distinguem-se nela os elementos que foram decisivos para a solução do caso (a chamada ratio decidendi) e os elementos que, embora estando presentes e tendo alguma importância, são tais que, mesmo ausentes ou diversos, não alterariam a solução do caso (os chamados obiter dicta). Já nas regras da lei, as características relevantes para os casos a serem julgados já estão formuladas na condição de fato, mas estão formuladas de modo abstrato e geral, que pode dar margem à dúvida quanto à sua relação com os casos concretos, criando, assim, os hard cases de civil law.

4. Nos precedentes, se um caso novo não contém todos os elementos da ratio decidendi do caso paradigmático ou contém outros, relevantes no caso novo, mas ausentes no caso paradigmático, justifica-se para o intérprete propor uma distinção (distinguishing) entre o caso novo e o precedente, de modo a justificar uma decisão diversa para o caso novo. A distinguishing, porém, não é uma exceção à analogia, e sim uma decorrência dela. Já nas regras da lei, se um caso se encaixa na previsão da regra, mas a solução que a regra prevê parece insensata, ou se um caso não se encaixa na previsão da regra, mas parece merecer o mesmo tipo de solução, cria-se um problema para o juiz, que terá que propor algum tipo de solução não subsuntiva: interpretação restritiva, intepretação extensiva, analogia etc. Todas essas alternativas são, no entanto, exceções à subsunção.

5. Nos precedentes, se o intérprete percebe que o caso paradigmático, se fosse julgado hoje, já não teria a mesma decisão, justifica-se para ele propor uma substituição do precedente (overruling), isto é, a tomada de uma nova decisão, mais conforme aos novos tempos. A overruling também não é considerada uma exceção à analogia, e sim uma decorrência dela. Já nas regras da lei, se um intérprete verifica que a regra que está vigente já não corresponde mais aos fatos ou aos valores da época presente, cria-se um problema para ele, que terá que recorrer a algum argumento não subsuntivo: desuso da lei, mudança dos costumes etc. Tais argumentos representam, sim, exceções à subsunção.

Agora falta responder: Que características um sistema judiciário e jurídico deve ter para contemplar adequadamente a primazia do common law ou do civil law? Assunto para outra postagem.

Comentários

Anônimo disse…
Ótima postagem. Mas esta diferenciação entre "common law" e "civil law" está cada mais irrelevante. Sistema tidos tradicionalmente como da "common law" cada vez mais apresentam características vistas teoricamente como de "civil law" (ex.: os EUA, com diplomas legais para tudo, regulando-o minuciosamente; até o Reino Unido, talvez o último grande país ocidental a ter uma Suprema Corte com atribuições propriamente constitucionais, ainda que sem uma "constituição escrita", como dizem os entendidos na matéria, está com mais maquiagem de "civil law" a cada dia ). Para aumentar a confusão (ou irrelevância da diferença), países percebidos tradicionalmente como "civil law" estão cada vez mais com cara de "common law" (ex., o nosso Brasil varonil, com a aplicação dos precedentes e a força obrigatória deles, embora culturalmente ainda estejamos caminhando a passos lentos para uma verdadeira aplicação dos precedentes, principalmente entre os juízes de 1º grau e nos Tribunais estaduais). O curioso nesta história toda é o seguinte: os tais países da "common law" caminham para construção e aplicação de textos legais como forma de dar mais segurança jurídicas e relações sociais ao fugir de um ativismo judicial subjacente à força dos precedentes; já os países da "civil law" fazem o sentido inverso, saindo dos textos legais para uma política de construção de precedentes que permita maior criatividade jurisdicional (= ativismo judicial) na definição da regra jurídica aplicável a um caso concreto cuja solução se torna paradigma para tantos outros casos por um critério de aproximação ou similitude. Um caminha para um lado; o outro caminha em sentido oposto. E agora: qual deles está certo? Salvo se eu não estiver enganado em algumas das minhas percepções ou premissas, temos este dilema. Abraços. Leandro
Anônimo disse…
Algumas correções ao meu post anterior:
(i) "Sistema tidos tradicionalmente como da 'common law' cada vez mais..." - óbvio, é SISTEMAS, no plural;
(ii) "(...): os tais países da 'common law' caminham para construção e aplicação de textos legais como forma de dar mais segurança jurídicas e relações sociais ao fugir de um ativismo judicial..." - correção: "os tais países da 'common law' caminham para construção e aplicação de textos legais como forma de dar mais segurança jurídicas ÀS relações sociais ao fugir de um ativismo judicial";
(iii) "Salvo se eu não estiver enganado em algumas das minhas percepções ou premissas, temos este dilema" - o correto é: "Salvo se eu estiver enganado em algumas das minhas percepções ou premissas, temos este dilema". Retirei o "não" do período.
Foi mal aí. Foi a pressa. Abraços. Leandro
Gostei desse post!
Principalmente pelas explicações dos conceitos do common law, como opinion, ratio decidendi, distinguishing...

Um outra distinção que acho interessante, é que nos sistemas de common law, a analogia aos precedentes se dá em razão de semelhanças fáticas do caso novo; já no Brasil, a analogia estabelecida entre os julgados diz respeito a semelhança entre os conceitos jurídicos utilizados na decisão anterior.

abs,
PA

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