Sobre a Ética a Nicômaco 1094a 1-2: Minha posição
Dando continuidade à postagem anterior.
Bem, propus a questão e agora venho dar minha opinião.
1) É preciso primeiro distinguir o que significa dizer que uma ação está "voltada para um fim". Bem, há primeiro um sentido muito trivial disso: Uma ação está voltada para um fim se for possível encontrar algum tipo de fato, estado ou situação que antes da ação está ausente e depois dela está presente e que, em razão de algum proveito, utilidade ou valor intrínseco, representaria um bom motivo para executar aquela ação. Nesse sentido, Aristóteles está certo: toda ação está voltada para um fim, porque não teríamos nenhum bom motivo para realizar uma ação se não supuséssemos que alguma coisa estará melhor depois de agirmos do que estava antes.
2) Contudo, há um segundo sentido, menos trivial, em que uma ação pode estar "voltada para um fim". Quando uma ação é tal que não apenas dela resulta certo fato, estado ou situação, mas também: a) o motivo da ação é a consecução daquele fim; b) cada uma das partes ou etapas da ação se explica exclusivamente a partir de tentativas de melhor alcançar o fim visado; e c) quando a ação não alcança o fim visado, ela é considerada inexistente ou mal sucedida. Para ver como esse segundo sentido é mais exigente, vamos comparar o exemplo de cobrar uma dívida e de expressar afeto por um amante.
- Podemos dizer que cobrar uma dívida é uma ação que tem um fim: conseguir que o devedor pague a dívida. Caso o credor não não tivesse qualquer esperança de que o devedor pagasse a sua dívida, ele não teria nenhum motivo para cobrá-la. Isso satisfaz a condição a). A escolha entre fazer a cobrança por escrito, por telefone ou pessoalmente, entre fazer a cobrança uma vez só ou repetidamente, entre fazer ou não promessa de um possível processo judicial etc., são todas escolhas que se fazem visando a forma de cobrança mais eficaz para que o devedor pague a sua dívida. Isso satisfaz a condição b). Por fim, se, depois de tudo que se fez, o devedor continuar sem pagar a sua dívida, podemos dizer que a cobrança foi, nesse caso, mal sucedida. Isso satisfaz a condição c). Portanto, cobrar uma dívida é uma ação totalmente teleológica ou voltada para um fim.
- Podemos dizer que expressar afeto por um amante é uma ação que tem um fim: conquistar, manter ou recuperar o amor do amante por aquele que assim se expressa. Contudo, mesmo em situações em que aquele que expressa afeto não tem nenhuma esperança de conquistar, manter ou recuperar o amor do amante, ele ainda assim teria motivo para expressar o seu afeto: veja a expressão de afeto das mães por crianças pequenas demais para entender isso, a expressão de afeto de homens por objetos como animais de pelúcia, os poemas escritos para amantes com quem se tem uma relação puramente platônica ou ainda expressões de afetos de viúvos por seus cônjuges mortos, mesmo quando não acreditam na sobrevivência de sua alma. Isso não satisfaz a condição a). Em segundo lugar, as partes, etapas e modos da expressão de afeto tendem a tomar mais a forma do tipo e da intensidade do afeto do que o modo necessário para alcançar o fim de conquistar, manter ou recuperar o amor do amante por aquele que assim se expressa. Não que, em algumas situações, a expressão de afeto não tome a forma que toma em função da maior ou menor dificuldade de conquistar, manter ou recuperar o amor da outra pessoa. Mas é fato que nem sempre é esse o elemento decisivo. Isso não satisfaz a condição b). Finalmente, não é verdade que, se aquele que expressa seu afeto não conseguir conquistar, manter ou recuperar o amor da outra pessoa, então a sua expressão de afeto foi mal sucedida. Não, pelo contrário. Expressar afeto é algo que tem, por assim dizer, um fim em si mesmo, independente de seus resultados. Isso faz com que seja muito mais uma ação que se pratica "porque" do que uma ação que se pratica "para que". Quem expressa afeto, expressa porque ama, e não para ser amado. Amar já é motivo suficiente para expressar afeto, sendo o ser amado um possível resultado, que se pode inclusive querer e comemorar caso se obtenha, mas que não é necessário para que essa ação tenha sentido. Isso não satisfaz a condição c). Desse modo, expressar afeto não é, nesse segundo e mais exigente sentido, uma ação puramente teleológica ou voltada para um fim. (O mesmo se aplicaria a fazer uma oração, em relação ao fim de obter paz de espírito; ou a respeitar os direitos de outrem, em relação ao fim de manter a harmonia social etc.)
