Norma Jurídica, Motivos e Obediência: Reformulação de uma Célebre Afirmação Kantiana

Nessa postagem proponho reformar a afirmação, frequente na tradição kantiana, de que o Direito é indiferente aos motivos pelos quais os agentes conformam sua conduta às normas jurídicas. Em A fixo os elementos que seriam necessários para falar de obediência a uma norma. Em B relembro a célebre afirmação kantiana que quero contestar e reformular. Em C proponho uma situação hipotética que leva tal afirmação a uma perplexidade. Em D mostro qual seria essa perplexidade. Em E proponho uma versão reformulada da afirmação, que evita a perplexidade. E, por fim, em F respondo a uma possível objeção kantiana à minha crítica e à minha reformulação.

A. Podemos dizer que o sujeito S obedece à norma N se:

(1) A conduta de S está conforme à conduta exigida por N

(2) S sabe da vigência e reconhece a validade de N

(3) A circunstância (2) foi motivo relevante para o fato (1)

A condição (1) é objetiva, a (2) é subjetiva, a (3), causal. Sem a condição (1), S estaria desobedecendo à norma. Sem a condição (2), a condição (1) seria pura coincidência. Sem a condição (3), a relação entre (1) e (2) não seria suficientemente forte para se falar de obediência.

B. Pois bem, a tradição kantiana insiste em que as normas jurídicas, ao contrário das normas morais, "liberam" os motivos da conduta, isto é, exigem apenas que os sujeitos conformem suas condutas às prescrições das normas, sejam quais forem os motivos por que o façam. Assim, enquanto a ação por respeito à norma é componente essencial da ação moral, a norma jurídica é indiferente para com os motivos pelos quais os sujeitos conformam suas condutas à norma, podendo tal motivo não ter nada que ver com o respeito à norma, e sim, por exemplo, com o medo da sanção.

C. Imaginemos, contudo, a situação seguinte. A norma N1 exige que todo carcereiro reporte ao seu superior quando um dos detentos está tentando agredir outro numa cela de prisão. S1 é um carcereiro a quem se aplica N1. S1, no entanto, por algum motivo sequer sabe da existência dessa norma. Ocorre que S1 acha engraçado quando um detento tenta agredir o outro, motivo pelo qual, sempre que vê isso acontecer, reporta ao seu superior, a fim de rirem juntos da situação. Suponhamos que disso resulte que S1 reporta ao seu superior todas as tentativas de agressão de um detento sobre outro.

D. Nessa situação, segundo o que fixamos nas condições (1), (2) e (3) acima, S1 não estaria obedecendo a N1, pois apenas a condição (1) se estaria verificando. Contudo, se a tradição kantiana estiver certa e as normas jurídicas forem mesmo indiferentes pelos motivos da conformação da conduta, então, o fato de verificar-se (1), mesmo na ausência de (2) e (3), seria suficientemente satisfatório para a autoridade que pôs N1. Isso conduziria à estranha conclusão de que a uma conformação puramente casual da conduta à norma já satisfaria os objetivos do Direito. A conclusão se torna ainda mais estranha se dissermos, em vista da ausência de (2) e (3), que o Direito se veria satisfeito mesmo sem que exista, em sentido estrito, algo que se possa chamar de obediência à norma. A norma seria eficaz (no sentido de que as condutas se conformam a ela) sem ser realmente eficaz (no sentido de ter alguma influência causal sobre as condutas).

E. Minha proposta para a solução dessa perplexidade da conformação casual, ou ainda da eficácia ineficaz, é reformular o que a tradição kantiana costumeiramente diz a esse respeito. Em vez de dizer que as normas jurídicas "liberam" os motivos da obediência, no sentido de que são indiferentes a tais motivos, seria mais adequado dizer que elas  visam a uma obediência por motivos jurídicos e liberam o agente de ter outros motivos, não jurídicos, para sua conduta. Isso quer dizer que se espera do carceireiro S1 não apenas que reporte ao seu superior qualquer tentativa de agressão de um detento sobre outro, mas também que o faça por certo motivo, qual seja, por saber da vigência de N1 e reconhecer sua validade. Não é preciso que S1 considere N1 uma boa norma ou considere que agressões entre detentos são situações que realmente requerem atenção especial. Esses seriam os motivos não jurídicos dos quais o agente estaria liberado. Basta que, concordando ou não com N1, S1 saiba de sua vigência e reconheça sua validade, obedecendo-a, isto é, conformando a ela, em vista disso, sua conduta.

