Positivismo Jurídico e Crise (2): Resposta a dois interlocutores

Fui prestigiado e presenteado com vários comentários importantes e estimulantes à minha penúltima postagem e, por isso, decidi eleger duas delas para dar continuidade à discussão em nova postagem. Trata-se, de modo curioso e quase poético, de meu ex-orientando de TCC e de meu atual orientador de dissertação. Aperte em "mais informações" para ver as colocações deles e as minhas respostas.

Primeiro as colocações (em itálico) feitas pelo meu ex-orientando e eterno amigo, Sérgio Mendes Filho, seguidas de minhas respostas (em fonte normal):


a) sobre o ponto (1), tenho dúvidas se a tese positivista da separação estende-se à interpretação e à aplicação do direito. A cisão nos positivistas jurídicos entre teoria do direito e teoria da adjudicação me faz pensar que a tese da separação restringe-se às questões da validade e da identificação do direito. Talvez por isso o positivismo jurídico diga pouco sobre a prática judicial e seja incapaz de oferecer um modelo de atuação para os juízes;
- Teria várias maneiras de responder ao teu primeiro questionamento. A primeira seria dizer que, a julgar pelo explicitamente afirmado em seus textos, os positivistas tinham, sim, uma teoria da aplicação do direito ao caso concreto, ou, como disseste, com muita propriedade técnica, aliás, da “adjudicação”.  Trata-se da teoria que procura integrar o tradicional silogismo judicial com uma consciência reflexiva da indeterminação de sentido das normas jurídicas, resultando na doutrina da discricionariedade em sentido forte, que é mais bem classificada com o nome de decisionismo judicial. Mas, como és leitor cuidadoso e atento destes autores, recuso-me a pensar que tenhas querido dizer que eles não se manifestaram a respeito da adjudicação. Suponho, então, que tenhas querido dizer que, ao tempo da formulação das teorias de Kelsen e Hart, ainda não se tinha desenvolvido uma clara percepção da necessidade de lidar com distintos critérios para questões de validade e questões de aplicação, de modo que, para aqueles autores, ainda parecia que as últimas se respondiam, quase mecanicamente, a partir das primeiras. Nesse caso, a tese da separação entre direito e moral, que encontra seu melhor assento como resposta às questões de validade, não deveria ser hoje interpretada como levando diretamente a soluções no plano da aplicação, o que se faria corretamente, mas à custa do que foi explicitamente dito pelos positivistas. Se tiver sido isso, dou-te toda razão, mas adapto minha resposta dessa outra forma: Para o meu argumento, é apenas importante mostrar que, na visão do chamado pós-positivismo, a tese da separação entre direito e moral não apenas se refere também ao âmbito da aplicação do direito, como é precisamente nesse âmbito que costuma ser refutada. Desse modo, eu ainda poderia me referir à suposta “refutação do positivismo jurídico” em vista de questões de aplicação, reservando-me, embora, o direito de interpretar o positivismo de modo distinto, que o preserva dessa crítica.

b) sobre neoconstitucionalismo e assuntos afins, receio que as teorias do direito forjadas nessa "onda" intelectual podem ensejar novas modalidades jurídicas privadas; não mais as visões conservadoras, mas as perspectivas práticas pessoais, subjetivas dos juízes e dos juristas;
- Se “ensejar” quiser dizer criar, à revelia de seu discurso, ao mesmo tempo o favorável ambiente intelectual e a adequada justificativa pseudoteórica a posteriori, concordo contigo, mas teria que estender esse juízo também ao positivismo jurídico, da forma como, na prática, foi assimilado e reproduzido pela prática jurídica da quase totalidade dos países centrais, para não falar dos periféricos. Diria que o arbítrio privado do julgador é algo assim como um demônio ardiloso que sempre encontra em cada nova teoria hegemônica a brecha intelectual na qual pode se reinventar e se reproduzir.
  
c) em que medida se pode afirmar o êxito cultural do positivismo jurídico enquanto teoria moral e política, em termos que contradiriam bastante as pretensões teóricas explícitas dos autores dessa linhagem?;
- A hipótese que levanto ressitua e ressignifica as teses tanto do positivismo como do assim chamado pós-positivismo, pois os coloca no curso da história das ideias, interpretando-os não com os olhos do intérprete-partícipe , mas sim do intérprete-observador-privilegiado, que conhece o curso da história e se permite entender as teses dos autores à luz de um saber de que eles não dispunham e, por isso mesmo, de modo tal que pode contrariar a letra explícita do que escreveram. Sendo assim, as “pretensões teóricas explícitas” teriam que ser revistas e ressignificadas em seu devido contexto, após o que se veria que, no sentido que realmente tinham (em oposição ao sentido que seus autores davam a elas), foram, sim, bem sucedidas.