3) Para avaliarmos se a afirmação de Aristóteles de que "toda ação está voltada para um fim" é verdadeira ou falsa, devemos decidir se ela deve ser interpretada no primeiro sentido, mais trivial, em que ela seria verdadeira, mas um tanto banal, pouco informativa; ou se ela deve ser interpretada no segundo sentido, mais exigente, em que ela seria mais informativa, porém falsa. Creio que é no segundo sentido que ela deve ser interpretada, porque a tentativa de Aristóteles de hierarquizar as atividades a partir da hierarquia dos bens a que elas visam só faz sentido de toda atividade visar a um bem diverso dela mesma, exterior a ela, algo cuja consecução é a causa de motivação, a pauta de orientação e o critério de avaliação (itens a, b e c, acima) daquela ação. Aristóteles está na verdade tentando nos vender aquela afirmação no segundo sentido, mas, para torná-la mais persuasiva, a apresenta como se ela fosse evidente e inofensiva, isto é, como se ela estivesse no primeiro sentido. Por isso, minha opinião é que Aristóteles está, no fim das contas, errado na afirmação que faz: Muitas ações são do tipo voltado para um fim, mas certamente não todas, e nem mesmo todas as mais significativas na vida de um ser humano.
Estou aberto a continuar essa discussão nos comentários, caso lhes agrade.
Ah, e Feliz Ano Novo a todos! Até 2011!
Bem, propus a questão e agora venho dar minha opinião.
1) É preciso primeiro distinguir o que significa dizer que uma ação está "voltada para um fim". Bem, há primeiro um sentido muito trivial disso: Uma ação está voltada para um fim se for possível encontrar algum tipo de fato, estado ou situação que antes da ação está ausente e depois dela está presente e que, em razão de algum proveito, utilidade ou valor intrínseco, representaria um bom motivo para executar aquela ação. Nesse sentido, Aristóteles está certo: toda ação está voltada para um fim, porque não teríamos nenhum bom motivo para realizar uma ação se não supuséssemos que alguma coisa estará melhor depois de agirmos do que estava antes.
2) Contudo, há um segundo sentido, menos trivial, em que uma ação pode estar "voltada para um fim". Quando uma ação é tal que não apenas dela resulta certo fato, estado ou situação, mas também: a) o motivo da ação é a consecução daquele fim; b) cada uma das partes ou etapas da ação se explica exclusivamente a partir de tentativas de melhor alcançar o fim visado; e c) quando a ação não alcança o fim visado, ela é considerada inexistente ou mal sucedida. Para ver como esse segundo sentido é mais exigente, vamos comparar o exemplo de cobrar uma dívida e de expressar afeto por um amante.
- Podemos dizer que cobrar uma dívida é uma ação que tem um fim: conseguir que o devedor pague a dívida. Caso o credor não não tivesse qualquer esperança de que o devedor pagasse a sua dívida, ele não teria nenhum motivo para cobrá-la. Isso satisfaz a condição a). A escolha entre fazer a cobrança por escrito, por telefone ou pessoalmente, entre fazer a cobrança uma vez só ou repetidamente, entre fazer ou não promessa de um possível processo judicial etc., são todas escolhas que se fazem visando a forma de cobrança mais eficaz para que o devedor pague a sua dívida. Isso satisfaz a condição b). Por fim, se, depois de tudo que se fez, o devedor continuar sem pagar a sua dívida, podemos dizer que a cobrança foi, nesse caso, mal sucedida. Isso satisfaz a condição c). Portanto, cobrar uma dívida é uma ação totalmente teleológica ou voltada para um fim.
- Podemos dizer que expressar afeto por um amante é uma ação que tem um fim: conquistar, manter ou recuperar o amor do amante por aquele que assim se expressa. Contudo, mesmo em situações em que aquele que expressa afeto não tem nenhuma esperança de conquistar, manter ou recuperar o amor do amante, ele ainda assim teria motivo para expressar o seu afeto: veja a expressão de afeto das mães por crianças pequenas demais para entender isso, a expressão de afeto de homens por objetos como animais de pelúcia, os poemas escritos para amantes com quem se tem uma relação puramente platônica ou ainda expressões de afetos de viúvos por seus cônjuges mortos, mesmo quando não acreditam na sobrevivência de sua alma. Isso não satisfaz a condição a). Em segundo lugar, as partes, etapas e modos da expressão de afeto tendem a tomar mais a forma do tipo e da intensidade do afeto do que o modo necessário para alcançar o fim de conquistar, manter ou recuperar o amor do amante por aquele que assim se expressa. Não que, em algumas situações, a expressão de afeto não tome a forma que toma em função da maior ou menor dificuldade de conquistar, manter ou recuperar o amor da outra pessoa. Mas é fato que nem sempre é esse o elemento decisivo. Isso não satisfaz a condição b). Finalmente, não é verdade que, se aquele que expressa seu afeto não conseguir conquistar, manter ou recuperar o amor da outra pessoa, então a sua expressão de afeto foi mal sucedida. Não, pelo contrário. Expressar afeto é algo que tem, por assim dizer, um fim em si mesmo, independente de seus resultados. Isso faz com que seja muito mais uma ação que se pratica "porque" do que uma ação que se pratica "para que". Quem expressa afeto, expressa porque ama, e não para ser amado. Amar já é motivo suficiente para expressar afeto, sendo o ser amado um possível resultado, que se pode inclusive querer e comemorar caso se obtenha, mas que não é necessário para que essa ação tenha sentido. Isso não satisfaz a condição c). Desse modo, expressar afeto não é, nesse segundo e mais exigente sentido, uma ação puramente teleológica ou voltada para um fim. (O mesmo se aplicaria a fazer uma oração, em relação ao fim de obter paz de espírito; ou a respeitar os direitos de outrem, em relação ao fim de manter a harmonia social etc.)
3) Para avaliarmos se a afirmação de Aristóteles de que "toda ação está voltada para um fim" é verdadeira ou falsa, devemos decidir se ela deve ser interpretada no primeiro sentido, mais trivial, em que ela seria verdadeira, mas um tanto banal, pouco informativa; ou se ela deve ser interpretada no segundo sentido, mais exigente, em que ela seria mais informativa, porém falsa. Creio que é no segundo sentido que ela deve ser interpretada, porque a tentativa de Aristóteles de hierarquizar as atividades a partir da hierarquia dos bens a que elas visam só faz sentido de toda atividade visar a um bem diverso dela mesma, exterior a ela, algo cuja consecução é a causa de motivação, a pauta de orientação e o critério de avaliação (itens a, b e c, acima) daquela ação. Aristóteles está na verdade tentando nos vender aquela afirmação no segundo sentido, mas, para torná-la mais persuasiva, a apresenta como se ela fosse evidente e inofensiva, isto é, como se ela estivesse no primeiro sentido. Por isso, minha opinião é que Aristóteles está, no fim das contas, errado na afirmação que faz: Muitas ações são do tipo voltado para um fim, mas certamente não todas, e nem mesmo todas as mais significativas na vida de um ser humano.
Estou aberto a continuar essa discussão nos comentários, caso lhes agrade.
Ah, e Feliz Ano Novo a todos! Até 2011!
Comentários
Amo de paixão a filosofia, ajuda-nos a pensar de forma mais ampla. E sempre penso que quando não tivermos saída para algo, podemos usar da filosofia pura, atingiremos algum degrau.
Abraços.