Resenha de "Moral Responsability", Cap. 6 (p. 99-122) de Justice for Hedgehogs, de Ronald Dworkin

O capítulo se chama "Moral Responsability" e nele Dworkin introduz a noção de responsabilidade como distinta da correção (accuracy) de um raciocínio moral. Ex. Se tenho que decidir sobre se acho as ações afirmativas justas ou injustas, posso decidir no cara-e-coroa ou posso raciocinar cuidadosamente a respeito. É sempre possível que, decidindo no cara-e-coroa, eu consiga, por feliz coincidência, encontrar a resposta certa, assim como é sempre possível também que, refletindo cuidadosamente a respeito, eu ainda assim chegue à resposta errada. Contudo, a resposta obtida por cara-e-coroa, mesmo que correta, teria sido irresponsável (porque baseada num esquema arbitrário de decisão), enquanto a resposta por cuidadosa reflexão, mesmo que incorreta, teria sido responsável (porque baseada numa forma razoável de busca da resposta correta). Assim, é possível que, para perguntas morais, existam respostas corretas e incorretas (quanto ao acerto ou erro de seu conteúdo) e respostas responsáveis e irresponsáveis (quanto ao modo como foram alcançadas).

Dworkin diz que essa distinção entre responsável e correto fica bem evidente quando se trata da resposta dada por outra pessoa: eu posso reconhecer que a resposta que ela deu foi responsável mesmo que acredite que ela esteja, no fim das contas, errada. Mas se torna mais difícil quanto às nossas próprias respostas: eu só considerarei que minha resposta foi realmente responsável se acreditar que ela também está correta (afinal, se acreditasse que ela é incorreta, não seria responsável ter me contentado com ela em vez de seguir adiante com o raciocínio a respeito da questão). Mas, segundo Dworkin, mesmo assim, ainda é possível fazer a seguinte distinção: eu posso acreditar que a resposta X é a resposta correta e que cheguei a X por uma forma responsável, mas estar, por exemplo, mais convicto de que a forma pela qual cheguei a X foi indubitavelmente responsável do que de que X seja indubitavelmente correta.

Em seguida Dworkin afirma que vai abordar a questão da responsabilidade a partir do sentido com que lidamos com esse termo em nossas práticas cotidianas. Dworkin distingue nessas práticas entre dois sentidos de responsabilidade: um que ele chama de responsabilidade como virtude (ser uma pessoa responsável, fazer algo de modo responsável) e responsabilidade relacional (ser responsável por certo ato, ser o responsável por certa tarefa), para cada um dos quais ele levantará quatro tipos distintos.

Os quatro tipos de responsabilidade como virtude são:

- Responsabilidade intelectual: o cientista que não faz a checagem de seus cálculos falha com esta.

- Responsabilidade prática: o escritor que não faz back-ups dos seus arquivos falha com esta.

- Responsabilidade ética: a pessoa que vive sem objetivos e não é fiel seus valores falha com esta.

- Responsabilidade moral: o eleitor que vota numa candidata a vice-presidente porque a acha sexy falha com esta.

Já para a responsabilidade relacional, também haveria quatro tipos:

- Responsabilidade causal: uma pessoa é causalmente responsável por um evento se alguma de suas ações figura como a melhor explicação causal daquele evento. Assim, alguém cujo corpo foi arremessado por uma segunda pessoa e, na queda, atingiu uma terceira, que sofreu danos com isso, é causalmente responsável por esses danos.

- Responsabilidade por atribuição (assignment responsability): uma pessoa é responsável por atribuição por alguma coisa se ela tem o dever de cuidar dela ou de providenciá-la. É o sentido em que se diz que o revisor é responsável pela correção gramatical do texto.

- Responsabilidade indenizatória (liability responsability): uma pessoa é responsável em sentido indenizatório se é ela que responderá ou pagará pelos erros ou danos produzidos por outras pessoas que ela dirige ou que ela deveria fiscalizar. É o sentido em que se diz que o empregador é responsável pelos danos causados por seus empregados aos clientes.

- Responsabilidade por julgamento (judgmental responsability): uma pessoa tem responsabilidade por julgamento se é apropriado classificar (to rank) sua ação em alguma escala de aprovação ou crítica. Toda vez que alguém faz ou diz alguma coisa que é passível de ser considerada mais ou menos correta, ela tem esse tipo de responsabilidade.

