Kant e a Obrigação Jurídica: Notas sobre a "Forma do Direito" na MC
Essa postagem se presta a explicar, de maneira mais ou menos didática, a caracterização, traçada por Kant na Metafísica dos Costumes (230), da obrigação jurídica enquanto tal, ou, como hoje é chamada, da "forma do direito". Kant explica que a obrigação jurídica tem a ver, em primeiro lugar, apenas com uma relação externa, e portanto prática, de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, podem ter influência (direta ou indireta) uma sobre a outra. Mas, em segundo lugar, ela não signifca a relação da ação de um sobre a mera aspiração (ou necessidade) do outro, como nas ações de beneficiência ou indiferença, mas apenas uma relação com o arbítrio do outro. Em terceiro lugar, nessa relação recíproca de arbítrios não tem nenhuma importância a matéria do arbítrio, isto é, o fim que cada um tem em mente com o objeto que quer, mas apenas a forma na relação dos arbítrios de ambos, na medida em que o arbítrio é considerado livre e se a ação de um pode ser unido à liberdade do outro de acordo com uma lei universal. Vamos agora explicar cada uma das três componentes da forma do direito.
1) A obrigação jurídica tem a ver com uma relação externa e prática entre as pessoas. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que normas jurídicas dizem respeito à conduta dos indivíduos, e não a suas intenções ou cogitações (por exemplo, que alguém queira o mal de outra pessoa, sem jamais tomar uma ação correspondente, ou pense sobre ela coisas que ofendem sua reputação, sem jamais dizê-las a quem quer que seja). Assim, aquilo que uma norma jurídica disciplina é sempre o que uma pessoa pode ou não pode fazer, e isso apenas na medida em que esse fazer possa afetar outra pessoa. Assim, a possibilidade de uma ação de afetar outra pessoa é uma característica que a torna um objeto em potencial de disciplinamento jurídico. Contrario sensu, aquilo que não chega a se materializar como ação e aquilo que, mesmo tornando-se ação, não é passível de influenciar outra pessoa (um culto religioso privado, a expressão de opinião, o consumo de substâncias prejudiciais à saúde etc.) está, de cara, excluso da possibilidade de ser objeto duma norma jurídica.
2) A obrigação jurídica não tem a ver com a relação do arbítrio de um com o desejo ou necessidade de outro, mas apenas com o arbítrio do outro. Em Kant, arbítrio tem a ver com a possibilidade de escolha entre alternativas concorrentes. Portanto, ao falarmos de arbítrio, falamos da faculdade que nos permite escolher uma coisa em detrimento de outra. Falamos também, por conseguinte, da faculdade que nos permite gozar de liberdade, pelo menos em sentido negativo, isto é, enquanto não impedimento de escolhermos isso ou aquilo, portanto, como não coerção à escolha e à ação. Falar da relação de um arbítrio com o outro é falar, pois, da relação entre liberdades, ou, para ser mais claro, do quanto o exercício da liberdade de um tem o potencial de restringir o exercício da liberdade do outro. Kant chama a atenção, então, para o fato de que aquilo que importa ao Direito não é jamais em que medida o arbítrio de um pode atender aos desejos ou necessidades do outro. Não cabe ao Direito obrigar os indivíduos a serem solícitos, cordiais, atenciosos ou caridosos uns com os outros, isto é, a se importarem com os desejos e necessidades dos outros enquanto tais. Cabe ao Direito disicplinar o arbítrio de um para torná-lo compatível com o arbítrio do outro, isto é, criar condições de convivência entre indivíduos livres, ou, o que é o mesmo, coordenar as liberdades entre si.
3) A obrigação jurídica, por fim, não tem a ver com a matéria do arbítrio, e sim com a forma da relação dos arbítrios entre si. O que Kant chama de matéria do arbítrio, como ele próprio esclarece, não é tanto o objeto do arbítrio (digamos, a escolha que se faz), o qual interessa bastante ao Direito, mas sim o fim que se tem em vista ao escolher aquele objeto. Interessa, por exemplo, que tal pessoa comprou bens de outra, e não que destino pensava em dar a eles ou com que intenção entrou nessa relação. Isso é assim como corolário da componente 1, pois apenas sua ação pode influenciar outra pessoa, e da componente 2, pois apenas sua ação pode restringir ou não o arbítrio da outra pessoa. Contudo, Kant agora acrescenta mais um elemento. Explica ele que interessa ao Direito a forma da relação entre os arbítrios, mais especificamente se um arbítrio pode ser unido ao outro de acordo com uma lei universal. Ora, nas relações externas entre pessoas (aquelas que, segundo 1, são as únicas que importam ao Direito), é impossível que o exercício do arbítrio de um não tenha influência sobre o arbítrio do outro. Assim, a questão para o Direito não é tanto a de evitar que o exercício do arbítrio de um tenha influência sobre o arbítrio do outro (o que é mais ou menos inevitável), mas sim verificar se tal influência está de acordo com uma lei universal. Isto quer dizer que tal influência deve ser do tipo que poderia ser aprovada pela razão de cada um quando consultada sobre as condições legítimas de convivência entre arbítrios livres. É assim que, tanto no caso do oficial de justiça que tomasse os bens de alguém para saldar uma dívida desta pessoa quanto no caso do ladrão que tomasse os mesmos bens da mesma pessoa para seu uso e benefício pessoal, a ação praticada (tomar os bens) seria a mesma e a influência da escolha do tomador em relação ao do tomado seria a mesma (privá-lo desses bens), mas a primeira seria legítima e a segunda não seria, não por causa dos fins (respectivamente, saldar uma dívida e benefício pessoal) de uma e de outra, e sim porque a primeira ocorre em circunstâncias que a razão aprovaria que autorizassem a ação conforme uma lei universal (que todos pudessem ser privados de bens para saldar suas dívidas), enquanto a segunda ocorre em circunstâncias que a razão não aprovaria da mesma forma (que todos pudessem ser privados de bens para o benefício de outrem). Assim, permitir a influência da ação de uma pessoa sobre o arbítrio da outra apenas quando tal influência está conforme uma lei universal de coordenação da liberdades é o objetivo por excelência das normas jurídicas, tais como as concebe Kant.