F. Mas a isso um kantiano poderia dizer: "Contudo, S1 não será punido se conformar casualmente sua conduta a N1, mas apenas se não conformar sua conduta a ela, o que prova que os motivos da conformação da conduta à norma são de fato indiferentes para o Direito". Essa objeção, contudo, confunde duas coisas distintas: o objetivo de uma norma (que é a conformação causal da conduta) com o critério para aplicação da sanção (que é a desconformidade da conduta). O fato de que, ao conformar sua conduta à norma de modo puramente casual, S1 não será punido indica apenas que ele não se encaixou no critério de aplicação da sanção, mas não implica que, por não ser punido, S1 esteja se comportando do modo que a autoridade que pôs N1 espera que ele se comporte. Tal autoridade não espera de S1 apenas conformação de sua conduta à norma, mas conformação causal, isto é, motivada pela norma, em vez de por qualquer outro fator menos relevante.

Comentários

Ernesto disse…
Prezado André

Muito interessante a tua argumentação. A relação da norma jurídica, da sanção e dos motivos numa perspectiva kantiana. Se me permites gostaria de dividir algumas reflexões que fiz a respeito do teu texto.
Não sei se concordo com tua conclusão, que o Direito exige "os motivos" para o cumprimento de uma norma, ao contrário de um cumprimento "meramente casual”.
Isso por três motivos:
Primeiro que o Direito não se importa ou diferencia as condutas "casualmente conforme" ou "motivadamente conforme". Ele apenas se preocupa se existe a configuração de uma situação o qual pode haver necessidade de o Judiciário se manifestar ou não. Ou seja, uma situação jurídica problematizada num processo o qual pode ou não legitimar uma sanção. Em outras palavras, a meu ver o Direito apenas se preocupa com uma situação que é passível de sanção. Se a pessoa "respeita" a norma por meio meramente casual ou pelos motivos "corretos" isso é indiferente ao Direito.
Segundo, aceita a premissa anterior que o que importa ao Direito é aquilo que é "passível" de sanção, apenas é relevante se perguntar "sobre os motivos" da conduta do agente se ele infringe um dever.
E de forma mais correta, no Direito apenas se pergunta sobre “os motivos do agente” se ele ao infringir um dever, ele infringe não qualquer dever, mas um dever penal (pelo que entendi a exigência de saber motivos da norma é semelhante à exigência da consciência da ilicitude); porque nas demais áreas do Direito, a regra é que a consciência da ilicitude é presumida (art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Ou seja, apenas faz sentido pensar em exigência dos motivos da norma, se ocorrer uma situação passível de sanção ou relevância jurídica. Se o carcereiro respeita a norma de forma meramente casual e alguém problematizasse esta situação no Judiciário ou numa argumentação jurídica de aplicação o pedido da ação seria considerado improcedente por falta de interesse jurídico ou impossibilidade jurídica.
E terceiro, sobre a exigência de saber a vigência da norma ou que a norma é válida ou pelo que entendi o agente deve ter a consciência da licitude de seus atos. Parece que apenas aquele que conhece os motivos de uma norma, somente aquele que sabe que ela é valida pode realizar “uma conduta” ou cumprir uma norma. Ou seja, aquele que cumpre a norma por mera coincidência, na verdade não realiza conduta alguma.
E não acho que isso seja correto. O problema nos remete ao conceito de sujeito de direito. Sujeito de direito consiste num sujeito que é apto para ter direitos ou deveres. É o sujeito que possui personalidade jurídica. Todo aquele que é apto para ter direitos ou deveres é apto para exigir direitos e infringir deveres. E este conceito não se resume apenas aos capazes (aqueles que podem ter consciência de ilicitude). Uma pessoa jurídica, um espólio, um bebê ou um louco podem infringir deveres e são passíveis de execução. E dentre os pressupostos para a infração do dever pelo menos no campo civil e no tributário, não existe a inquirição sobre a consciência da ilicitude ou sobre os motivos pelos quais o agente cumpriu ou não cumpriu a norma. Assim um louco que não sabe sobre os motivos da norma pode infringir um dever e responder com seu patrimônio.