d) é possível falar que o positivismo jurídico estimula a moralidade pública liberal em face da descrença positivista na possibilidade da razão prática e da pretensão de oferecer uma teoria capaz de explicar as características fundamentais de todo e qualquer direito?
- Quanto a esse último ponto, terei certamente me expressado mal se tiver dado a entender que o positivismo já continha desde sempre ou ajudou a formular a partir de suas premissas uma nova cultura moral. Não quis dizer isso. Quis dizer, sim, que, sob o estímulo da convivência entre indivíduos num Estado democrático de Direito, que o positivismo ajudou a sustentar e a imunizar contra as pressões de uma moralidade privada tradicional, a moralidade pública liberal pôde florescer e ganhar força até o ponto de, filhote maduro, voltar-se contra a casca que a tinha protegido até então e quebrá-la para anunciar-se ao mundo das ideias. Essa seria, certamente, a formulação mais precisa (metáforas ovíparas aparte) da minha hipótese.

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Agora a opinião (em itálico), comunicada a mim por e-mail, do meu atual orientador (e também muito amigo, certamente), Delamar José Volpato Dutra, seguida da minha resposta (em fonte normal):
Tem duas teses com as quais não sei se posso concordar, primeira, que a crítica de Hart e Kelsen à moral tenham sido a uma moral particular; segunda, que o positivismo tenha esgotado suas energias, até porque é uma tese muito dependente da verdade da primeira.

Em primeiro lugar, as ideias da postagem são tais que, pelo menos por enquanto, eu só expressaria num espaço mais ou menos descompromissado como um blog, pois sua defesa mais consequente e fundada dependeria de vasta pesquisa e trabalho argumentativo. A hipótese que levanto ali ressitua e resignifica as teses tanto do positivismo como do assim chamado pós-positivismo, pois os coloca no curso da história das ideias, interpretando-os não com os olhos do intérprete-partícipe , mas sim do intérprete-observador-privilegiado, que conhece o curso da história e se permite entender as teses dos autores à luz de um saber de que eles não dispunham e, por isso mesmo, de modo tal que pode contrariar a letra explícita do que escreveram.
 
Sendo assim, é inegável que Kelsen e Hart se opuseram à conexão conceitual do direito com todo e qualquer tipo de moral. Sua exclusão da moral não se refere a uma moral em particular e, muito pelo contrário, elabora argumentos tanto no terreno da desnecessidade jurídica de apelo à moral, quanto no terreno da impossibilidade de fundação racional e de consenso universal em matéria moral. Sei disso, não se preocupe. Quando, no entanto, propus na psotagem que a rejeição positivista da moral (que é, repito, na letra do texto, uma rejeição de qualquer moral) deveria ser lida como a rejeição de uma moral particular, foi à luz daquele saber privilegiado do intérprete de que falei no parágrafo anterior. Creio que isso ressalta do tipo de estratégia teórica com que Kelsen e Hart despacham a moral, a qual apela para argumentos não cognitivistas e pluralistas que só fazem sentido ao falar de moral social (e não de moral racional) e ao falar de sistemas morais que não conseguem captar as condições de convivência de indivíduos diferentes num espaço de coordenação da ação. Não há, na obra de nenhum dos dois autores, nada que se possa reconhecer como um ataque articulado à moralidade universalista fundada no igual respeito, na liberdade e nos direitos humanos, o que, convenhamos, é uma lacuna notável e significativa. Se somarmos a isso os argumentos (especialmente de Kelsen) de como o direito consegue administrar melhor as diferenças e oposições entre os indivíduos, de como o direito é o único garante da paz na ausência de consenso substantivo e de como o direito é a única estrutura capaz de dar suporte normativo à ideia mesma de democracia constitucional, percebemos como Kelsen rejeitava na moral seus elementos de particularidade, de irracionalidade e de subjetividade, tornando seus argumentos difíceis de serem aplicados de igual forma ao que chamei na postagem de moralidade pública liberal. É isso que permite ao intérprete-observador-privilegiado perguntar-se: Que moral esses autores tinham em vista quando disseram o que disseram e o que pensavam que a moral dizia, exigia ou implicava quando fizeram suas críticas? A resposta a essa questão, extraída do tipo de estratégia argumentativa que eles pensavam ser eficaz contra a moral, me leva à hipótese que levanto na postagem.
 
