Sobre Egoismo e Altruismo a partir de Derek Parfit
Derek Parfit (1942) é um filósofo inglês da tradição analítica, que se dedica, como seus colegas, a longas e minuciosas análises conceituais, mas que as emprega, ao contrário de muitos de seus colegas, para chegar a conclusões bastante originais a partir de argumentos bastante criativos. Ele faz parte, juntamente com Quine, Putnam, Searle, Rorty, McDowell, Williams e outros, da ala mais recente e intelectualmente provocativa do pensamento analítico de língua inglesa. Nessa postagem quero falar de um argumento que Parfit usa em seu livro Reasons and Persons, publicado em 1984 e que teve um impacto particularmente intenso sobre os debates em filosofia da ação, filosofia moral e filosofia da mente.
O argumento é assim: Suponha que seu corpo sofresse um acidente e que seu cérebro fosse transplantado para outro corpo. Mas suponha que, em vez de transplantá-lo inteiro para um corpo só, os médicos o translantassem em duas metades, uma correspondente ao hemisfério esquerdo (chamemos essa metade de E) e outra correspondente ao hemisfério direito (chamemos essa metade de D), cada uma para um corpo diferente. Suponha também que suas memórias, desejos, gostos, preferências, anseios, sonhos etc. permanecessem mais ou menos os mesmos antes e depois da operação e que eles se manifestassem intactos tanto na metade E quanto na D. Suponha, por fim, que o corpo que recebeu a metade E, que chamaremos de indivíduo E, mora nos EUA, enquanto o indivíduo que recebeu a metade D, que chamaremos de indivíduo D, mora, por exemplo, no Japão. E e D serão, daqui para frente, em dois lugares diferentes e com dois corpos diferentes, duas versões de você. Parfit agora pergunta: O fato de que D teria a mesma memória e a mesma identidade pessoal que E seria por si só uma boa razão para que E tentasse encontrar D e dedicasse sua vida a fazer o bem a D (ou vice-versa)? Parfit tentará nos convencer de que não: D ter a mesma memória e identidade pessoal que E não é, por si só, motivo para E dedicar-se a ajudar D.
Sei que, se você continuou lendo o argumento até aqui, achou a coisa toda meio bizarra. Mas acredite: O argumento faz sentido e tem valor para outras coisas. Uma das coisas para as quais Parfit o emprega é contra uma ideia do chamado egoísmo racional, a teoria segundo a qual só tenho razões para fazer alguma coisa se essa coisa puder se reverter como um benefício para mim mesmo a curto, médio ou longo prazo. Parfit ataca essa ideia mostrando que eu fazer alguma coisa agora (por exemplo, fazer um curso universitário, pagar impostos, deixar de comer alimentos gordurosos) com vista a algum benefício que se reverterá para mim no futuro (por exemplo, ter uma profissão bem remunerada, desfrutar de serviços públicos eficientes, ter uma vida longa e saudável) equivale ao indivíduo E fazer algum sacrifício em nome de D. A relação que meu eu do presente tem com meu eu do futuro é que meu eu do futuro é uma continuação de meu eu do presente, no sentido de que eles partilham da mesma memória e de mais ou menos a mesma identidade. Mas essa relação é a mesma que existe entre E e D, que Parfit já demonstrou que não é suficiente para que E faça alguma coisa por D, ou vice-versa. Restaria concluir que meu eu do presente não tem mais razão para sacrificar-se em nome de meu eu do futuro do que E teria para sacrificar-se por D (ou vice-versa). Mas se não há bons motivos para meu eu do presente se sacrificar por meu eu do futuro, então o egoismo racional não faz tanto sentido quanto poderia parecer à primeira vista.