Assim penso que não existe relevância para o Direito o fato de o agente “cumprir a norma” de forma casual ou de forma motivada. Apenas possui relevância (e isso somente em exceções como o Direito Penal) se ele está numa situação problematizada numa argumentação jurídica (processo) passível de receber uma sanção.
Anônimo disse…
Pelo que entendi, você discorda de mim e concorda com Kant por dois motivos: primeiro, porque a obediência da norma por mero acaso ou acidente não enseja a possibilidade de sanção ao agente; segundo, porque a norma se aplica também a agentes que não podem estar conscientes da validade da norma, mas cuja conduta tem que se conformar com ela mesmo assim. Quanto ao primeiro argumento, fiz uma referência a ele no próprio texto, mas acho que ali não deixei bastante clara a minha posição. Permita-me enunciá-la de novo: Perceber o que é importante para o direito e perceber quais situações ensejam a aplicação de uma sanção não é a mesma coisa. Esse preconceito - de que é o holofote da sanção que ilumina o que é relevante para o direito - não passa de um mal-entendido kelseniano. Acredito que, na própria tradição positivista, por exemplo, em Hart, já se tenha deixado claro que normas, por exemplo, de autorização e permissão não contém nada que possa propriamente ser chamado de sanção, embora tais normas componham boa parte do que é importante no Direito Privado e no Direito Processual. Sendo assim, em primeiro lugar, a sanção não seria um indicador confiável do que é importante para o Direito em normas que, claramente, não possuem sanção. Mas também quero mostrar que a sanção não é um indicador confiável do que é importante para o direito mesmo nas normas que possuem, de fato, sanção. Ou, pelo menos, as condições de aplicação da sanção não contribuem para pensar que só o que importa para o Direito é a conformação da conduta, mas não os motivos dessa conformação. Do contrário, noções como a consciência de ilicitude, a responsabilidade, a culpabilidade, a boa fé etc. seriam totalmente irrelevantes, e na verdade elas não são irrelevantes, elas são, ao contrário, centrais na aplicação da sanção. Sendo assim, parece-me que o modo de aplicação da sanção é ainda mais revelador de que para o direito os motivos de fato importam. Mas o meu argumento principal não é nem que há normas que não possuem sanção nem que a aplicação da sanção leva em conta os motivos, mas sim que supor que tudo com que o Direito se preocupa é com as hipóteses em que é aplicável uma sanção é distorcer o papel que supomos que o Direito desempenha na sociedade. Se o Direito é um conjunto de normas que prescrevem sanções para certas condutas, sancionando as condutas desconformes mesmo quando elas não desafiaram diretamente a validade da norma e se dando por satisfeito com a obediência mesmo quando ela é puramente casual, então o Direito é uma prática arbitrária de mirar alvos aleatórios e atingi-los com sanções. Mas o Direito não é isso, ele é uma prática de usar normas para coordenar as condutas e isso pressupõe que ele pode ter algum tipo de interferência causal sobre a conduta, de modo que não se pode dizer que entre a conduta que é casualmente conforme à norma e a conduta que de fato obedece à norma não existe qualquer diferença do ponto de vista do Direito. Isso eliminaria qualquer sentido do Direito como prática social.

Quanto ao segundo argumento, acredito que você tem razão, mas que os casos que você citou são mais ficções que o Direito constroi para conseguir lidar com situações que fogem do caso-padrão, qual seja, o do indivíduo consciente que obedece à norma por respeito à sua validade, do que provas de que esse não seja o caso-padrão absolutamente. Do contrário, por que crianças, loucos ou indígenas teriam que ter representantes legais para realizar os atos de sua vida civil? Se fosse indiferente para o Direito se o sujeito de direito é ou não um ser humano consciente capaz de conhecer, entender e obedecer à norma, então por que não se permite que essas pessoas realizem seus atos jurídicos diretamente? Parece-me que isso reforça a ideia de que se trata de casos que fogem ao padrão e para os quais o Direito tem que construir uma solução artificial grandemente baseada em ficções.

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo