Positivismo Jurídico e Crise, ou Porque a Chamada Crise do Positivismo é Resultado da sua Vitória, e não do seu Fracasso
Nessa postagem vou defender que a chamada "crise do positivismo jurídico" é equivocadamente avaliada como demonstração de sua derrota, pois é, na verdade, resultante de seu triunfo. Para isso, vou primeiro caracterizar o "positivismo jurídico" em função da tese da separação entre direito e moral e a "crise do positivismo jurídico" como a percepção, comum às teorias mais contemporâneas do direito, da inevitabilidade do uso de conceitos e juízos morais na interpretação e aplicação do direito positivo (1); em seguida, vou argumentar que a "moral" que o positivismo rejeitava e a "moral" que as teorias atuais consideram imprescindível não são, de modo algum, a mesma moral, sendo a primeira uma "moralidade privada conservadora" e a última, uma "moralidade pública liberal" (2); depois, vou argumentar que a principal fonte de fomento da transição da "moralidade privada conservadora" para a "moralidade pública liberal" foi a experiência de convivência pluralista num Estado democrático de Direito, coisa que só foi possível devido à tese positivista da separação entre direito e moral (3); por fim, concluirei que aquilo que as teorias atuais chamam de "crise do positivismo jurídico" é mais bem avaliada como um efeito colateral de seu triunfo: Na medida em que o positivismo, com base na tese da separação entre direito e moral, educou a velha "moralidade privada conservadora" e a fez assumir a forma da nova "moralidade pública liberal", a tese da separação entre direito e moral não foi refutada, e sim reformulada a partir da moralidade interna ao próprio Estado democrático de direito (4).
(1) Nessa postagem, uso o termo "positivismo jurídico" num sentido muito restrito, que contempla apenas um dos aspectos do fenômeno mais global merecedor desse nome, a saber, apenas o aspecto da defesa da chamada tese da separação entre direito e moral. Segundo essa tese, o direito é um conjunto de normas cuja validade independe de seu valor moral e cuja interpretação e aplicação prescindem de conceitos e juízos morais. No sentido inverso, a chamada "crise do positivismo jurídico", alardeada pela maioria das teorias contemporâneas do direito, também é considerada aqui num sentido respectivamente restrito, isto é, apenas no sentido do colapso da tese da separação entre direito e moral, a partir da percepção de que, na era dos direitos humanos e do neoconstitucionalismo, a interpretação e aplicação do direito requerem inevitavelmente o recurso a conceitos e juízos morais, sem os quais as ideias e princípios que norteiam o Estado democrático de direito não têm como ser adequadamente contemplados. Portanto, é apenas no âmbito da relação entre direito e moral que os termos "positivismo jurídico" e "crise do positivismo jurídico" estarão sendo usados nessa postagem, sem prejuízo da crítica, absolutamente pertinente, de que ambos os fenômenos são mais amplos que esse único aspecto.
(2) Ao falar da proposição e do colapso da tese da separação entre direito e moral pode-se ter a falsa impressão de que aquilo que se chamava "moral" em teorias como as de Kelsen e Hart e aquilo que se chama "moral" em teorias como as de Dworkin e Alexy são a mesma coisa. Isso é um erro. Aquilo a que Kelsen e Hart se referiam era a um conjunto de valores mais ou menos tradicionais, conservadores e irracionais, que eram herança da moralidade burguesa dos séculos anteriores e que incluiam juízos tais como a condenação do sexo antes do casamento, a prevenção contra relações inter-raciais, a afirmação da supremacia masculina e a responsabilização dos pobres por sua própria miséria. Chamarei essa "moral" de "moralidade privada conservadora", pois é "privada" tanto no sentido de que provém das relações privadas como no sentido de que não pode ser compartilhada por todos numa sociedade pluralista, e é "conservadora" na medida em que supõe que a religião, a natureza, a tradição ou o preconceito são fontes válidas de extração de juízos morais. Levando em conta esse sentido de "moral", Kelsen e Hart afirmam que existem na mesma sociedade moralidades concorrentes e que nenhuma delas pode reclamar primazia porque nenhuma delas é passível de nenhum tipo de fundamentação ou demonstração racionais. Já autores contemporâneos como Dworkin e Alexy, quando se referem à "moral", estão geralmente falando do que chamo de "moralidade pública liberal", isto é, aquela moralidade que começa a se insinuar no Pós-Guerra e que se afirma no final dos anos 70, baseada na convivência entre os diferentes, com amplo reconhecimento de direitos iguais de liberdade para os indivíduos e suas respectivas formas de vida e com severa exigência de que o Estado, em vez de tornar os preconceitos de um grupo seu referencial de legislação e de política, se ocupe exatamente de garantir o devido espaço igual de liberdade para os diversos indivíduos e grupos. É uma moralidade "pública" tanto no sentido de que provém da lógica das relações no espaço público como no sentido de que é compartilhável por todos numa sociedade pluralista, e é "liberal" no sentido de que se baseia no pressuposto da necessidade de convivência pacífica e consensual entre indivíduos diferentes. Essa moralidade pública liberal tem íntima relação com instituições jurídicas como os direitos humanos e o Estado democrático de direito.