Quanto ao esgotamento das energias do positivismo, é uma tese com a qual também não concordo. Apenas reconheci que é uma tese presente no discurso do pós-positivismo e que, nessa abordagem, se baseia sobretudo na ideia do colapso da tese da separação entre direito e moral. Daí me permiti novamente situar no horizonte histórico essa nova tese e me perguntar se, quando positivistas viam incompatibilidade e pós-positivistas, compatibilidade entre conceitos e juízos morais e jurídicos, isso não acontecia porque os conceitos e juízos morais de que estavam falando provinham de tipos diferentes de moral e tinham relações diferentes com o Direito. Afinal, é notável a semelhança dos argumentos com que esses autores recentes defendem a moralidade pública liberal e os argumentos com que Kelsen e Hart defendiam a superioridade do direito sobre a moral, o que, novamente, leva o intérprete-observador-privilegiado a perguntar-se, primeiro, se a mudança dos argumentos em favor do agora rebatizado positivismo exclusivo em autores como Raz, Marmor e Patterson não é um sintoma de que os velhos argumentos contra a moral não valem mais para a nova moralidade que emergiu do Estado democrático de Direito e, segundo, se essa nova moralidade não é ela mesma produto da convivência nas condições de igualdade e liberdade que foi o próprio Estado democrático de Direito que proporcionou. Isso ressignificaria o próprio diagnóstico do esgotamento do positivismo de Kelsen e Hart como sendo, na verdade, uma incorporação dos traços que estes atribuíam apenas ao direito no seio dos próprios conceitos e juízos morais. Nesse caso, teria sido antes a moral que aprendeu com o Direito, e não o contrário.

E aí? O que acharam dessa discussão toda? Mais contribuições?

Comentários

Fernanda disse…
Ótimas perguntas (e respostas rs)! Tornou-se uma postagem muito interessante enriquecendo a discussão da primeira. Parabénsa os três! =)
Diego disse…
Olá professor André.

Fui seu aluno de HDPJ no Cesupa e participei do GET do Habermas. Tenho acompanhado seu blog já há algum tempo. Ainda não li essa postagem em particular, mas faço este comentário para lhe pedir auxílio em um aspecto no qual venho tendo dificuldades na área acadêmica - e acho que sua ajuda seria das mais importantes.

Mas acho que o espaço daqui destes comentários não é suficiente nem apropriado para essas dúvidas... Você não teria um endereço de email para o qual eu poderia enviar minhas perguntas?

Aguardo por uma resposta e espero que eu não tenha incomodado.

Abraços.
Anônimo disse…
Fernanda, obrigado, que bom que gostou.

Diego, escreva para mim: andrescoelho@uol.com.br.
Anônimo disse…
Prezado André,

Não sei se é possível afirmar isso, mas a sensação que tive é que você afirma que haveria espaço na teoria positivista de Kelsen e Hart àquilo que os pós-positivistas chamam de "princípios" (sobretudo como Dwokin os concebe). Quer dizer, princípios como liberdade, dignidade e direitos humanos não estariam explicitamente rejeitados e seriam implicitamente admitidos nas teorias positivistas.

Mas mesmo sob a perspectiva de um observador privilegiado, que mitiga o que eles explicitamente afirmaram, para deduzir o que eles queriam ter afirmado, há mostras em Hart de que mesmo princípios de moralidade pública liberal não poderiam ser reconhecidos ou aplicados como sendo direito.

E eu quero com isso me reportar ao caso dos "denunciantes invejosos" ou "informantes ressentidos" (grudge informers).

Não que a maior parte dos argumentos que pediam a condenação desses informantes ressentidos se fundasse em princípios de uma moralidade pública liberal, mas os argumentos com que Hart afasta todos eles, exclue mesmo princípios morais fundados no uso prático/público da razão. Para alguém que lhe dissesse: "Há o direito de se punir, retrospectivamente, pessoas que praticaram uma imoralidade deliberada", me parece que ele teria respondido, sob a mais benevolente hermenêutica, "Mas as regras de reconhecimento ainda não estavam postas àquela época...".
Caro Professor André Coelho,

Parabéns pelas postagens! Adorei a clareza e a riqueza dos textos.
Estou passando bons momentos aqui lendo o blog do senhor e do Professor Sandro Alex!

Bem, professor André, acompanhando as duas postagens, tive algumas dúvidas em relação ao que o senhor chamou de "moralidade privada conservadora" e "moralidade pública liberal". Gostaria que o senhor esclarecesse melhor estes pontos, é um tema novo pra mim.

Mas, antes, queria fazer algumas observações:

1. Na Jurisdição Constitucional (1928), Kelsen defendia a tese de que as constituições possuem conteúdo moral, já que, representam a moralidade da sua nação (por meio do Poder Constituinte).
Assim, Kelsen até mesmo considerava a presença de princípios constitucionais, mas desde que positivados, ressalvando apenas alguns problemas que poderiam ocorrer com os princípios de termos vagos no momento do controle de constitucionalidade. Pois, para Kelsen, o juiz constitucional, ao verificar a compatibilidade de uma Lei com o “principio da justiça”, por exemplo, poderia extrapolar seu papel jurídico-político no contexto do principio da separação dos poderes, uma vez que, o juiz estaria na função legislativa negativa ao criar direito novo, pois “preencheria” a vagueza do termo “justiça” com a sua própria concepção sobre “justiça”, o que seria “perigoso” em termos de política jurídica, apesar de inevitável do ponto de vista juscientífico.

2.Por esse motivo, professor, na Jurisdição Constitucional, Kelsen defendia um procedimento de controle de constitucionalidade, que seria a melhor maneira, ou, pelo menos do ponto de vista da Ciencia do Direito, a única e inevitável na defesa da “moral” (que ele chama de preceitos fundamentais) presente na Constituição em um determinado país que, caso fosse um Estado democrático, teria preceitos fundamentais fundados na tolerância e convivência com as minorias.

Assim, Kelsen vai além, basta lembrar do seu debate com Carl Schmitt.

Porque Carl Schmitt, de tendências totalitárias, com doutrina fundada no liberalismo do “pouvoir neutre” (poder neutro), defendia um controle de constitucionalidade realizado pelo Fuhrer, pois seria, para Schmitt, o legítimo representante do povo na proteção da Constituição.

Kelsen, ao contrário, defendia, que o controle de constitucionalidade deveria ser realizado por uma Corte constitucional, fundada em um procedimento com contraditório e ampla defesa, e que, conforme o caso concreto (isto está em seu livro!) poderia defender as minorias neste país de constituição democrática!
Pois, haja vista a pluralidade de “moralidades” dentro de uma sociedade, pela visão da Ciência do Direito, de base relativista quanto à “Moral”, a Corte constitucional seria o melhor caminho na defesa de uma Constituição de um Estado democrático, já que, traria as “moralidades” presentes na sociedade para o contraditório do processo judicial!

Então, lembrando destes temas, onde há dois lados, um, representado pelo liberalismo clássico do “poder neutro” de Constant, no qual Schmitt se alinhava, defendendo um controle constitucional feito pelo feito Fuhrer (pois seria este o legítimo defensor da “Moral” de seus súditos/cidadãos), e de outro lado o liberalismo democrático defendido por Kelsen, em que defendia o controle de constitucionalidade feito por um Tribunal Constitucional, deixo aqui o questionamento ao senhor, professor André:
Não seria Kelsen um defensor de uma moralidade mais próxima da “moralidade pública liberal” do pós-II Guerra, quando defendia, ainda em 1928, um procedimento judicial na defesa das minorias de um Estado democrático que, para o Mestre de Viena, deve estar fundado nos princípios da tolerância e igualdade, conforme ele expressamente afirma na sua Jurisdição Constitucional?

Sendo assim, de outra banda, não seria o liberalismo clássico de Carl Schmitt, fundado na doutrina do “poivoir neutre” de Constant, mais próximo do que o senhor explicou sobre moralidade privada conservadora?

Ou em nada está relacionado estas duas concepções de moral, de um lado, o liberalismo de Schmitt, e de outro, o liberalismo de Kelsen, na qual ele mesmo faz questão de diferenciar na sua Jurisdição Constitucional?

Espero respostas!
Grande abraço, professor!
Ricardo Evandro Martins.

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