Depois disso, Parfit desenvolverá seu argumento no sentido de mostrar que ainda haveria um bom motivo para que meu eu do presente se sacrificasse por meu eu do futuro, mas que esse motivo não poderia ser o fato de que ambos partilham da mesma memória e identidade pessoal. O motivo teria que ser outro. Este outro motivo seria que meu eu do futuro é uma pessoa digna de respeito e de esforço para ser ajudado e que meu eu do presente pode e deve ajudá-lo por esse motivo. Mas, se aceitarmos isso, teremos também que aceitar que o motivo pelo qual meu eu do presente deve se sacrificar por meu eu do futuro seria o mesmo motivo pelo qual ele deveria se sacrificar por qualquer outra pessoa. Na verdade, é exatamente aí que Parfit queria chegar. Inspirado no Budismo de Siddharta Gautama, Parfit alegará que, com a dissolução do egoismo fundado na identidade pessoal, fica claro que meu compromisso comigo mesmo não é nem maior nem menor que meu compromisso com qualquer outra pessoa. A ideia de egoismo para comigo mesmo é substituída pela ideia de altruismo para comigo mesmo, um altruísmo que é exatamente o mesmo que devo ter para com qualquer outra pessoa.
É assim que, por um argumento a princípio exótico (que envolve transplante de cérebros etc.), Parfit tenta defender uma ideia antiga, a do altruísmo universal. Até que ponto sua defesa é convincente fica para cada leitor julgar. Mas o argumento é criativo, estimulante e merecedor de reflexão e debate.
O argumento é assim: Suponha que seu corpo sofresse um acidente e que seu cérebro fosse transplantado para outro corpo. Mas suponha que, em vez de transplantá-lo inteiro para um corpo só, os médicos o translantassem em duas metades, uma correspondente ao hemisfério esquerdo (chamemos essa metade de E) e outra correspondente ao hemisfério direito (chamemos essa metade de D), cada uma para um corpo diferente. Suponha também que suas memórias, desejos, gostos, preferências, anseios, sonhos etc. permanecessem mais ou menos os mesmos antes e depois da operação e que eles se manifestassem intactos tanto na metade E quanto na D. Suponha, por fim, que o corpo que recebeu a metade E, que chamaremos de indivíduo E, mora nos EUA, enquanto o indivíduo que recebeu a metade D, que chamaremos de indivíduo D, mora, por exemplo, no Japão. E e D serão, daqui para frente, em dois lugares diferentes e com dois corpos diferentes, duas versões de você. Parfit agora pergunta: O fato de que D teria a mesma memória e a mesma identidade pessoal que E seria por si só uma boa razão para que E tentasse encontrar D e dedicasse sua vida a fazer o bem a D (ou vice-versa)? Parfit tentará nos convencer de que não: D ter a mesma memória e identidade pessoal que E não é, por si só, motivo para E dedicar-se a ajudar D.
Sei que, se você continuou lendo o argumento até aqui, achou a coisa toda meio bizarra. Mas acredite: O argumento faz sentido e tem valor para outras coisas. Uma das coisas para as quais Parfit o emprega é contra uma ideia do chamado egoísmo racional, a teoria segundo a qual só tenho razões para fazer alguma coisa se essa coisa puder se reverter como um benefício para mim mesmo a curto, médio ou longo prazo. Parfit ataca essa ideia mostrando que eu fazer alguma coisa agora (por exemplo, fazer um curso universitário, pagar impostos, deixar de comer alimentos gordurosos) com vista a algum benefício que se reverterá para mim no futuro (por exemplo, ter uma profissão bem remunerada, desfrutar de serviços públicos eficientes, ter uma vida longa e saudável) equivale ao indivíduo E fazer algum sacrifício em nome de D. A relação que meu eu do presente tem com meu eu do futuro é que meu eu do futuro é uma continuação de meu eu do presente, no sentido de que eles partilham da mesma memória e de mais ou menos a mesma identidade. Mas essa relação é a mesma que existe entre E e D, que Parfit já demonstrou que não é suficiente para que E faça alguma coisa por D, ou vice-versa. Restaria concluir que meu eu do presente não tem mais razão para sacrificar-se em nome de meu eu do futuro do que E teria para sacrificar-se por D (ou vice-versa). Mas se não há bons motivos para meu eu do presente se sacrificar por meu eu do futuro, então o egoismo racional não faz tanto sentido quanto poderia parecer à primeira vista.