(3) Essa íntima relação entre a moralidade pública liberal e as instituições jurídicas não é meramente casual. O progressivo abandono (que ainda não se completou, aliás) da velha moralidade privada conservadora em nome da nova moralidade pública liberal é um processo que só se deu por causa da convivência dos indivíduos sob a égide dos direitos humanos e do Estado democrático de direito. Direitos como liberdade de imprensa e de opinião, como liberdade sexual, como reconhecimento das desigualdades e respeito pelas diferenças só se afirmaram contra a moralidade privada conservadora que os havia silenciado historicamente na medida em que os indivíduos e grupos que os reivindicavam podiam dizer aos seus críticos conservadores: "Isso pode ofendê-lo, você pode não gostar, mas é a lei, e você vai ter que aceitar e cumprir". O que está implícito nisso é que os indivíduos e grupos que puderam se afirmar contra a moralidade privada conservadora o fizeram amparados pelo direito e - mais importante - numa distinção forte e firme entre direito e moral. Sem a tese da separação entre direito e moral, cerne do positivismo jurídico tal como o estamos tratando aqui, nenhuma das grandes conquistas de direitos contra os valores e preconceitos da moralidade privada conservadora teria sido possível, de modo que, sem o positivismo jurídico, a moralidade pública liberal jamais teria se desenvolvido e alcançado o grau de acordo com que hoje ela conta. De certa forma, o positivismo jurídico pode não ter sido o único fator, mas foi um fator decisivo para a afirmação dessa nova moralidade, inspirada na forma e no conteúdo do Direito liberal moderno.
(4) Sendo assim, foi porque o positivismo jurídico foi largamente considerado correto que ele se tornou, com o passar do tempo, equivocado: noutras palavras, foi porque se adotou a tese da separação entre direito e moral que foi possível superar (repito, não totalmente) a moralidade privada conservadora e se desenvolver a moralidade pública liberal, essa que, tendo resultado da assimilação na cultura moral cotidiana dos direitos humanos e do Estado democrático de direito, agora se reconhece como imprescindível para a interpretação e aplicação do direito. O direito moderno, tendo se separado da moral tradicional e tendo criado sua própria moralidade, agora se reconhece dependente desta moralidade que ele mesmo ajudou a criar. A tese da separação entre direito e moral triunfou numa medida tal que criou as condições que obrigam à sua própria superação. É assim que, considerada desse ponto de vista, a "crise do positivismo jurídico" não é sinal de seu fracasso, mas sim de sua vitória, isto é, do esgotamento de suas energias intelectuais diante do novo cenário social que ele mesmo criou.
(1) Nessa postagem, uso o termo "positivismo jurídico" num sentido muito restrito, que contempla apenas um dos aspectos do fenômeno mais global merecedor desse nome, a saber, apenas o aspecto da defesa da chamada tese da separação entre direito e moral. Segundo essa tese, o direito é um conjunto de normas cuja validade independe de seu valor moral e cuja interpretação e aplicação prescindem de conceitos e juízos morais. No sentido inverso, a chamada "crise do positivismo jurídico", alardeada pela maioria das teorias contemporâneas do direito, também é considerada aqui num sentido respectivamente restrito, isto é, apenas no sentido do colapso da tese da separação entre direito e moral, a partir da percepção de que, na era dos direitos humanos e do neoconstitucionalismo, a interpretação e aplicação do direito requerem inevitavelmente o recurso a conceitos e juízos morais, sem os quais as ideias e princípios que norteiam o Estado democrático de direito não têm como ser adequadamente contemplados. Portanto, é apenas no âmbito da relação entre direito e moral que os termos "positivismo jurídico" e "crise do positivismo jurídico" estarão sendo usados nessa postagem, sem prejuízo da crítica, absolutamente pertinente, de que ambos os fenômenos são mais amplos que esse único aspecto.