1) A obrigação jurídica tem a ver com uma relação externa e prática entre as pessoas. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que normas jurídicas dizem respeito à conduta dos indivíduos, e não a suas intenções ou cogitações (por exemplo, que alguém queira o mal de outra pessoa, sem jamais tomar uma ação correspondente, ou pense sobre ela coisas que ofendem sua reputação, sem jamais dizê-las a quem quer que seja). Assim, aquilo que uma norma jurídica disciplina é sempre o que uma pessoa pode ou não pode fazer, e isso apenas na medida em que esse fazer possa afetar outra pessoa. Assim, a possibilidade de uma ação de afetar outra pessoa é uma característica que a torna um objeto em potencial de disciplinamento jurídico. Contrario sensu, aquilo que não chega a se materializar como ação e aquilo que, mesmo tornando-se ação, não é passível de influenciar outra pessoa (um culto religioso privado, a expressão de opinião, o consumo de substâncias prejudiciais à saúde etc.) está, de cara, excluso da possibilidade de ser objeto duma norma jurídica.
2) A obrigação jurídica não tem a ver com a relação do arbítrio de um com o desejo ou necessidade de outro, mas apenas com o arbítrio do outro. Em Kant, arbítrio tem a ver com a possibilidade de escolha entre alternativas concorrentes. Portanto, ao falarmos de arbítrio, falamos da faculdade que nos permite escolher uma coisa em detrimento de outra. Falamos também, por conseguinte, da faculdade que nos permite gozar de liberdade, pelo menos em sentido negativo, isto é, enquanto não impedimento de escolhermos isso ou aquilo, portanto, como não coerção à escolha e à ação. Falar da relação de um arbítrio com o outro é falar, pois, da relação entre liberdades, ou, para ser mais claro, do quanto o exercício da liberdade de um tem o potencial de restringir o exercício da liberdade do outro. Kant chama a atenção, então, para o fato de que aquilo que importa ao Direito não é jamais em que medida o arbítrio de um pode atender aos desejos ou necessidades do outro. Não cabe ao Direito obrigar os indivíduos a serem solícitos, cordiais, atenciosos ou caridosos uns com os outros, isto é, a se importarem com os desejos e necessidades dos outros enquanto tais. Cabe ao Direito disicplinar o arbítrio de um para torná-lo compatível com o arbítrio do outro, isto é, criar condições de convivência entre indivíduos livres, ou, o que é o mesmo, coordenar as liberdades entre si.
3) A obrigação jurídica, por fim, não tem a ver com a matéria do arbítrio, e sim com a forma da relação dos arbítrios entre si. O que Kant chama de matéria do arbítrio, como ele próprio esclarece, não é tanto o objeto do arbítrio (digamos, a escolha que se faz), o qual interessa bastante ao Direito, mas sim o fim que se tem em vista ao escolher aquele objeto. Interessa, por exemplo, que tal pessoa comprou bens de outra, e não que destino pensava em dar a eles ou com que intenção entrou nessa relação. Isso é assim como corolário da componente 1, pois apenas sua ação pode influenciar outra pessoa, e da componente 2, pois apenas sua ação pode restringir ou não o arbítrio da outra pessoa. Contudo, Kant agora acrescenta mais um elemento. Explica ele que interessa ao Direito a forma da relação entre os arbítrios, mais especificamente se um arbítrio pode ser unido ao outro de acordo com uma lei universal. Ora, nas relações externas entre pessoas (aquelas que, segundo 1, são as únicas que importam ao Direito), é impossível que o exercício do arbítrio de um não tenha influência sobre o arbítrio do outro. Assim, a questão para o Direito não é tanto a de evitar que o exercício do arbítrio de um tenha influência sobre o arbítrio do outro (o que é mais ou menos inevitável), mas sim verificar se tal influência está de acordo com uma lei universal. Isto quer dizer que tal influência deve ser do tipo que poderia ser aprovada pela razão de cada um quando consultada sobre as condições legítimas de convivência entre arbítrios livres. É assim que, tanto no caso do oficial de justiça que tomasse os bens de alguém para saldar uma dívida desta pessoa quanto no caso do ladrão que tomasse os mesmos bens da mesma pessoa para seu uso e benefício pessoal, a ação praticada (tomar os bens) seria a mesma e a influência da escolha do tomador em relação ao do tomado seria a mesma (privá-lo desses bens), mas a primeira seria legítima e a segunda não seria, não por causa dos fins (respectivamente, saldar uma dívida e benefício pessoal) de uma e de outra, e sim porque a primeira ocorre em circunstâncias que a razão aprovaria que autorizassem a ação conforme uma lei universal (que todos pudessem ser privados de bens para saldar suas dívidas), enquanto a segunda ocorre em circunstâncias que a razão não aprovaria da mesma forma (que todos pudessem ser privados de bens para o benefício de outrem). Assim, permitir a influência da ação de uma pessoa sobre o arbítrio da outra apenas quando tal influência está conforme uma lei universal de coordenação da liberdades é o objetivo por excelência das normas jurídicas, tais como as concebe Kant.
Comentários