Em seguida, Dworkin se dedica a mostrar cinco diferentes maneiras como um sujeito pode não ser responsável na tentativa de agir segundo suas convicções. São elas:

a) Crua insinceridade: quando o agente diz agir com base em certas convicções, mas não acredita nelas, elas não têm nenhuma força sobre ele e ele estaria disposto a abrir mão delas na primeira oportunidade em que elas contrariassem seus verdadeiros interesses.

Ex. O líder que envia seu povo à guerra contra outro país sob a justificativa de libertar o outro povo da opressão, mas estando na verdade interessado pelo domínio das reservas de petróleo desse outro povo, a ponto de que, se não houvesse opressão alguma, inventar alguma outra justificativa para fazer a mesma coisa.

b) Racionalização (em sentido psicanalítico): quando o agente de fato acredita estar agindo a partir de convicções morais genuínas, mas estas são apenas falsas justificativas criadas por sua razão para sustentar condutas escoradas noutros motivos não morais, o que vem à tona quando, mudadas as circunstâncias, o agente age de modo que denuncia seus verdadeiros motivos.

Ex. O fazendeiro ou industrial que é contra a cobrança de impostos para sustentar projetos sociais porque, segundo alega, acredita que cada um tem que providenciar, sem ajuda alheia, as condições de seu próprio êxito ou fracasso, mas que, numa situação de crise, quando sua fazendo ou indústria está sendo levada à falência, é o primeiro a invocar o dever de ajuda e financiamento extra do Estado. Nesse caso, sua concepção de que cada um deve prover para si mesmo era apenas uma racionalização por trás da qual se escondia seu verdadeiro motivo, que era o auto interesse de não pagar altos impostos.

c) Concepções abstratas ou "porosas": quando o agente sustenta de boa fé certas concepções morais, mas estas são tão abstratas e amplas que se mantêm num nível convenientemente aberto para ora serem ora não serem aplicadas aos casos pertinentes, variando apenas as razões alegadas a cada vez, de modo que, por meio de supostas convicções morais, agem na verdade outros motivos não morais.

Ex. A pessoa que acredita que a guerra preventiva é errada a não ser que seja absolutamente necessária, mas não tem critérios específicos que definam em que casos ela é "necessária", podendo, então, esse caso variar desde a necessidade para autopreservação até a necessidade para eliminar um possível competidor econômico. Nesse caso, ficando a concepção muito abstrata e aberta, ela se expõe a ser usada ora para apoiar ora para condenar a guerra preventiva, não por nenhum motivo baseado em princípios, mas sim por motivos não morais, como o auto interesse ou a simpatia e filiação partidária.

d) Esquizofrenia moral: quando o agente sustenta ao mesmo tempo dois princípios que são francamente contraditórios, podendo, com base neles, apoiar ou condenar uma mesma coisa, a depender de em qual deles ponha mais ênfase a cada vez.

Ex. A pessoa que acredita ao mesmo tempo que é justo que as pessoas ricas não sejam privadas daquilo que ganharam e que é justo que a sociedade faça alguma coisa para ajudar os mais necessitados. Nesse caso, ela pode aprovar ou rejeitar uma redução de impostos, a depender de se pensa no primeiro princípio ou no segundo.

e) Compartimentalização moral: quando o agente compartimentaliza áreas de sua vida moral, sustentando em cada uma princípios que não são compatíveis com os que sustenta na outra. Para se tratar verdadeiramente de uma irresponsabilidade moral, é preciso que essa distinção entre princípios aplicáveis a diferentes áreas da vida moral não possa ser ela mesma defendida com base em princípios, caso em que seria, então, uma distinção justificada e responsável.

Ex. A pessoa que considera que os estrangeiros presos em Guantánamo não têm direito a serem tratados com o mesmo respeito e consideração que teriam os cidadãos norte-americanos; a pessoa que considera certo, no nível público, que se renuncie a parcelas de certos direitos e liberdades em vista da contenção do risco de uma ameaça terrorista, mas também considera certo, agora no nível privado, que o indivíduo, para ter a virtude da coragem, enfrente riscos em nome da realização e proteção de certos princípios.