(2) Ao falar da proposição e do colapso da tese da separação entre direito e moral pode-se ter a falsa impressão de que aquilo que se chamava "moral" em teorias como as de Kelsen e Hart e aquilo que se chama "moral" em teorias como as de Dworkin e Alexy são a mesma coisa. Isso é um erro. Aquilo a que Kelsen e Hart se referiam era a um conjunto de valores mais ou menos tradicionais, conservadores e irracionais, que eram herança da moralidade burguesa dos séculos anteriores e que incluiam juízos tais como a condenação do sexo antes do casamento, a prevenção contra relações inter-raciais, a afirmação da supremacia masculina e a responsabilização dos pobres por sua própria miséria. Chamarei essa "moral" de "moralidade privada conservadora", pois é "privada" tanto no sentido de que provém das relações privadas como no sentido de que não pode ser compartilhada por todos numa sociedade pluralista, e é "conservadora" na medida em que supõe que a religião, a natureza, a tradição ou o preconceito são fontes válidas de extração de juízos morais. Levando em conta esse sentido de "moral", Kelsen e Hart afirmam que existem na mesma sociedade moralidades concorrentes e que nenhuma delas pode reclamar primazia porque nenhuma delas é passível de nenhum tipo de fundamentação ou demonstração racionais. Já autores contemporâneos como Dworkin e Alexy, quando se referem à "moral", estão geralmente falando do que chamo de "moralidade pública liberal", isto é, aquela moralidade que começa a se insinuar no Pós-Guerra e que se afirma no final dos anos 70, baseada na convivência entre os diferentes, com amplo reconhecimento de direitos iguais de liberdade para os indivíduos e suas respectivas formas de vida e com severa exigência de que o Estado, em vez de tornar os preconceitos de um grupo seu referencial de legislação e de política, se ocupe exatamente de garantir o devido espaço igual de liberdade para os diversos indivíduos e grupos. É uma moralidade "pública" tanto no sentido de que provém da lógica das relações no espaço público como no sentido de que é compartilhável por todos numa sociedade pluralista, e é "liberal" no sentido de que se baseia no pressuposto da necessidade de convivência pacífica e consensual entre indivíduos diferentes. Essa moralidade pública liberal tem íntima relação com instituições jurídicas como os direitos humanos e o Estado democrático de direito.
(3) Essa íntima relação entre a moralidade pública liberal e as instituições jurídicas não é meramente casual. O progressivo abandono (que ainda não se completou, aliás) da velha moralidade privada conservadora em nome da nova moralidade pública liberal é um processo que só se deu por causa da convivência dos indivíduos sob a égide dos direitos humanos e do Estado democrático de direito. Direitos como liberdade de imprensa e de opinião, como liberdade sexual, como reconhecimento das desigualdades e respeito pelas diferenças só se afirmaram contra a moralidade privada conservadora que os havia silenciado historicamente na medida em que os indivíduos e grupos que os reivindicavam podiam dizer aos seus críticos conservadores: "Isso pode ofendê-lo, você pode não gostar, mas é a lei, e você vai ter que aceitar e cumprir". O que está implícito nisso é que os indivíduos e grupos que puderam se afirmar contra a moralidade privada conservadora o fizeram amparados pelo direito e - mais importante - numa distinção forte e firme entre direito e moral. Sem a tese da separação entre direito e moral, cerne do positivismo jurídico tal como o estamos tratando aqui, nenhuma das grandes conquistas de direitos contra os valores e preconceitos da moralidade privada conservadora teria sido possível, de modo que, sem o positivismo jurídico, a moralidade pública liberal jamais teria se desenvolvido e alcançado o grau de acordo com que hoje ela conta. De certa forma, o positivismo jurídico pode não ter sido o único fator, mas foi um fator decisivo para a afirmação dessa nova moralidade, inspirada na forma e no conteúdo do Direito liberal moderno.
(4) Sendo assim, foi porque o positivismo jurídico foi largamente considerado correto que ele se tornou, com o passar do tempo, equivocado: noutras palavras, foi porque se adotou a tese da separação entre direito e moral que foi possível superar (repito, não totalmente) a moralidade privada conservadora e se desenvolver a moralidade pública liberal, essa que, tendo resultado da assimilação na cultura moral cotidiana dos direitos humanos e do Estado democrático de direito, agora se reconhece como imprescindível para a interpretação e aplicação do direito. O direito moderno, tendo se separado da moral tradicional e tendo criado sua própria moralidade, agora se reconhece dependente desta moralidade que ele mesmo ajudou a criar. A tese da separação entre direito e moral triunfou numa medida tal que criou as condições que obrigam à sua própria superação. É assim que, considerada desse ponto de vista, a "crise do positivismo jurídico" não é sinal de seu fracasso, mas sim de sua vitória, isto é, do esgotamento de suas energias intelectuais diante do novo cenário social que ele mesmo criou.
Comentários
Postagem maravilhosa e instigante. Concordo plenamente com vc, mas gostaria de ler se vc acha que esse processo aconteceu da mesma forma nos países periféricos como o Brasil, no que toca à recepção do positivismo da maneira como o definiste. Isso porque tal recepção foi tardia e tenho dúvidas se a ordem de influências que definiste (positivismo e moralidade liberal pública)se deu de igual forma.
Te aguardo.
Gostei muito do que escreveu, tenho a impressão de já ter te ouvido algumas vezes neste aspecto, mas acho que é a primeira vez que está tão organizadinho.
Também me parece ser algo relacionável com o tema do seu artigo para a Anpof (como um tipo de prólogo)! =)
Beijos
sabe que me senti em casa com o assunto neh...
nao tinha pensado exatamente sobre essa perspectiva ainda, que a crise seria o triunfo do positivismo juridico, que chamo de "positivismo inclusivo"... é claro tenho muito ainda o que pensar sobre isso, sou marinheira de primeira viajem nesse assunto... heheh
mas ja na minha primeira pesquisa sobre o debate do hart e o dworkin percebi que falavam de coisas diferentes, realmente nao é a mesma moral e praticamente todos os pressupostos filosóficos deles sao distintos, mas o debate foi quente e gerou a evoluçao das teorias, tanto de um quanto do outro...
parabens pelo texto, e obrigada, pois adorei ler e pensei varias coisas depois da leitura :)
beijos querido...
:)
maria alice
Maria Alice, que bom receber essa visita, ainda mais acompanhada de um comentário tão simpático! Como você deve ter visto, no texto evitei a distinção inclusivo/exclusivo porque, a meu ver, já se trata de duas reações distintas do positivismo ao diagnóstico de sua suposta crise. Venha sempre visitar o blog, hein! Beijos!
adoreeeeeeeei visitar seu blog, pode deixar que estarei sempre aqui.. hehe
beijooos
Ótima postagem!
Fiquei feliz de encontrar uma postagem que enfim colocasse por escrito estas idéias. Vou esperar pelas outras que ainda estão escondidinhas rsrs.
E, bem, se podemos hoje discutir a (in)adequação dos discursos religiosos (morais,portanto) no debate político-jurídico sem adentrar no antigo problema do jusnaturalismo, isso se deve ao sucesso e 'crise' do positivismo jurídico, ou melhor, deve-se ao seu esgotamento. Seria uma parte do argumento da diferença entre o que se fez no jusnaturalismo já superado e o que se propõe agora, com o uso dos argumentos religiosos (independente de o uso ser adequado ou não, seria possível discutir a questão sem se misturar com a 'moral' que sucumbiu pelo positivismo).
Sei que a proposta do seu trabalho não era exatamente esta (e sim a aplicação dos parâmetros da discussão política, também na discussão jurídica), mas achei uma certa relação. Ou então eu não entendi seu artigo XDD
Beijos!
Leandro, cara, eu diria que o que aconteceu foi que a moral teve que se reinventar à luz dos impedimentos, postos pelo direito, à sua expressão no espaço público. A nova moralidade pública liberal é a moral burguesa reinventada.
Fernanda, você não gostaria de escrever um texto, pode ser curto, sobre essa conexão que você fez agora e me mandar? Eu publico no blog como postagem sua. Que tal?
Não poderia deixar de realçar a clareza da tua exposição e a criatividade do teu argumento. Poucos - e estás entre eles - conseguem aprofundar um problema filosófico sem que se escondam atrás de proposições obscuras e rodeios que impedem a um leitor a compreensão da ideia pensada.
Sobre o teu argumento e as partes que o compõem, permito-me algumas colocações:
a) sobre o ponto (1), tenho dúvidas se a tese positivista da separação estende-se à interpretação e à aplicação do direito. A cisão nos positivistas jurídicos entre teoria do direito e teoria da adjudicação me faz pensar que a tese da separação restringe-se às questões da validade e da identificação do direito. Talvez por isso o positivismo jurídico diga pouco sobre a prática judicial e seja incapaz de oferecer um modelo de atuação para os juízes;
b) sobre neoconstitucionalismo e assuntos afins, receio que as teorias do direito forjadas nessa "onda" intelectual podem ensejar novas modalidades jurídicas privadas; não mais as visões conservadoras, mas as perspectivas práticas pessoais, subjetivas dos juízes e dos juristas;
c) em que medida se pode afirmar o êxito cultural do positivismo jurídico enquanto teoria moral e política, em termos que contradiriam bastante as pretensões teóricas explícitas dos autores dessa linhagem?;
d) é possível falar que o positivismo jurídico estimula a moralidade pública liberal em face da descrença positivista na possibilidade da razão prática e da pretensão de oferecer uma teoria capaz de explicar as características fundamentais de todo e qualquer direito?
Perdoe pela desorganização das ideias e a superposição das questões.
Prazer imenso em voltar por aqui.