Depois disso, Parfit desenvolverá seu argumento no sentido de mostrar que ainda haveria um bom motivo para que meu eu do presente se sacrificasse por meu eu do futuro, mas que esse motivo não poderia ser o fato de que ambos partilham da mesma memória e identidade pessoal. O motivo teria que ser outro. Este outro motivo seria que meu eu do futuro é uma pessoa digna de respeito e de esforço para ser ajudado e que meu eu do presente pode e deve ajudá-lo por esse motivo. Mas, se aceitarmos isso, teremos também que aceitar que o motivo pelo qual meu eu do presente deve se sacrificar por meu eu do futuro seria o mesmo motivo pelo qual ele deveria se sacrificar por qualquer outra pessoa. Na verdade, é exatamente aí que Parfit queria chegar. Inspirado no Budismo de Siddharta Gautama, Parfit alegará que, com a dissolução do egoismo fundado na identidade pessoal, fica claro que meu compromisso comigo mesmo não é nem maior nem menor que meu compromisso com qualquer outra pessoa. A ideia de egoismo para comigo mesmo é substituída pela ideia de altruismo para comigo mesmo, um altruísmo que é exatamente o mesmo que devo ter para com qualquer outra pessoa.
É assim que, por um argumento a princípio exótico (que envolve transplante de cérebros etc.), Parfit tenta defender uma ideia antiga, a do altruísmo universal. Até que ponto sua defesa é convincente fica para cada leitor julgar. Mas o argumento é criativo, estimulante e merecedor de reflexão e debate.
Comentários
Muito embora os indivíduos E e D corsevem identidade e memórias do indivíduo original do qual ambos derivam, a separação de corpos não seria suficiente para o pleno processo de identificação entre ambos. Por mais parecidos que possam ser, suas identidades (não a consciência de existência "bifurcada", com experiências concomitantemente adquiridas e cumuladas)não se confundirão, visto tratar-se de físicos diferentes; não podemos descurar do quesito material, de estruturas corpóereas diferentes. Os sentidos dos dois corpos poderão armazenar mnemonicamente sensibilizações apartadas posteriormente compartilhadas. Entretanto, o que dizer da manifestação desses indivíduos com base nas experiências adquiridas em conjunto, como se fossem apenas um? Afinal, não são os mesmos individualizados (ao menos fisicamente)? A assistÊncia que um pretasse ao outro no afã de poupar-se de eventuais desventuras, logo, a fim de beneficiar-se a si mesmo, concebendo dois como apenas um. Nesse sentido, a dedicação extrema de um ao outro acabaria por desbancar essa obscura experiência de cisão corporal, já que o comportamento dos seres em tela seriam recíprocos a ponto de fundirem-se de uma vez por todas (quando menos, tornarem-se gêmeos xifópagos).
No tocante ao eu presente e ao eu futuro, esses inegavelmente portam afinidades oriundas duma mesma base experimental e pessoal (memórias e identidade respectivamente), sendo que o último (eu futuro) engloba por completo aquele (eu presente)e, logicamente, seus predecessores. Agora, não se tarta de seres derivados debandados pelo espaço, mas sim de seres apartados pelo tempo. Além do cúmulo experimental percebido pelos "dois" seres, teríamos a manifestação de tais sensibilizações num mesmo corpo, as quais resvalariam no mundo fático em ocasiões diferentes, havendo, portanto, uma incomunicabilidade entre esses seres em questão, no sentido de um influir direta e conscientemente na escolha do outro. A vida, por ser uma só para ambos, justificaria o comportamente "egoístico" do eu presente, não por estar preocupado como eu futuro, mas por estar empenhado na manutenção de um eu presente em boas condições, enfocando a mera conversão do eu futuro, apenas um simplório projeto, em "eu" presente e não "aquele" ainda ausente (no caso, o eu futuro)...
Caro profº André Coelho,
aprecio por demais suas ponderações acerca de questões intrincadas como essa; tanto é que tomarei o seu blog como um norte, no quesito temáticas, para alimentar meu esfaimado blog (http://romulocalado.blogspot.com/). Grato por suas colocações e pelo nobre ato de compartilhar conchecimento. Abraço! Rômulo.