Crítica de Habermas à Teoria da Ponderação de Alexy (1)
Essa é a primeira de um conjunto de
três postagens que pretendem resumir e discutir os pontos centrais da crítica
de Jürgen Habermas à teoria da ponderação de Robert Alexy. Alexy propõe sua
teoria da ponderação de princípios na obra Teoria
dos Direitos Fundamentais, de 1985. Nessa postagem 1, tento fazer um
sumário da proposta de Alexy. Habermas, por sua vez, ataca a jurisprudência de
valores em geral e a ponderação de princípios em especial como autocompreensão
equivocada da atividade da jurisdição constitucional na obra Direito e Democracia: entre Facticidade e
Validade, de 1992. Na postagem 2, especificarei o tipo de crítica e listarei
os argumentos de Habermas em forma mais ou menos direta e analítica. Quem tiver
interesse numa discussão um pouco mais aprofundada pode ler também a postagem
3, em que debaterei cada um dos argumentos de Habermas à luz de possíveis
contra-argumentos. Espero dessa forma contribuir para o esclarecimento geral do
assunto.
Robert Alexy |
Na sua Teoria dos
Direitos Fundamentais, de 1985, Alexy propõe que as normas de direitos
fundamentais sejam compreendidas como princípios, e não como regras. Nos termos
de Alexy, uma regra é uma mandado
definitivo, isto é, um enunciado que, em vista de certo fato, manda fazer
ou não fazer certa coisa, não importando outras condições ou circunstâncias.
Assim, a norma que manda que se considere um contrato inválido se não for
assinado por duas testemunhas e a norma que manda que se condene à prisão o
autor de um homicídio doloso são regras: em vista de certo fato (ausência de
assinatura de duas testemunhas, autoria de um homicídio doloso), mandam fazer
certa coisa (considerar o contrato inválido, condenar o autor à prisão). Por sua
vez, um princípio é um mandado de
otimização, isto é, um enunciado que manda fazer ou não fazer certa coisa
na maior medida possível, delegando ao aplicador a tarefa de determinar essa
máxima medida, em vista das circunstancias do caso concreto e em confronto com
outros princípios envolvidos. Assim, a norma que manda proteger a liberdade de
expressão e a norma que manda tratar a todos igualmente seriam princípios: mandam
fazer certa coisa (proteger a liberdade de expressão, tratar a todos igualmente)
não de modo absoluto, em todos os casos e sem qualquer exceção, mas na maior
medida possível, dependendo do caso e do que mais está em jogo na situação.
Alexy explica que, em vista dessa diferença estrutural,
regras e princípios diferem também no tipo de solução que se deve dar às suas
antinomias e no tipo de aplicação que terão no caso concreto. No que se refere
à solução de suas antinomias, regras
e princípios diferem porque a conflito entre regras é resolvido pela exclusão
de uma delas, enquanto a colisão entre princípios é resolvida pelo sopesamento
entre eles. Quando duas regras do mesmo ordenamento jurídico são incompatíveis,
uma delas deve ser declarada inválida. Ou seja, o conflito entre regras é
resolvido por uma exclusão. Se duas regras, por exemplo, de trânsito,
referentes à mesma rua, fixam uma a velocidade máxima de 40Km/h e a outra, de
60Km/h, não é preciso sequer aplicá-las a um caso concreto problemático (como
seria, por exemplo, o da aplicação de multa a um automóvel que trafegasse por
aquela rua a 50Km/h, a qual estaria correta pela primeira regra e incorreta pela
segunda) para constatar que ambas estão em conflito. É que o conflito entre
regras ocorre em abstrato, no plano mesmo de seu conteúdo e validade. Já quando
dois princípios do mesmo ordenamento jurídico competem num caso concreto, um
deles deve prevalecer sobre o outro, mas sem que o outro deixe de existir ou
mesmo de gerar efeitos. Ou seja, a colisão de princípios é resolvida por um
sopesamento entre eles. Se, num caso concreto, uma revista pretende divulgar
fotos da vida íntima de um ator famoso, então os princípios da liberdade de
imprensa e da proteção da vida privada, os quais, em abstrato, não têm nada de
incompatíveis, entram em colisão neste caso em especial, na medida em que cada
um deles recomendaria uma decisão diferente para o pedido de autorização de
divulgação das fotos em questão. Portanto, a colisão de princípios não ocorre
no plano abstrato de seu conteúdo e validade (nesse plano, os princípios são
todos perfeitamente compatíveis uns com os outros), e sim no plano de sua
aplicação a um caso concreto. É apenas in
casu que princípios colidem, e tal colisão jamais será resolvida excluindo do
ordenamento jurídico um dos princípios colidentes. Ambos permanecerão válidos,
mas um deles se sobreporá ao outro naquele
caso. Não pode haver supremacia absoluta de um princípio sobre o outro em
todos os casos em que colidirem, pois isso implicaria que o primeiro tivesse em
abstrato mais peso que o segundo, o que suporia uma hierarquização dos
princípios – tese que Alexy rejeita completa e reiteradamente. Alexy chama a
atenção de que isso mostra que os princípios são apenas a contraparte normativa
dos valores e por isso possuem, tais como eles, além de uma dimensão de
validade, também uma dimensão de peso ou importância para cada caso concreto,
que permite a comparação entre eles em vista de uma solução.