Especialmente sobre o caso da compartimentalização, Dworkin diz que é possível, claro, que uma reflexão posterior revele que existe algum bom motivo moral, fundado em algum princípio, para que se faça distinção entre princípios aplicáveis a uma área e a outra da vida moral; mas é também sempre possível que essa reflexão posterior revele que não se é capaz de sustentar tal distinção em nenhum princípio relevante e que, portanto, ao compartimentalizar a moral daquela maneira, estivéssemos negando a certos indivíduos o respeito e a consideração que mereciam e não estivéssemos, portanto, agindo com base em convicções morais, e sim em algum outros motivo não confesso.

Para explicar melhor o papel que as convicções desempenham na conduta de um agente responsável, Dworkin propõe a seguinte metáfora: imaginar a vontade (que toma decisões) como estando envolvida por um denso filtro, que seleciona e formata tudo que passa por ele. Esse filtro é uma malha de convicções morais efetivas, isto é, daquelas convicções que têm um impacto real sobre a conduta do agente (o que exclui as convicções insinceras e racionalizadas, tipos 1 e 2 da enumeração acima). O que esse filtro seleciona e formata é uma grande variedade de outras inclinações e atitudes que fluem da história pessoal do agente e que podem ou não ser compatíveis com suas convicções morais efetivas. Se esse filtro é formado de convicções porosas, contraditórias ou compartimentalizadas, então ele não desempenhará bem o papel de selecionar e formatar nossas inclinações e atitudes não morais a fim de evitar que nossa conduta não espelhe nossas verdadeiras convicções. Para que um agente seja responsável ele precisa ter convicções autênticas e íntegras, capaz de tornar mais abrangente e espesso o filtro moral pelo qual passam os outros impulsos e motivos que podem influenciar a conduta. Dworkin reconhece que o ideal de um agente plenamente responsável não é realizável para nenhum ser humano, mas considera que esse ideal deve ser sempre considerado como um trabalho em realização, um fim para o qual sempre se tende sem jamais alcançá-lo inteiramente.

Embora Dworkin suponha que a tarefa de promover a responsabilidade quanto às convicções morais cabe primariamente ao esforço do indivíduo, ele admite ao mesmo tempo a possibilidade de alguma divisão social deste trabalho, de modo que a tarefa de promover a integridade entre as várias convicções morais compartilhadas mas dispersas pode ser atribuída de modo especial ao filósofo moral e político. Aliás, Dworkin considera que os esforços dos filósofos morais podem ser mais bem interpretados como esforços em direção à responsabilidade do que em direção à verdade, citando Kant e suas formulações do imperativo categórico como sinais de preocupação com a integridade (por causa do teste da contradição em concepção) e com a autenticidade (por causa do teste da contradição da vontade). Certamente, Dworkin se vê na posição do filósofo que tentará fornecer um modelo do que a responsabilidade liberal requer das pessoas.

Na parte dedicada ao valor da responsabilidade, Dworkin em primeiro lugar formula a pergunta: Por que é tão importante que os agentes sejam responsáveis?, e depois descarta duas respostas para essa pergunta: descarta que possa ser porque assim é mais provável que encontrem a resposta verdadeira e descarta que possa ser porque assim o compromisso do agente com a verdade não seja casual, mas, ao contrário, causal. Promete que noutros capítulos vai mostrar que quem mais se beneficia de práticas morais dotadas de integridade são os membros de certos grupos vulneráveis, mas que também quem não pertence a esses grupos tem boas razões para preferir a integridade a qualquer outra coisa que fosse proposta em seu lugar.

Dworkin, então, enfrenta a objeção de que pode ser que a responsabilidade não leve à verdade, mas, ao contrário, a impeça de ser alcançada. Isso seria assim se nossos valores fossem na verdade contraditórios entre si, havendo entre eles um tipo de conflito tão genuíno e radical que não pudesse ser solucionado. Dworkin enfrenta essa objeção num argumento que tem as seguintes etapas:

- Fatos podem ser simplesmente (barely) verdadeiros ou falsos, no sentido de que, para cada mundo em que X é verdadeiro, seria possível conceber outro mundo, em tudo igual ao primeiro, exceto que neste último X é falso. É possível que a verdade ou falsidade de X não afete mais nenhuma outra coisa no mundo. Nesse caso, a única coisa que podemos alegar em favor de um fato é algum tipo de prova (evidence) de que ele é verdadeiro. Já um juízo de valor não pode ser simplesmente (barely) verdadeiro ou falso, pois a verdade ou falsidade de um juízo de valor afeta inevitavelmente vários outros juízos de valor que estão conectados com ele. Por isso, não se pode fornecer prova (evidence) de um juízo de valor, mas apenas fazer uma defesa dele (to make a case of it). Mas não é possível fazer a defesa de um juízo de valor a não ser com base noutros juízos de valor, os quais também requererão, por sua vez, novos juízos de valor em sua defesa. Mas não se trata de uma cadeia progressiva ou regressiva ao infinito, e sim de uma malha entretecida de convicções que se implicam e se sustentam umas às outras. Nesse caso, a defesa de qualquer juízo de valor sempre requererá o apoio de todos os outros juízos de valor e a responsabilidade assume, então, o primeiro plano de importância em qualquer argumento moral.

‎- Ao examinar a questão sobre se existem ou não conflitos reais entre valores, Dworkin elabora primeiro uma distinção entre valores e desiderata. Valores têm força judicatória: realizá-los está certo, violá-los está errado. Já desiderata são coisas que queremos, mas cuja não realização (ou não realização na medida em que a queríamos) não implica em erro. Desiderata podem e frequentemente estão em conflito entre si e em conflito com valores. Mas Dworkin defende que, dada a unidade do valor que o livro quer demonstrar, não existe nenhum conflito real entre valores. Pode haver, é claro, conflitos aparentes, como no caso, sugerido por Fallon, em que um amigo me entrega um esboço de seu livro e pergunta minha opinião, sendo que eu o achei ruim. Seria desonesto dizer que gostei, mas seria rude dizer que não gostei. Existe, nesse caso, um aparente conflito entre gentileza e honestidade. Mas o conflito não tem por que ser concebido como insuperável. Pode ser perfeitamente que uma interpretação mais acurada do que é e requer a gentileza e do que é e requer a honestidade mostre que na verdade existem boas razões para pensar que ambos convergem para um mesmo curso de ação, em vez de estarem irremediavelmente comprometidos com cursos de ação concorrentes. Isso é assim porque conceitos morais são interpretativos, e não correspondem a fatos no mundo, de modo que uma interpretação desses conceitos que já leve em conta a responsabilidade como um elemento importante pode afastar os conflitos aparentes, fazendo ressaltar a unidade do valor.

- Isso pode criar a tentação de abandonar o conceito de verdade em favor apenas do conceito de responsabilidade, assumindo, então, que a meta da reflexão moral é apenas alcançar as conclusões mais responsáveis possíveis para cada tipo de questão levantado. Dworkin, porém, se mostra receoso quanto a essa sugestão por dois motivos: o primeiro é que, segundo ele, a renúncia à meta da verdade poderia encorajar o ceticismo que ele visou combater na parte 1 do livro; o segundo é que isso poderia obscurecer que a meta de toda reflexão moral é ter êxito em encontrar a resposta correta e que é apenas em função dessa meta que uma checagem cuidadosa da responsabilidade mostra todo o seu valor. Mas Dworkin acredita que essa ainda é uma abordagem apenas preliminar da função da ideia de verdade nos juízos de valor. Uma abordagem mais aprofundada desse papel se dará a partir da noção de verdade na interpretação, que ele explorará a partir do próximo capítulo (capítulo VII) da obra.

Comentários

Obrigado pelos textos sobre o livro. Todos são ótimos.
Apenas queria fazer uma pergunta, sem desejar uma resposta muito detalhada: ele não está querendo sozinho colocar ordem no mundo? Dworkin concebe a ética como papel do homem, democracia como todos objetivarem um interesse comum e mais alguns pontos que me soam simplistas, ignorando a realidade, onde, por exemplo, na democracia busca-se interesses particulares. E partindo de alguns conceitos discutíveis tenta unificar muita coisa e resolver várias questões. Ele não trocou um mero porco-espinho pelo "Sonic" e correu mais do que deveria?
Desculpe-me caso esteja equivocado, apenas me questionava isto enquanto lia.

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo