A Teoria das Ideias ou das Formas: Uma Tentativa de Reabilitar Platão

Toda exposição do pensamento de Platão precisa passar necessariamente pela exposição da chamada teoria das ideias ou das formas. Segundo essa teoria, as coisas que pertencem ao mundo sensível, isto é, o mundo a que temos acesso através dos sentidos, seriam apenas cópias imperfeitas de ideias ou formas que habitam um mundo inteligível, isto é, acessível apenas ao intelecto. Essa ideia ou forma (eidos) de cada coisa equivaleria ao seu conceito (logos) e poderia ser descoberta mediante a dialética: um método de busca da verdade em que, por via de perguntas e respostas, se chega ao conhecimento das coisas que são para além de toda a aparência. Esse método estaria ilustrado nos célebres diálogos em que Sócrates pergunta a alguém o que é tal coisa - a piedade, a amizade, o conhecimento, a justiça etc. -, refuta sistematicamente as tentativas dessa pessoa de responder à questão recorrendo aos juízos do senso comum e inicia, mediante um jogo de perguntas e respostas, a construção do conceito daquela coisa a partir do que lhe é mais essencial, do que nunca varia nem a confunde com outra coisa. Dessa forma, atinge-se o conceito da coisa, sua ideia ou forma, o qual se pensa que é uma entidade com existência própria num mundo paralelo, o mundo das ideias ou das formas.

Essa é, esquematicamente, a exposição tradicional da teoria das ideias ou das formas em Platão. Exposta dessa forma, ela soa como uma teoria interessante e curiosa, mas francamente inaceitável. Ela parece confundir, de modo ingênuo, aquilo que existe no pensamento com aquilo que existe na realidade, supondo, então, uma realidade paralela em que os objetos do pensamento "existem" da mesma maneira que em nossa realidade cotidiana existem árvores, pedras e cavalos. Ela parece supor também, sem nenhum motivo convincente, que entre nossa realidade cotidiana e essa realidade paralela existe uma relação de subordinação e de imitação, de modo que a realidade paralela das ideias ou formas seria superior e primária em relação à realidade inferior e secundária das coisas cotidianas. Por fim, ela parece nos convidar a desacreditarmos das coisas cotidianas e a acreditarmos apenas nas ideias ou formas descobertas pela dialética, devotando-nos à sua contemplação intelectual, identificada com a posse da verdade. Todos esses seriam excelentes motivos para rejeitar veementemente a teoria platônica das ideias ou formas ou qualquer variação dela.


Gostaria, contudo, de propor uma versão que penso ser não apenas aceitável, mas dificilmente rejeitável por qualquer um que reflita sensatamente sobre as coisas. O ponto de partida da minha proposta está em identificar as ideias ou formas, de um lado, com conceitos abstratos e as coisas sensíveis, de outro lado, com objetos concretos. Assim, "Monalisa" é, por exemplo, o nome de uma pintura, designando um objeto concreto. Ele não é concreto porque existe. Unicórnios são objetos concretos e não existem. Ele é concreto porque apresenta, sob uma única intuição, vários conceitos abstratos: cor, textura, matéria, desenho, formato, tamanho, preço, valor, beleza, fama etc. Esses conceitos abstratos são decomponíveis entre si, quer dizer, podem ser separados dos outros e examinados individualmente. A lista que acabei de fazer é exatamente uma lista de conceitos abstratos envolvidos no conceito concreto "Monalisa".

Isso explicaria porque o conjunto das ideias ou formas é chamado de mundo inteligível: Não é possível ver um conceito abstrato como "cor" ou "valor", só é possível ver objetos concretos que têm cor ou que têm valor. Só se pode apreender um conceito abstrato pelo pensamento, enquanto um objeto concreto pode (ao menos em princípio) ser percebido pelos sentidos. Explicaria também a suposta relação de "cópia" que as coisas mantêm com as ideias ou formas: os objetos concretos são exemplos de conceitos abstratos (por exemplo, a Monalisa é exemplo de um objeto que tem cor) mas não são os próprios conceitos abstratos (a Monalisa não é a cor, embora tenha uma cor) e não esgotam o que os conceitos abstratos são (a Monalisa tem uma cor, mas existem muitas outras cores além das que estão na Monalisa). A noção de "cópia imperfeita" seria, então, substituída pela noção de "exemplo não exaustivo". Isso deixa mais claro de que maneira um cavalo real pode ser considerado a cópia da ideia ou forma de cavalo: Um cavalo individual é um exemplo não exaustivo do conceito abstrato "cavalo", não apenas porque o cavalo individual tem vários atributos que não estão no conceito "cavalo" (por exemplo, chamar-se Vendaval, ser preto, gostar de correr no bosque e preferir alfafa mais nova), como também porque são concebíveis muitas outras manifestações concretas do conceito "cavalo" que não seriam idênticas àquele cavalo individual.

A dialética poderia ser, então, vista como uma técnica pela qual se tenta isolar os conceitos abstratos mais importantes para a caracterização de certo tipo de objeto concreto (por exemplo, os traços que tornam um animal um cavalo). Essa técnica alia a proposição de certos conjuntos de conceitos abstratos como centrais com uma busca constante de contra-exemplos capazes de derrubar essas propostas e criarem outra vez a necessidade de isolar um novo conjunto de conceitos abstratos principais. É mais ou menos isso que ocorre com a teoria do conhecimento como crença verdadeira justificada e com os célebres contra-exemplos de Gettier, que mostram que, por mais persuasiva que a definição do conhecimento como crença verdadeira justificada pareça, haveria casos em que uma crença, mesmo sendo tanto verdadeira quanto justificada, não poderia ser chamada de conhecimento.

Por fim, a minha proposta explicaria também a necessidade de o filósofo ascender, por meio do pensamento, da ilusão do mundo das coisas para a contemplação da verdadeira realidade do mundo das ideias ou das formas. Isso quereria dizer apenas que, enquanto não formos capazes de isolar os conceitos abstratos que estão presentes num objeto concreto e de relacionar objetos concretos formados por conceitos abstratos iguais ou diferentes, não seremos capazes de nenhum tipo de conhecimento. A contemplação das ideias e das formas nada seria senão a tentativa de compreensão da realidade à luz de conceitos, como ferramentas mínimas sem as quais temos apenas a simples percepção sensorial muda e estéril. E isso - que temos que conhecer os objetos concretos, mas só podemos realmente conhecê-los através de conceitos abstratos - creio que não seria negado por ninguém que tenha bom senso.

Na minha opinião, essa versão da teoria platônica a torna praticamente não metafísica, altamente útil e aceitável e bastante contemporânea. Espero comentários sobre o que acham a respeito.

Comentários

Pedro Camejo disse…
Nossa, por coincidência tirei o início das minhas férias para ler algumas obras de Platão e sua doutrina. Ainda que eu seja apenas um iniciado, consigo reconhecer que o Professor realizou uma releitura realmente interessante sobre a doutrina das idéias de Platão.
Agora quero aproveitar a postagem para falar sobre algo que realmente me intriga na doutrina das idéias de Platão. É dito que o mundo sensível é mera cópia do mundo inteligível, e que dessa forma, cada ente sensível tem um correspondente ideal. A dúvida que tenho é se Platão previa também formas ideais para entes vis (maldade, crueza, etc.); se não previa, como se justifica a presença deles no mundo sensível, já que seu suporte é o mundo inteligível? Se possível, responda à luz das duas interpretações (a tradicional e que o Professor realizou).
Um abraço!
Anônimo disse…
Caro Pedro, ainda bem que cumpriste tua promessa e passaste a deixar aqui registradas tuas opiniões e contribuições. Sê mais uma vez bem vindo a este espaço e retorna sempre, para conversarmos sobre os temas e problemas que as postagens deixam no ar. Quanto à tua dúvida, ela na verdade tem uma ascendência bem antiga. Era formulada já na Idade Média por alguns aristotélicos como uma forma de contradizer a teoria platônica. Ela, porém, se apoia numa má compreensão de alguns elementos do pensamento do discípulo de Sócrates. Em primeiro lugar, para Platão, o mal não é, no sentido de que não tem um ser positivo, um ser que se manifesta como ser algo no mundo. O mal é apenas a ausência, insuficiência ou distorção do bem. Tem, portanto, apenas um ser negativo, um ser que se manifesta como não ser uma outra coisa, como não chegar a ser certa outra coisa. Então, um vício, digamos, a preguiça, é apenas o efeito visível da ausência de uma virtude, digamos, a disposição de ânimo. Não há um ser chamado preguiça, mas preguiça é apenas o nome com que nos referimos à falta de disposição de ânimo para fazer as coisas. Daí fica fácil mostrar como a preguiça pode, mesmo sendo um mal, ter suporte no mundo inteligível. Sendo um mal, ela é uma ausência do bem, neste caso, uma ausência da disposição de ânimo, a qual, sendo uma virtude, corresponde a uma ideia própria do mundo das ideias. Não há nisso nenhuma contradição na teoria platônica. Espero que tenha respondido à sua questão. Abraço!
Pedro Camejo disse…
É, o senhor tem razão mesmo. Tinha visto esse ponto sendo criticado na teoria de Platão enquanto lia a respeito. Porém, acabei me deixando levar pelo erro por não conhecê-la direito. Até mais!
Sua proposta parece menos uma tentativa de "reabilitar" Platão que uma tentativa de adaptá-lo aos cânones da epistemologia analítica contemporânea. Nesse sentido, se Platão só for válido na medida em que faz afirmações que a epistemologia analítica contemporânea considera triviais, tem-se que: primeiro, Platão é um autor de afirmações triviais; e, segundo, melhor que estudar Platão é estudar a epistemologia analítica contemporânea. Não seria isso exatamente o contrário de "reabilitar" Platão?
Outra coisa: Digamos que o platônico aceite a sua proposta e se torne um platônico analítico. Se ele se propusesse, como Platão, uma questão sobre, por exemplo, o que é a amizade, teria que pensar que, concretamente, o que temos são pessoas que são amigas de outras, o que quer dizer que elas se comportam de modo tal e tal que indentificamos como sendo o modo como tipicamente amigos se comportam um em relação ao outro. A amizade seria uma abstração, ou, como você propôs, um conceito abstrato, que retira da pessoa ou da relação concreta apenas um traço que as caracteriza, não é isso? Ora, mas isso bloquearia o projeto socrático-platônico de que, através da dialética, seja possível reformar as noções que os homens fazem das coisas, levando-os da ilusão à verdade. A consequência da dialética tal como você a propõe seria convertê-la em técnica de análise da linguagem no estilo de Moore, de Austin e de Searle. Mas a análise da linguagem cotidiana tem o objetivo de torná-la clara, e não de reformá-la de modo algum. Como a dialética ainda poderia ter um papel de ascese à verdade? Como ela ainda poderia desempenhar a função de aperfeiçoamento ético? Não teria ela sido neutralizada de toda conotação ascética e ética em nome de uma conotação pura e simplesmente analítico-conceitual? E, se for, será que isso ainda é mesmo Platão?

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