Já no que se refere ao seu tipo de aplicação, regras
e princípios diferem porque regras são aplicadas por subsunção e princípios são
aplicados por ponderação. Como as regras são mandados definitivos, mandando
que, em vista de certo fato, se faça ou não faça certa coisa, o modo de aplicar
uma regra a um caso é verificar se o fato em vista do qual ela manda fazer ou
não fazer certa coisa está presente no caso e, se estiver, fazer o que ela
manda que se faça (ou não fazer o que ela manda que se omita). Nisso consiste a
chamada subsunção do caso à regra: Se
a regra ordena que se faça B toda vez que se verificar que A, então aplicá-la é
verificar se A e, se de fato A, então, fazer B. Regras devem ser aplicadas por
subsunção por dois motivos: primeiro, porque fixam de antemão o fato (por
exemplo, ausência de assinatura de duas testemunhas, autoria de um homicídio
doloso) que conta como condição necessária e suficiente para sua aplicação,
dispensando o aplicador de outras considerações; segundo, porque fixam de
antemão a decisão (por exemplo, considerar o contrato inválido, condenar o
autor à prisão) que o aplicador deve dar ao caso em que aquele fato se
apresente, dispensando o aplicador da consideração de outras alternativas de
solução. Princípios, por sua vez, não fazem nenhuma das duas coisas: nem fixam
de antemão o fato que conta como condição necessária e suficiente para sua aplicação,
nem fixam de antemão a decisão que o aplicador deve dar ao caso em que aquele fato
se apresente. Por isso, não podem ser aplicados por subsunção, e sim por ponderação. Ponderação é um procedimento que, no caso
concreto, envolve o sopesamento dos princípios colidentes (por exemplo,
liberdade de imprensa e proteção da vida privada) e a consideração das
circunstâncias relevantes do caso (por exemplo, as fotos serem da vida íntima
do autor e terem sido feitas enquanto ele estava em casa com a esposa) para
determinação, a partir da prevalência de um deles (por exemplo, prevalência da
vida privada sobre a liberdade de imprensa), de uma decisão para o caso (por
exemplo, não autorização da publicação das fotos na revista).
Versão da obra de Alexy traduzida para o português por Vigílio Afonso da Silva e publicada pela editora Malheiros. |
Contudo, Alexy procura descrever a
ponderação não como um simples juízo intuitivo ou mesmo prudencial a respeito
de qual princípio deve prevalecer no caso e levando a qual decisão. Trata-se de
um procedimento em sentido estrito,
que segue certas etapas e obedece a certos critérios, a fim de chegar a uma
decisão a que, em tese, todo julgador responsável chegaria se tivesse diante de
si o mesmo caso concreto. As etapas envolvem uma comparação entre soluções
alternativas do caso concreto (por exemplo, autorizar a publicação das fotos da
vida íntima do ator na revista, não autorizar as fotos nem a notícia e, por
fim, autorizar apenas a notícia, sem fotos) e são três: a) juízo de
adequação: avaliando se as soluções alternativas do caso são ou não adequadas
para realizar os princípios no caso (no exemplo são: autorizar a publicação realizaria
o princípio da liberdade de imprensa; não autorizar nem as fotos nem a notícia
realizaria o princípio da proteção da vida privada; autorizar apenas a notícia,
sem fotos, realizaria em parte um e em parte o outro); b) juízo de necessidade:
avaliando se as soluções alternativas do caso são ou não necessárias, no
sentido de que realizam um dos princípios com o mínimo sacrifício possível do
outro princípio (no exemplo, a autorização total e a não autorização total não seriam
necessárias, enquanto a autorização apenas da notícia, sem fotos, seria); por
fim, c) juízo de proporcionalidade em sentido estrito: avaliando se, em vista
das circunstâncias do caso (fotos da vida íntima feitas quando o ator estava em
casa com a esposa), há um dos princípios que deve obrigatoriamente prevalecer
sobre o outro (no caso há, pois tais circunstâncias contam inteiramente em favor
da proteção da vida privada; sendo assim, nesse caso, embora a autorização da
notícia, sem fotos, seja de todas a solução mais necessária, não será a mais
correta, porque implicaria violação da proteção da vida privada num caso cujas
circunstâncias são tais que não contam em nada em favor dessa violação). Tomada
a decisão (por exemplo, não autorizar nem fotos, nem notícia), esta, para
evitar o casuísmo e orientar a aplicação da mesma decisão a casos concretos
semelhantes no futuro, deve tomar a forma de uma regra, chamada regra de precedência condicionada,
vinculando entre si caso concreto, circunstâncias relevantes, princípios
colidentes, prevalência de um dos princípios e decisão final. (Por exemplo: “Toda vez que se decidir sobre a autorização
de imagens e notícias em publicação da imprensa e as imagens e notícias em
questão forem concernentes à vida íntima de certa pessoa e tiverem sido feitas
quando esta se encontrava em ambiente particular, o princípio da proteção da
vida íntima deve ter precedência sobre o princípio da liberdade de imprensa,
levando à decisão de não autorização nem das imagens nem da notícia”).
Comentários
(2) É possível que existam regras que não estão enquadradas no conceito de Alexy? Uma grande abraço e parabéns postagem.
Agora, quanda falas no teu comentário: "Eu pessoalmente acho que qualquer teoria do tipo regra/princípio deveria partir não de uma distinção binária de tipos ideais de normas, e sim de uma taxonomia realista, complexa e intricada de tipos bem concretos de normas, extraídos dos ordenamentos jurídicos existentes e em vista do tipo de aplicação que a prática judiciária realmente lhes empresta", me parece que essa tua idéia se aproxima um pouco mais de Dworkin, em decorrência da história institucional para determinal se uma norma é regra ou princípio. Estou equivicado?
Segundo: Falas que a distinção entre regras e princípios de Dworkin é mais utilizado do que a do Alexy, mas acho elas bem semelhantes (do ponto de vista da distinção - tudo ou nada, mais e menos, validade e invalidade, etc). O problema maior que vejo, como tu mesmo fizeste referência, é que nem as regras são aplicadas na forma tudo ou nada, pois muitas vezes os tribunais deixam de aplicar uma regra no caso concreto emd ecorrência de circunstâncias excepcionais, sem tirar a regra do ordenamento.
Gostaria depois, com mais calma, conversar contigo sobre a ponderação de princípios na esfera penal. De forma bem resumida, não consigo visualizar essa possibilidade de ponderação dentro de um processo penal. Vejo uma relação exclusiva entre Estado e Cidadão, contudo o que geralmente se faz é ponderar o Direito do réu (ex. proibição de utilização de provas ilícitas) e o Direito da vítima (ex. dignidade sexual, em um estupro). Muitos tentam fazer essa ponderação, mas acredito não ser possível.
Grande Abraço
Como em todas as suas postagens, novamente vc consegue reduzir a complexidade sem macular a profundidade.
Coincidentemente estávamos debatendo a ponderação alexyana hoje no mestrado em Direito que faço aqui em Brasília. Aliás, repassei o link do blog para a turma.
Mais uma vez, parabéns.
Flávio Dematté.
muito bom seu blog. Esclarecedor.
Pergunto se tem perspectiva de postar algo sobre neokantismo e a filosofia do Dierito de Radbruch?
att.
ARI TIMÓTEO DOS REIS JÚNIOR
Obrigada